PEC da blindagem: Da garantia institucional ao privilégio inconstitucional - Os riscos institucionais de converter prerrogativas em privilégios
A proposta converte prerrogativas parlamentares em privilégios pessoais, ameaçando a fiscalização e a igualdade perante a lei.
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Atualizado às 11:07
Alguns a batizaram, com sarcasmo, de PEC da Blindagem. Seus defensores, em esforço retórico, preferem vendê-la como PEC das prerrogativas. Muitos, indignados, a denunciam como a PEC da bandidagem. Os rótulos variam, mas o conteúdo é inescapável: longe de aperfeiçoar a ordem constitucional, a proposta conspira contra ela. Em vez de fortalecer a democracia, abre caminho para a distorção das imunidades parlamentares, transformando-as em escudo de privilégios pessoais e rota segura para a impunidade.
1. Imunidade parlamentar: Gênese, finalidade e chave hermenêutica
Desde o Império, a imunidade parlamentar foi concebida como garantia institucional do Poder Legislativo. O art. 26 da Constituição de 1824 já proclamava a inviolabilidade das opiniões proferidas "no exercício de suas funções", fórmula funcional, liberal e teleológica: proteger a função para que o Parlamento cumpra seu papel sem temer pressões indevidas. As Constituições de 1891, 1934 e 1946 oscilaram na redação (funções/mandato), mas preservaram o núcleo: blindar o debate político e a fiscalização, e não indulgenciar indivíduos. Em 1988, o constituinte fez a opção mais generosa - "deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos" -, suprimindo restrições espaciais e reafirmando a vocação do instituto: liberdade da palavra política como instrumento do controle democrático.
Essa trajetória impõe a chave hermenêutica adequada: imunidade não é impunidade. A inviolabilidade material do art. 53 deve ser interpretada restritivamente, condicionada a um nexo funcional entre a manifestação e a atividade parlamentar (in officio ou propter officium). Opiniões, palavras e votos são protegidos quando inseridos no debate legislativo ou na fiscalização dos Poderes. Fora desse perímetro, prevalece o princípio republicano da accountability: nenhum cidadão - inclusive o parlamentar - está acima da lei.
2. Dois momentos do art. 53: 2001 x 2025
2.1. 2001 - O "pacote ético" (EC 35/01)
O contexto de 2001 foi de crise reputacional do Congresso. A resposta institucional caminhou no sentido republicano: reduzir filtros políticos e abrir a jurisdição penal. A Emenda 35 suprimiu a licença prévia da Casa para processar parlamentar e a substituiu pela possibilidade de sustação do processo por decisão política, preservando a inviolabilidade material por opiniões, palavras e votos. A racionalidade foi clara: facilitar a responsabilização por crimes comuns sem tolher a liberdade do debate parlamentar. O vetor normativo foi de contenção de privilégios e fortalecimento da responsabilização.
2.2. 2025 - A "PEC da blindagem" (PEC 3/21)
Duas décadas depois, a proposta ora em tramitação nasce como reação defensiva do Legislativo à atuação do Judiciário em casos envolvendo parlamentares. O texto aprovado na Câmara (16/9/2025) sinaliza fechamento do sistema: (i) reforça o foro especial "desde a diplomação"; (ii) monopoliza no STF todas as medidas cautelares pessoais e reais contra parlamentares; (iii) reinstala barreiras políticas à prisão e à ação penal (com prazos internos e retomada de voto secreto em deliberações sensíveis); e (iv) leva ao paroxismo a ideia de "prerrogativa" ao tentar alçar presidentes nacionais de partidos políticos ao foro do Supremo - pessoas sem mandato legislativo e sem função de Estado. O vetor, aqui, é o inverso: restaurar filtros, elevar custos de investigação e cautelar e aumentar opacidade decisória.
O contraste é eloquente: 2001 abriu a jurisdição e reduziu blindagens prévias; 2025 fecha passagens, recupera barreiras políticas e institucionaliza zonas de sombra. Onde se procurou prestigiar a transparência e a responsabilidade, quer-se agora reinstalar sigilo e autorização política.
