O interesse e a legitimidade da vítima para intervir em habeas corpus. Análise da flexibilização jurisprudencial à luz dos direitos fundamentais e da revalorização do papel do ofendido no processo penal
A evolução jurisprudencial aponta para a flexibilização da intervenção da vítima em habeas corpus, reconhecendo seu interesse jurídico direto e qualificado.
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Atualizado em 19 de setembro de 2025 15:25
1. Introdução: A vedação tradicional e a revalorização da vítima
O Habeas Corpus, garantia constitucional de matiz histórica e instrumental à proteção da liberdade de locomoção, possui rito célere e cognição sumária. À luz dessas notas, a jurisprudência do STF e do STJ consolidou, por longo tempo, o entendimento de que seria incabível a intervenção da vítima em HC, ainda que habilitada como assistente de acusação. A vedação amparava-se no fato de que a vítima não figura como parte na ação de habeas corpus; na ausência de previsão normativa específica sobre a possibilidade de intervenção; no rito célere do HC e na natureza da tutela pretendida - a liberdade do paciente.
Contudo, a rigidez desse paradigma vem sendo gradualmente erodida por uma jurisprudência atenta às complexidades do processo penal contemporâneo, à evolução da utilização do habeas corpus para sanar constrangimentos ilegais que, por via reflexa, alcançam a liberdade de locomoção, e à necessidade de revalorização do papel do ofendido no processo penal como sujeito de direitos.
O artigo busca analisar essa evolução, demonstrando que as fissuras iniciais, abertas em casos de ação penal privada, apontam para um novo critério de admissibilidade: o interesse jurídico direto qualificado da vítima no resultado do Habeas Corpus, independentemente de seu status formal na ação de conhecimento.
2. Os precedentes inaugurais: A intervenção do wuerelante
Julgados da década de 1980 revelam uma posição jurisprudencial firme e consolidada do STF à época: era terminantemente vedada a intervenção da vítima, fosse ela querelante ou assistente de acusação, no rito do Habeas Corpus1.
A primeira inflexão relevante ocorreu em 1991, quando o Plenário do STF admitiu a intervenção do querelante em habeas corpus que objetivava o trancamento de ação penal privada2, sob o fundamento de que, diferentemente do assistente do Ministério Público, que não é parte no processo da ação penal pública, o querelante é o titular do direito de ação penal privada e parte na consequente relação processual. Embora não seja parte no habeas corpus, detém interesse jurídico direto em seu julgamento, não se lhe podendo negar a condição de litigante.
Tal compreensão preserva as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF/88), aplicáveis não só ao acusado, mas a todos os sujeitos do litígio substancial posto em juízo. Ademais, a intervenção do querelante não compromete a celeridade do remédio constitucional e assegura a paridade de armas, equilibrando oportunidades de manifestação entre acusado e ofendido.
Esse entendimento permanece atual nos Tribunais Superiores. Recentemente, a 5ª turma do STJ fixou a seguinte tese de julgamento: "É vedada a intervenção de terceiros em habeas corpus, salvo em casos de ação penal privada."3
3. A expansão: A ação penal privada subsidiária da pública
O passo evolutivo seguinte foi dado pelo STJ, que, em julgado sob sigilo noticiado no informativo de jurisprudência 800, reconheceu o direito de habilitação da vítima como terceira interessada em Habeas Corpus que visava ao trancamento da ação penal privada subsidiária da pública. O fundamento: "O que define a existência do interesse de agir de terceiro em ação de habeas corpus não é apenas a natureza da ação de fundo, mas especialmente a legitimidade ad causam do querelante para dar início ao processo penal, com base nos artigos 29 e 30 do CPP."4
Assim, se o habeas corpus pretende fulminar a queixa (inclusive subsidiária), "deve-se assegurar ao querelante o direito de resguardar o seu interesse - o qual se concretiza na entrega jurisdicional final - em todos os graus de jurisdição", ainda que não figure formalmente como parte no habeas corpus, pois "parte ele é na relação processual principal e, por isso mesmo, deve ser admitido como terceiro interessado em demanda que visa ao trancamento do processo, cuja marcha processual somente teve início devido a sua iniciativa.".
Embora correta, a fundamentação centrada na legitimidade ad causam mostra-se restritiva e evidencia uma incongruência: admite-se a intervenção quando, por inércia do Ministério Público, a vítima ajuíza queixa-crime subsidiária e o habeas corpus busca trancar essa ação (art. 5º, LIX da CF/88; art. 29 CPP); porém nega-se a intervenção quando há denúncia do MP e a vítima atua apenas como assistente de acusação na ação penal pública (art. 268 CPP), não obstante o interesse jurídico no resultado ser substancialmente o mesmo.
4. Do status formal ao interesse jurídico qualificado
Diante disso, parece necessário adotar uma análise mais ampla, centrada no interesse jurídico direto e qualificado no Habeas Corpus, a partir de três requisitos cumulativos: (i) pertinência temática: o objeto do HC guarda relação direta com a esfera jurídica da vítima (trancamento da ação penal, ilicitude de prova produzida pela vítima ou reparação do dano, por ex.); (ii) nexo decisório: a decisão do HC deve ter potencial de afetar significativamente direitos da vítima; e (iii) compatibilidade procedimental: a intervenção não gera dilação probatória nem compromete a celeridade.
