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O significado de motivar uma sentença penal no contexto atual brasileiro

Decisão penal requer motivação lógica e transparente; debate no STF evidencia o dever e a urgência de qualificar a 1ª instância.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Atualizado às 09:02

A exigência de fundamentação das decisões judiciais é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. No processo penal, essa exigência assume densidade ímpar, pois se trata do exercício máximo do poder punitivo estatal, com repercussões sobre a liberdade e a dignidade humana. Motivar uma sentença penal significa oferecer um discurso racional, lógico e controlável, que demonstre de maneira transparente as razões pelas quais o magistrado acolheu ou rejeitou as teses das partes, a partir das provas juridicamente admissíveis e da coerência argumentativa (BRASIL, 1988; MOREIRA, 1995; CANOTILHO, 2003).

O tema se mostra ainda mais relevante diante do cenário atual brasileiro, em que decisões judiciais proferidas pela mais alta Corte do país têm despertado intenso debate público. O julgamento recente que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro é exemplo eloquente: enquanto os Ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino votaram pela condenação, o Ministro Luiz Fux divergiu e absolveu, ainda que diante das mesmas acusações. A controvérsia que se instaurou não está restrita ao universo jurídico, mas alcançou a sociedade em geral, que se vê autorizada a discutir os fundamentos e a consistência dos votos proferidos. Nesse contexto, ganha relevo a compreensão de que, em matéria penal, decidir não é escolher uma versão entre várias possíveis; é, sobretudo, justificar racionalmente por que uma determinada hipótese foi considerada provada além de qualquer dúvida razoável (FERRER-BELTRÁN, 2010; BADARÓ, 2023).

Motivar não significa narrar formalidades ou repetir os argumentos das partes, mas expor o itinerário racional que conduz da análise da prova à conclusão pela condenação ou absolvição. Barbosa Moreira (1995) recorda que a motivação é uma exigência decorrente do princípio republicano. Canotilho (2003) acrescenta que a motivação cumpre três funções estruturantes: prevenir o arbítrio, permitir o controle social e viabilizar o exercício do direito ao recurso. Sem motivação adequada, a decisão judicial se converte em ato de pura vontade, destituído de legitimidade democrática.

No processo penal, motivar está intimamente ligado ao respeito à presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF/1988), compreendida como verdadeira norma de julgamento. Isso significa que o Estado não pode condenar sem que as provas produzidas em juízo, submetidas ao contraditório substancial, sejam suficientes para afastar qualquer dúvida razoável (BRASIL, 1941). Não se admite que a decisão se funde em presunções arbitrárias, juízos de verossimilhança ou convicções pessoais do julgador (IACOVIELLO, 2022). A motivação, nesse sentido, é o instrumento que assegura que a sentença penal seja produto de racionalidade, e não de subjetivismos.

A fundamentação da sentença penal exige que o juiz explicite, de forma clara, por que considerou certas provas suficientes e outras não, tanto na análise isolada de cada elemento quanto na valoração conjunta do acervo probatório. Ferrer-Beltrán (2010) distingue entre justificação interna (a coerência lógica entre as premissas e a conclusão) e justificação externa (a solidez das premissas de fato e de direito). Badaró (2023) reforça que a hipótese acusatória deve ser testada em três etapas: confirmação, falsificação e comparação com hipóteses alternativas. Esse rigor epistêmico afasta o risco de condenações baseadas em narrativas unilaterais e garante a legitimidade do processo penal.

O debate em torno das decisões do Supremo Tribunal Federal demonstra que a sociedade brasileira começa a compreender, intuitivamente, que decidir em processo penal não se resume a escolher entre a versão da acusação ou da defesa. Exige-se que o magistrado justifique de forma clara, lógica e verificável o motivo pelo qual atribuiu valor probatório a determinado elemento e afastou outros. A divergência entre ministros no caso de Bolsonaro reforça a percepção de que não basta votar; é preciso fundamentar de modo a convencer não apenas os pares do tribunal, mas também a sociedade, que tem o direito de compreender os critérios que orientaram o juízo de culpa ou de absolvição (TARUFFO, 2023).

O bom senso recomenda cautela ao opinar sobre casos penais sem pleno conhecimento das acusações formuladas, das teses defensivas deduzidas e do conjunto probatório produzido em juízo. Assim, sem ingressar no mérito de quem apresentou a motivação mais consistente para justificar a conclusão que alcançou - se os ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino, pela condenação, ou o ministro Luiz Fux, pela absolvição -, é certo afirmar que todos se esforçaram em motivar suas posições. Esse esforço, por si só, já revela a importância do dever constitucional de fundamentação e a centralidade da motivação como limite ao arbítrio judicial.

Infelizmente, essa não é a realidade cotidiana da justiça criminal brasileira. A grande maioria das decisões de primeira instância permanece amparada em fundamentações genéricas, estereotipadas ou meramente aparentes, distantes das exigências constitucionais previstas no art. 93, IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e no art. 315, §2º, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). O contraste entre o debate travado na Suprema Corte e a realidade forense do país expõe a urgência de se aprimorar o padrão de fundamentação das decisões penais, sob pena de perpetuar um sistema que mais reproduz convicções pessoais do julgador do que efetivamente garante direitos fundamentais.

A divergência entre os votos não compromete a legitimidade do julgamento, mas, ao contrário, a fortalece. O dissenso e o debate aberto entre os ministros não enfraquecem a decisão, antes a legitimam, pois revelam que os julgadores se debruçaram com atenção e seriedade sobre as teses apresentadas pela acusação e pela defesa. A pluralidade de fundamentos expostos em colegiado, quando adequadamente motivados, é sinal de vitalidade democrática, reforça a transparência da jurisdição e confere maior densidade ao controle público do processo penal.

Esse exemplo, contudo, contrasta com a realidade da justiça criminal brasileira, em que a maioria das decisões ainda se apoia em fundamentações frágeis ou meramente aparentes. Cabe ao Conselho Nacional de Justiça refletir sobre medidas institucionais capazes de induzir a melhoria qualitativa das sentenças. Se já se avançou com o Manual de Padronização de Ementas, talvez seja chegada a hora de se discutir, com seriedade, a elaboração de um verdadeiro Guia para a Elaboração de Decisões Judiciais, que estabeleça parâmetros mínimos de clareza, coerência e racionalidade. Somente assim será possível assegurar que o dever de motivação se converta em prática efetiva e não em formalidade retórica, aproximando a justiça criminal brasileira dos padrões constitucionais que lhe são impostos.

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BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia Judiciária e Prova Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Juiz e a Função Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: RT, 1995.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

FERRER-BELTRÁN, Jordi. Considerações sobre o conceito de motivação das decisões judiciais. Revista Brasileira de Filosofia, ano 59, n. 234, 2010.

IACOVIELLO, Francesco. La motivación de la sentencia penal y su control en casación. Lima: Palestra, 2022.

TARUFFO, Michele. Contribución al estudio de las máximas de experiencia. Madrid: Marcial Pons, 2023.

Ulisses César Martins de Sousa

Ulisses César Martins de Sousa

Advogado do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados

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