Novos desafios para o BCB e a CVM - Insuficiência estrutural e financeira, inércia do governo e legislador atrapalha
Atrasos regulatórios, vulnerabilidade tecnológica e escassez de pessoal expõem a fragilidade de BCB e CVM diante das transformações do mercado.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Atualizado em 11 de setembro de 2025 14:29
1) Inverno inclemente, sem lareira e roupa inadequada
Quando o inverno chega, principalmente quando o frio é intenso, a solução é ficar dentro de casa e se for necessário sair, deve-se vestir uma roupa adequada. Ora, faz muito tempo que o BCB e CVM estão enfrentando o inverno mais tenebroso desde que foram criados, incapazes de fazerem o devido enfrentamento das tempestades que se têm abatido nos mercados financeiro e de capitais.
Há um antes, um durante e um depois nesse cenário. E essas fases no Brasil sempre foram permeadas pela onipresença da inflação, que gerou a necessidade do seu enfrentamento, especialmente no mercado financeiro, de modo a que fosse preservado o valor da moeda, verificando-se em nossa terra algumas novidades que até hoje espantam o agente econômico estrangeiro.
Antes, ainda que a perfeição jamais tivesse sido alcançada como é natural no serviço público, a estrutura dos dois órgãos poderia ser considerada necessária e suficiente para o exercício de suas competências, a partir de um corpo funcional adequado em número e capacitado em qualidade. Paralelamente, as operações a cargo dos dois órgãos eram exercidas dentro de um patamar de conhecimentos historicamente fundamentados e estáveis. Falando em uma pré-história, os bancos operavam com depósitos a vista e a prazo, cheques, duplicatas, notas promissórias e operações de crédito comum e rural, sem grandes complicações jurídicas. No tocante ao mercado de capitais, as financeiras trabalhavam com o aceite e a colocação de letras de câmbio e as bolsas de valores negociando ações e outros títulos emitidos pelas companhias. que nem sequer valores mobiliários ainda eram. Navegava-se em mares relativamente tranquilos, com poucas quebras de bancos (sem ter sido verificado risco sistêmico) e no mercado de capitais, ainda incipiente, dominava a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Devido a fraudes especulativas houve a quebra dessa bolsa que contaminou outras, mas não se verificando sua origem em problemas de natureza estrutural, na raiz, talvez, apenas uma outorga de dupla função até então cometida ao BCB, que cuidava dos dois mercados, sem competência técnica suficiente para atuar na área do mercado de capitais. Como se sabe, com o advento da CVM, esta assumiu este último, a partir do advento da lei 6.385/1976.
O tempo durante foi caracterizado pela progressiva complexidade dos dois mercados, pela progressiva sofisticação dos seus instrumentos, o que pode ser classificado como durante inicial e durante posterior.
Houve uma correção de rumos no mercado financeiro, implementada pelos programas PROER e PROES, enxugando-o de instituições ineficientes, especialmente as de natureza pública, que se haviam tornado instrumentos da agenda política dos governadores dos respectivos estados da federação. Poucas delas restaram, uma das quais nestes dias ainda mostra um ranço não compatível com as suas finalidades, agindo ainda em uma zona cinzenta de oportunismos e de operações condenáveis.
Quanto ao durante inicial, no mercado financeiro foram criados os bancos múltiplos, que passaram a atuar nas diversas áreas correspondentes, mediante a segregação interna das atividades de bancos comerciais e de investimento - pelo recurso à chamada muralha chinesa - o que, em tese, facilitava a fiscalização do BCB, mesmo havendo se mantido bancos comerciais e de investimento como empresas separadas. Aos poucos novos institutos surgiram, como resultado de novas necessidades dos agentes econômicos, que representaram desafios para a sua construção jurídica. Os bancos saíram dos seus nichos e foram atrás dos clientes, de um lado com propostas de remuneração adequada dos investimentos dos clientes; e, de outro, pelo fornecimento de crédito na medida das necessidades e do poder de adimplemento das obrigações assumidas.
