Nulidades e cláusula de não-concorrência
O STJ enfrentou cláusula de não-concorrência sem limite temporal e decidiu pela anulabilidade, gerando debates sobre validade e impacto concorrencial.
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Atualizado em 16 de setembro de 2025 10:24
1. Introdução
No mês de agosto o STJ1 publicou interessante decisão versando sobre as cláusulas de não-concorrência, que são manifestações da autonomia privada sobre uma das bases do capitalismo: a disputa de clientela pelo pluralismo2 de sujeitos de direito.
A lógica competitiva é relativamente simples, ainda que sua incidência possa ter meandros mais complexos. Visa-se o darwinismo, a prevalência de quem se adapta melhor às necessidades consumeristas; a superação pela parte mais eficiente, a que presta serviços mais rápidos, mais baratos etc.3
Pela competição leal é lícito falir todos os concorrentes, já que prevalecer pelo mérito próprio não é técnica vedada pela legalidade constitucional (art. 36, parágrafo 1º, da lei 12.529/11 e art. 188 da lei 10.406/02).
2. Desenvolvimento
O caso concreto que chegou ao Tribunal da Cidadania dispunha de uma moldura fática interessante: (a) havia um grupo econômico - com duas sócias - que atuava na seara de roupas destinadas a duas faixas etárias, uma até os 3 anos e a outra de 4 anos em diante; (b) houve a decisão de separação das sócias do convívio societário, mantendo-se uma delas com a sociedade empresária destinada ao vestuário para a faixa de recém-nascidos até os 3 anos de idade, enquanto a outra seguiria com a sociedade empresária mercanciando bens para crianças de 4 anos em diante; (c) de modo a moldar a atuação de cada uma das sociedades4, pactuou-se um acordo de não-concorrência em que se precataria a expansão empresarial do público-alvo de cada um dos centros de imputação. Ou seja, negociou-se a estagnação ou a estabilidade de agires e (d) houve acusações recíprocas de inadimplemento do pacto5.
No que concerne ao item (c), uma das características que ganhou atenção do Poder Judiciário foi a ausência de limitação cronológica da modalidade de concorrência interdita6. Muito além da produção doutrinária pertinente, a agência reguladora do ambiente concorrencial exarou conhecida e - vigente - súmula7 pela qual a licitude de tais cláusulas é delimitada ao teto de meia-década.
Qual seria o tratamento dado à autonomia privada de constrição de direitos econômicos diante de cláusula redigida sem delimitação temporal? O TJ/SC compreendeu que a mácula era tão grave que, mesmo que as partes não tivessem ventilado a questão, seria o caso de atuação ex officio do órgão julgador. O plano da validade teria sido afetado, o que extrapolava noções de direito dispositivo.
Produzindo norma oposta à jurisdição de origem, o STJ compreendeu não caber ao Poder Judiciário superar o princípio da inércia (arts. 2 c/c 10 do CPC), já que a invalidade seria adstrita a uma mera anulabilidade8.
Não obstante, apesar de ter contraído a extensão dos fundamentos apreciados do conflito, o mesmo Tribunal da Cidadania compreendeu que ambas as partes violaram as obrigações de não disputar clientela. Assim, pela teoria das "mãos limpas", pela lógica da coerência, e de acordo com a teoria da exceção do contrato não cumprido, ambas as litigantes eram despidas da pretensão, do direito à coerção do pactuado.
3. Críticas
O acórdão da 3ª turma é munido das seguintes virtudes: (i) a norma alcançada não infantiliza a atuação das partes ao evitar paternalismos9, na medida em que reconhece alguma validade na auto limitação da liberdade ao direito na disputa de mercados; (ii) não cuidando de segmento mercantil em que haja escassez de fornecedores, a priori, a autonomia privada das partes em cercearem sua expansão comercial tende a concentrar sua eficácia internamente (princípio da relatividade negocial); e (iii) a solução final acabou por conter a pretensão pela eficácia da cláusula enquanto ambos os litigantes permanecerem violando-a.
Em contrapartida, deve-se ter um especial cuidado com a hermenêutica de uma decisão havida por uma Corte que, constantemente, se arvora o papel de erigir "precedentes"10. O caso dirimido é tão particular que a análise do dispositivo como fonte normativa universalizante é perigosa e poderá gerar distorções.
Assim, os fatos geradores mais polêmicos para feitos futuros geram as seguintes reflexões: (iv) se o ramo de atuação fosse caracterizado pela maior concentração de poder econômico e baixa pulverização de agentes (ex.: aviação comercial ou indústria farmacêutica), será que a autonomia privada poderia ser edificada para, licitamente, delimitar as disputas de clientela?; (v) tendo-se em vista que qualquer cláusula de não-concorrência pode gerar severas externalidades negativas11 (a denominada relativização da relatividade), o enfoque exclusivo nos pactuantes é a melhor metodologia para a aferição da legalidade constitucional de qualquer cláusula de tal sorte? e (vi) o fato de uma cláusula de não-concorrência ter sido escrita de maneira incompleta (sem restrições explícitas ao território ou a cronologia), mais abrangente do que o correto, engendra mera anulabilidade?
Entende-se que as duas primeiras questões (iv) e (v) sejam merecedoras de resposta mais sintética e de cunho negativo. Mercados centrípetos com baixa variedade de agentes econômicos não devem ser estimulados a maior concentração do poder de disputa de clientela. Ainda, noções básicas sobre função social contratual12, além da tutela dos direitos intelectuais (que conglobam vedações competitivas - art. 5º, XXIX, da CRFB), devem ser prestigiadas diante de uma lógica desenvolvimentista que transcenda as partes do negócio jurídico.