Nesse caso, o interesse jurídico da vítima estará presente sempre que a decisão no HC puder impactar seus direitos de ação, de reparação e de participação ativa na persecução penal, através da produção de provas. Quem tem o direito de produzir prova possui, por consequência, o direito de defender sua licitude.
O entendimento acompanha a evolução do habeas corpus, que abrange ofensas diretas e reflexas à liberdade de locomoção. Se o remédio constitucional se expandiu, corretamente, para abarcar, por exemplo, a análise de ilicitude probatória e o trancamento da ação penal, é coerente que a sua dinâmica processual se atualize para resguardar o direito de participação da vítima. Negar essa participação objetifica o ofendido e esvazia a dimensão substancial do contraditório, da ampla defesa da vítima e da paridade de armas.
5. Fundamentos para a intervenção da vítima
A intervenção da vítima em habeas corpus, especialmente quando a julgamento puder resultar no trancamento do inquérito, da ação penal ou na invalidação de provas por ela produzidas, encontra amparo na Constituição, na legislação e no direito internacional dos direitos humanos.
No plano constitucional, encontra respaldo nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), direito de petição (art. 5º, XXXIV CF), do efetivo acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), que engloba o direito de propor ação e o de defender sua validade; do contraditório e da ampla defesa "com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º, LV, CF), que também resguarda o ofendido.
No plano internacional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos assegura a proteção judicial da vítima através de medidas processuais efetivas contra atos que violem seus direitos fundamentais (art. 25). Em linha com tais garantias, a CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos - no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil - condenou o Estado brasileiro por violação ao direito de proteção judicial ao não assegurar a participação efetiva das vítimas ao longo da persecução penal5, entendida como a possibilidade de anexar provas e formular alegações para fazer valer seus direitos, enfatizando os eixos acesso à justiça, busca da verdade dos fatos e justa reparação.
O arcabouço infraconstitucional também confere à vítima significativo espaço de atuação: sugerir diligências em sede policial (art. 14 CPP), recorrer da decisão de arquivamento (art. 28-A, § 14, CPP), atuar como assistente de acusação em ação penal pública, interpor alguns recursos (art. 268 e ss., CPP), requerer medidas cautelares e, até mesmo, prisão preventiva (art. 311 CPP).
Esse espaço de atuação em toda a persecução penal confirma que a vítima não é (nem pode ser) mera espectadora, mas sujeito com direito de participação ativa. Nesse contexto, a intervenção no HC emerge como decorrência lógica desse status, concretizando a ampla defesa da vítima e a necessária paridade de armas. Seria um contrassenso sistêmico, além de representar claro desequilíbrio processual, garantir ampla atuação em sede investigativa e processual, mas silenciá-la em ação autônoma capaz de anular a prova que produziu ou de extinguir a persecução penal por completo.
Tampouco é possível sustentar que o Ministério Público resguardaria os interesses da vítima. No habeas corpus, o Ministério Público atua primordialmente como fiscal da lei; se a vítima não puder se manifestar, há risco de que seus interesses específicos - sobretudo relativos a provas por ela produzidas, reparação do dano ou à continuidade da persecução penal - não sejam adequadamente defendidos. Assim, nesses casos, a vítima possui um interesse direto e específico que legitima sua participação.
6. Conclusão
A vedação tradicional à intervenção da vítima em habeas corpus merece revisão. A flexibilização jurisprudencial até aqui observada - ainda fortemente vinculada à legitimidade ad causam - não captura todas as situações em que o julgamento do HC incide direta e significativamente sobre direitos do ofendido. A adoção do critério material do interesse jurídico direto e qualificado, aferido casuisticamente a partir dos três requisitos propostos, preserva a vocação do habeas corpus e, ao mesmo tempo, concretiza o contraditório substancial, a ampla defesa da vítima e a paridade de armas. Com isso, evita-se que decisões sumárias neutralizem, sem participação do ofendido, seus direitos de ação, de prova e de reparação, além de harmonizar a dinâmica do habeas corpus com a Constituição e com os compromissos internacionais de proteção à vítima.
Assim, admitir a intervenção da vítima quando presentes tais requisitos não desnatura o habeas corpus; ao contrário, reforça sua função garantística ao assegurar os direitos da vítima e ajusta o processo penal brasileiro às exigências constitucionais de proteção efetiva do ofendido como sujeito de direitos.
__________
1 STF, RHC 65781, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, julgado em 01-03-1988, DJ 20-05-1988 PP-12094 EMENT VOL-01502-02 PP-00225 e STF, HC 62414, Rel. Octavio Gallotti, Primeira Turma, julgado em 18.12.1984, DJ 22-02-1985 PP-11591 EMENT VOL-01367-01 PP-00184 RTJ VOL-00112-03 PP-01095)
2 STF, Pet 423 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Red. Do acórdão Min. Sepúlveda Pertence, julg. 26.04.1991, publ. 13.03.1992
3 STJ, AgRg no AgRg no HC n. 945.607/DF, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 14/4/2025, DJEN de 25/4/2025.
4 Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 6/2/2024. (https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?acao=pesquisarumaedicao&livre=0800.cod.&from=feed)
5 https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf
Leonardo Salgueiro
Advogado no escritório Fragoso Advogados.