No sentido acima, os juros elevados das operações de crédito não se originavam da sanha argentária dos bancos, mas de um patamar operacional mínimo que cobrisse os riscos naturais e a inflação inclemente. A taxa Selic revelava-se um ponto de partida necessário, evoluindo da sua natureza de instrumento de política monetária para a da referência dos juros do mercado. Aos bancos jamais interessou a quebra dos clientes, pois isso significaria matar a galinha dos ovos de ouro, indo junto o dono do galinheiro. Como se disse acima, o grande inimigo a enfrentar por todos os agentes era a inflação e o Governo, que fazia concorrência desleal no mercado.
Do lado do mercado de capitais e do de valores mobiliários os desafios foram crescentes. O mercado de capitais continuou nas mãos do BCB enquanto o de valores mobiliários foi destinado à CVM, cuja competência nesse campo foi circunscrita segundo aqueles relacionados na redação inicial dos arts 1° e 2º da lei 6.385/1976:
Art . 1º Serão disciplinadas e fiscalizadas de acordo com esta lei as seguintes atividades:
I - a emissão e distribuição de valores mobiliários no mercado;
II - a negociação e intermediação no mercado de valores mobiliários;
III - a organização, o funcionamento e as operações das bolsas de valores;
IV - a administração de carteiras e a custódia de valores mobiliários;
V - a auditoria das companhias abertas;
VI - os serviços de consultor e analista de valores mobiliários.
Art. 2° - São valores mobiliários sujeitos ao regime desta lei:
I - as ações, partes beneficiárias e debêntures, os cupões desses títulos e os bônus de subscrição;
II - os certificados de depósitos de valores mobiliários; III - outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades anônimas, a critério do Conselho Monetário Nacional.
Parágrafo único - Excluem-se no regime desta lei:
I - Os títulos da dívida federal, estadual ou municipal/
II - Os títulos cambiais de responsabilidade das instituições financeiras, exceto as debêntures.
Brincadeira de criança, diriam alguns. Afinal de contas não estavam presentes na nova lei entidades ou institutos absolutamente novos diante dos quais os operadores do mercado e do direito tivessem de quebrar muito a sua cabeça para desvendá-los.
Aí surge o durante posterior - cujo fim estamos vivendo, quando a lei 6.385/1976 recebeu nova redação por meio da lei 10.303/01, que introduziu algumas mudanças julgadas necessárias para a sua atualização, tempo em que despontaram os contratos futuros e os derivativos cujos ativos subjacentes eram valores mobiliários, que foram negociados no mercado; e, marcadamente a partir do famoso caso das Fazendas Boi Gordo, responsável pelo surgimento no Brasil dos contratos de investimento coletivo.
Art. 1º Serão disciplinadas e fiscalizadas de acordo com esta Lei as seguintes atividades
I - a emissão e distribuição de valores mobiliários no mercado
II - a negociação e intermediação no mercado de valores mobiliários
III - a negociação e intermediação no mercado de derivativos
IV - a organização, o funcionamento e as operações das Bolsas de Valores
V - a organização, o funcionamento e as operações das Bolsas de Mercadorias e Futuros
VI - a administração de carteiras e a custódia de valores mobiliários
VII - a auditoria das companhias abertas
VIII - os serviços de consultor e analista de valores mobiliários.
Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta lei:
I - as ações, debêntures e bônus de subscrição
II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II
III - os certificados de depósito de valores mobiliários
IV - as cédulas de debêntures
V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos
VI - as notas comerciais
VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários
VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros
X - os ativos integrantes do SBCE - Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa e os créditos de carbono, quando negociados no mercado financeiro e de capitais. (Incluído pela lei 15.042, de 2024)
Veja-se que não houve mudança essencial no campo das atividades disciplinadas e fiscalizadas pela CVM, conforme se verifica pela leitura do art. 1º.
De outro lado, os contratos futuros não eram uma novidade no nosso mercado de capitais e no nosso Direito Comercial, há muito tempo praticados, especialmente no ambiente rural. Mas os derivativos e os investimentos coletivos, estes sim, introduziram por aqui um novo modelo negocial que já era velho conhecido nos Estados Unidos da América. Os derivativos ficaram mundialmente conhecidos quando da crise americana de 2007/2008, os vilões das operações subprime, ou seja, aquelas que escondiam monstros de inadimplência dentro dos seus pacotes. E na época do surgimento dos contratos de boi gordo, negociados por uma sociedade limitada, a CVM não era detentora de competência para regulá-los, o que passou a acontecer pela inclusão do inciso IX ao art. 2° da lei 6.385/1976.1
Essa é a era que está terminando ou, ao menos, deixando de ter o seu grande proselitismo, considerando-se que a CVM ao longo desses anos desenvolveu expertise suficiente e de qualidade para lidar com os temas referidos linhas atrás.