3. Por que a PEC viola a essência do instituto - e a Constituição
3.1. Desvio teleológico e afronta republicana
A imunidade parlamentar é uma prerrogativa funcional, não um privilégio absoluto. Serve à instituição, não ao indivíduo. A PEC subverte esse desenho ao recentralizar no próprio Parlamento a autorização para prisões e ações penais (com voto secreto), concentrar no STF a execução de qualquer cautelar contra deputados federais e senadores (criando gargalos artificiais) e reintroduzir uma política de portas internas que distanciam a jurisdição do controle público. A soma "autorização política + foro concentrado + cautelares limitadas + sigilo deliberativo" não protege a função: protege pessoas. Esse arranjo vulnera os princípios republicano e isonômico, e desvirtua a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV), ao erguer obstáculos não razoáveis à tutela penal efetiva.
3.2. O ponto extremo: "foro" para presidentes de partidos
Cumpre assinalar o inaceitável: embora o texto originário da Constituição tenha consagrado imunidades exclusivamente aos membros do Congresso - "os Deputados e Senadores." -, a proposta extravasou por completo esse desenho. Não se limita a ajustar prerrogativas parlamentares; desloca o eixo do instituto para conferir blindagens a quem não detém mandato de senador ou deputado federal, alçando dirigentes partidários a um regime excepcional pensado para proteger a função legislativa, não pessoas ou estruturas privadas. É uma inversão lógica e teleológica: a prerrogativa concebida para garantir a independência do mandato converte-se em escudo para não parlamentares, esvaziando o sentido do art. 53 e colidindo com a Constituição em seu núcleo republicano e igualitário.
Não há, na história constitucional brasileira - do Império à Constituição de 1988, passando pela reforma de 2001 -, qualquer precedente para tal extensão. Tampouco no direito comparado se encontra exemplo sério de imunidade/foro a líderes partidários que não integrem o Poder Legislativo. O que se pretende aprovar é um corpo estranho ao sistema: uma mutação que desloca uma garantia institucional para o terreno das blindagens pessoais.
4. A leitura que preserva a imunidade - e repele a blindagem
O caminho correto é inequívoco: o caso é de rejeição da PEC. Ela desvirtua o art. 53, reinstala barreiras políticas ao exercício da jurisdição, concentra competências de modo ineficiente e, no seu ponto mais escancarado, pretende converter dirigentes partidários - sem função estatal - em titulares de foro especial. Se, ainda assim, o Congresso insistir em avançar, o mínimo democrático exigível é a realização de ajustes na proposta, com a introdução de salvaguardas que devolvam a prerrogativa ao seu leito institucional e impeçam sua metamorfose em escudo de impunidade.
A experiência brasileira oferece lições que não podem ser ignoradas. A cassação de Hildebrando Pascoal (1999) e as condenações que se seguiram converteram-se em símbolo de que a resposta constitucional adequada era abrir a jurisdição penal e remover filtros políticos ex ante - exatamente o que fez a EC 35/01, ao extinguir a "licença prévia" para processar parlamentares e substituí-la pela sustação posterior, preservada a inviolabilidade por opiniões, palavras e votos. No mesmo diapasão, o percurso de Ronaldo Cunha Lima evidenciou como arranjos processuais e prerrogativas podiam ser manipulados para frustrar a prestação jurisdicional: às vésperas do julgamento no Supremo, renunciou ao mandato para deslocar a competência e evitar o exame do mérito - expediente registrado publicamente e que expôs, sem rodeios, a fragilidade de um modelo dependente de "portas políticas".