Por sua vez, (vi) parece haver uma falha hermenêutica no voto ao indicar que o vício redacional da cláusula seria mera anulabilidade, já que "sanável". Muito além de uma discussão sobre a redução13 do negócio jurídico no excerto ilegal (a ausência de limites à cláusula), lembra-se que as técnicas de controle de constitucionalidade alcançam a interpretação conforme e a inconstitucionalidade parcial (com ou sem redução de texto)14.
Entende-se que a restritiva prática da abdicação ao direito de concorrer pode ser lícita, mas a moldura jurídica de sua licitude é bastante diminuta, e há muitos outros núcleos de interesses envoltos para além daqueles competidores. Entre outros, saliente-se o impacto nos fornecedores, os demais agentes daquele mercado relevante, o Estado, os consumidores e o meio-ambiente. É mesmo necessário se questionar sobre a disponibilidade de extravasar as constrições constitucionais do instituto, e se tal não gera nulidades. O adequado contraste15 entre anulabilidades e nulidades se dá pela prevalência dos interesses em voga.
4. Conclusões
Se o resultado normativo alcançado pelo STJ parece correto quanto a não acolhida da pretensão pelo inadimplemento recíproco da cláusula de uma relação jurídica obrigacional complexa, o mesmo não pode ser dito quanto a qualificação do vício percebido.
Dentro da escada ponteana, factualmente o plano da validade é atingido quando uma cláusula tão delicada à legalidade constitucional - quanto a de não-concorrência - é erigida sem um limite cronológico16. Entretanto, não se cuida de mera anulabilidade já que as externalidades negativas tendem a ser múltiplas, tendo sido mais acertada a decisão do sodalício estadual que compreendera haver nulidade17. Se a redação defeituosa permitiu que a autonomia privada atingisse núcleo cogente normativo do art. 170, IV, da CRFB, então, cabe ao Poder Judiciário atuar ex officio para reconhecer a inconstitucionalidade da cláusula, dentro da lógica da eficácia irradiante dos preceitos fundamentais nas relações interprivadas18.
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1 STJ, 3ª Turma, Min. Rel. Fátima Nancy Andrighi, REsp 2.185.015/SC, DJe 15.08.2025.
2 IRTI, Natalino. L'Ordine Giuridico del Mercato. Editori Laterza: Bari, 1998, p. 71.
3 ASCENSÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal. Coimbra: Almedina, 2002, p. 98.
4 "[...] o objetivo da restrição da concorrência é a tutela do aviamento e, indiretamente, da clientela, podendo ser também a retirada momentânea do agente econômico concorrente daquele segmento de mercado, para permitir que o adquirente tenha o proveito do negócio efetuado, por certo momento, lugar e atividade, sem a interferência de uma concorrência qualificada do alienante." LAPA, Vitória Neffá. No compete em M&A. São Paulo: Quartier Latin, 2024, p. 109-110.
5 "PATRÍCIA ficou responsável pela loja Beabá Baby, sendo contratualmente proibida de vender numeração acima do tamanho quatro; e FABIANA pela loja Beabá Moda Infantil, restando impedida de vender numeração abaixo do tamanho quatro." STJ, 3ª Turma, Min. Rel. Fátima Nancy Andrighi, REsp 2.185.015/SC, DJe 15.08.2025.
6 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 111.
7 Súmula 5 do CADE: "É lícita a estipulação de cláusula de não-concorrência com prazo de até cinco anos da alienação de estabelecimento, desde que vinculada à proteção do fundo de comércio."
8 "Na vedação à cláusula de não-concorrência sem limitação temporal, embora se reconheça haver interesse social na preservação da livre concorrência e da livre iniciativa, o que se protege é a ordem privada. A restrição concorrencial contratualmente prevista atinge diretamente apenas o contratante; é o seu direito particular que não afronta à lei (...) 26. Diante da possibilidade de sanar a causa da invalidade, reconhecida doutrinariamente, conclui-se que a hipótese é de anulabilidade. 27. Por tudo isso, a cláusula de não-concorrência ilimitada no tempo é anulável." STJ, 3ª Turma, Min. Rel. Fátima Nancy Andrighi, REsp 2.185.015/SC, DJe 15.08.2025.
9 MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Hedra, 2010, p. 203.
10 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2ª Edição, São Paulo: RT, 2017, p. 83.
11 FORGIONI, Paula Andrea. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. 2ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 148.
12 "Esse conteúdo da autonomia e da liberdade de contratar, interpretado sob a luz dos valores constitucionais, devem perseguir, além dos interesses das partes, outros que sejam socialmente relevantes." MAIA, Lívia Barboza. Contratos de transferência de tecnologia. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2025, p. 107.
13 MONTEIRO, António Pinto. Teoria Geral do Direito Civil. 4ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 634.
14 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6ª Edição, ¬São Paulo: Saraiva, 2012, p. 234.
15 SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 227.
16 GRAU, Eros Roberto. FORGIONI, Paula. O Estado, A Empresa e O Contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 278.
17 Sobre a diferença entre o ilícito e o nulo vide AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 29.
18 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. XXVII.
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.
Lívia Barboza Maia
Professora IDP e Mackenzie Rio. Coordenadora Curso de Extensão Fashion Law PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Civil (UERJ). Especialista em Direito da Propriedade Intelectual (PUC-Rio). Sócia DBBA.