Se ao longo dos anos passados BCB e CVM tiveram condições razoáveis para o exercício de suas competências, vejamos o depois, que é hoje e amanhã.
2. Cutucando a onça, nem sequer com vara curta
Alguns modernos instrumentos tornaram a vida do BCB e da CVM mais complicada, cada vez mais.
Primeiro, o envelhecimento e a perda numérica dos seus quadros, por aposentadorias e por demissões voluntárias, que não foi minimante reposta. E isso não se dá somente na base, pois na cúpula a CVM está com a sua diretoria incompleta há vários meses, contando atualmente com apenas três dos seus cinco diretores, em uma novela que não tem previsão de encerramento, tornando o órgão incapaz de exercer adequadamente as suas funções.
Tanto na CVM quanto no BCB a designação de diretores se tornou de um tempo a esta parte o resultado de um maléfico exercício político de captura, residindo nas cabeças dos eleitores o desejo de ter ingerência sobre aqueles dois órgãos. E a geografia desse comportamento está ao mesmo tempo no Executivo e no Legislativo. Esse fator revela total falta de compromisso com a relevante função exercida por aqueles, a bem da economia como um todo e das famílias e empresas na sua particularidade. É mais uma expressão do reconhecimento de que no Brasil as instituições não são verdadeiramente reconhecidas.
Alia-se ao problema acima citado o fato de que tanto o BCB como a CVM não mandam no seu quintal financeiro, dependendo de conseguir esmolas do governo para a sua manutenção e atuação eficientes. Nesse sentido, os termos independência e autonomia mostram-se completamente esvaziados, ausentes verdadeiramente dos projetos de reforma legislativa que têm sido apresentados. Muita verborragia, muita má política e muita captura.
E as dificuldades enfrentadas pelas duas entidades passaram mais recentemente ao status de alerta vermelho. Do lado do BCB os ataques de hackers ao âmago da segurança dos arranjos de pagamento - destacadamente o PIX e o acesso às contas de reservas - demonstram claramente a urgente necessidade do reforço do seu quadro técnico, pois o mundo a dos criptoativos, da blockchain, das redes de internet e do desaparecimento de fronteiras - reais, operacionais e legais - exige uma abordagem tecnológica de elevadíssima qualidade, se possível situada um passo à frente da marginalidade. Briga diária de caça pelo gato ao rato.
No campo da CVM a tecnologia também tem estabelecido o seu preço, a exemplo do que tem ocorrido com os diversos tipos de tokens negociados no mercado, cuja natureza de títulos de crédito (área do mercado financeiro, BCB) ou de valores mobiliários (área da CVM) tem sido de identificação problemática, uma vez que as fronteiras entre os dois campos se têm mostrado muito tênues.2
Notas conclusivas
Como procurei demonstrar neste texto, todo um mundo tecnológico novo penetrou nos mercados financeiros e de capitais, nos quais o risco de perdas elevadas dos agentes econômicos - sistêmicas e/ou individuais - se mostra cada mais presente, dependendo a configuração da necessária e eficaz segurança de diversos fatores, no caso aqui examinado, da plena capacidade de atuação do BCB e da CVM, sendo imprescindível adoção das necessárias medidas para tal finalidade, legais e administrativas
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1 Vejam-se a respeito, de nossa autoria, "Notas sobre o regime jurídico das ofertas ao público de produtos, serviços e valores mobiliários no direito brasileiro", in Revista de Direito Mercantil n° 105/74; e "A CVM e os contratos de investimento coletivo e outros", in Revista de Direito Mercantil, v. 36, n. 108, p. 91-100, out./dez. 1997.
2 Veja-se a esse respeito a discussão ocorrida no âmbito da CVM sobre o token DYN, em julgamento que terminou por três votos contra dois, sintomaticamente, não tendo sido considerado como valor mobiliário. Cf. "Valores Mobiliários e tecnologia: essência e forma", in Revista de Direito Bancário, vol. 107, pp. 15 a 42.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.