Esse histórico conversa diretamente com o presente. Em meio ao escrutínio sobre emendas parlamentares - inclusive as chamadas "emendas PIX" -, há centenas de repasses sob investigação, com inquéritos instaurados para apurar desvios milionários e deputados réus por suposta "venda" de emendas. No plano mais amplo, a Polícia Federal noticia dezenas de inquéritos envolvendo autoridades com foro. É precisamente nesse ambiente de necessária vigilância que a PEC reintroduz condicionantes políticos para a abertura de ação penal e restringe cautelares: uma marcha a ré que tende a paralisar o controle jurisdicional justamente onde se adensam indícios de malversação de recursos públicos.
Por seu desenho, a proposta recoloca o "gate" político que havia sido suprimido, eleva o custo de investigar e responsabilizar, e desloca o eixo decisório do Judiciário para o próprio Parlamento - o mesmo arranjo que a experiência com Hildebrando e a manobra de renúncia de Cunha Lima já demonstraram ser incompatível com a accountability republicana. O resultado previsível é a compressão, por via oblíqua, da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV), com prejuízo objetivo à tutela penal em casos de corrupção e desvio de emendas.
Se, não obstante, optar-se por reformar o texto, os seguintes ajustes mínimos são necessários na PEC em debate: (i) hermenêutica restritiva da inviolabilidade material, condicionada a nexo funcional direto e inequívoco entre a conduta e a atividade parlamentar; (ii) publicidade integral das deliberações sobre prisão e processamento - voto secreto em matéria de responsabilidade é anacronismo antirrepublicano; (iii) prazos com consequência: decorrido o prazo sem decisão, autorização tácita para prosseguir com a persecução penal; (iv) cautelares eficazes sob direção do STF, com delegação executória para atos urgentes e supervisão estreita da Corte; e (v) no tema do foro, exclusão absoluta de qualquer tentativa de alçar presidentes de partidos à competência originária do Supremo.
Essa moldura preservaria a imunidade onde ela é indispensável - no debate e na fiscalização - e repele a blindagem, garantindo que prerrogativas não se convertam em salvo-conduto contra a lei.
5. Conclusão
Seja chamada de PEC da Blindagem, PEC das prerrogativas ou PEC da bandidagem, a proposta não resguarda o Parlamento - o instrumentaliza. Converte a imunidade em privilégio, a prerrogativa em impunidade e a exceção em regra. Viola a tradição do instituto, contraria o espírito da Constituição de 1988 e desdiz a reforma republicana de 2001.
A proposta contraria a Constituição porque desvirtua a teleologia do art. 53, que institui imunidades como garantias funcionais do mandato - e não como escudos pessoais -, afronta o princípio republicano ao criar castas processuais e privilégios incompatíveis com a isonomia, e restringe, por via oblíqua, a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV), ao reinstalar filtros políticos e voto secreto capazes de paralisar a atuação do Judiciário. Ao pretender estender foro a quem não exerce função de Estado (como presidentes de partidos) e recentralizar no próprio Parlamento o poder de condicionar prisões e ações penais, a PEC rompe o equilíbrio entre os Poderes, converte prerrogativa em impunidade e viola a essência normativa da Constituição de 1988: a supremacia da lei, a igualdade de todos sob seu manto e a responsabilidade como regra para governantes e governados.
A imunidade parlamentar é garantia da função, não indulgência pessoal. Deve ser preservada na medida do necessário à independência do mandato - e recusada toda tentativa de desvirtuá-la em blindagem. A inclusão de presidentes de partidos no foro especial é o ponto máximo do despropósito: cria abrigo processual para quem não exerce função de Estado, subvertendo a igualdade e a accountability.
Torna-se inadiável rejeitar a proposta com a mesma firmeza com que a história constitucional brasileira nos ensinou a resguardar o Legislativo: assegurando-lhe a autonomia necessária ao desempenho de sua missão, mas jamais tolerando que essa autonomia seja corrompida em instrumento de autoproteção. A República não sobrevive à sombra dos privilégios; ela só se sustenta quando cada cidadão, inclusive aquele investido das mais altas funções públicas, se submete ao mesmo dever de responsabilidade e à mesma medida de igualdade perante a lei.
Ulisses César Martins de Sousa
Advogado do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados



