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Monitores corporativos independentes nos Estados Unidos e seus possíveis reflexos no Brasil: Os memorandos do DOJ e as experiências concretas

O uso de monitores corporativos nos EUA mostra como seleção e atuação independentes reforçam compliance e limitam riscos de litígios.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Atualizado em 24 de setembro de 2025 10:38

No artigo anterior dessa série, apresentamos a base conceitual sobre os Monitores Corporativos Independentes, sua forma de trabalho, suas vantagens e desvantagens1. Neste artigo, apresentaremos a experiência internacional mais consolidada com monitores. Para tanto, analisaremos o modelo do Independent Compliance Monitoring norte-americano, implementado como método de acompanhamento de acordos de leniência pelo DOJ - Departamento de Justiça dos Estados Unidos e pela SEC - Securities and Exchange Commission. As linhas gerais desse modelo estão previstas no documento "Selection and Use of Monitors in Deferred Prosecution Agreements and Non-Prosecution Agreements with Corporations", conhecido como "Memorando Morford"2Vale destacar que a forma e o nível de aplicação da legislação anticorrupção norte-americana, o FCPA - Foreign Corrupt Practices Act, passaram por mudanças relevantes sob o governo Trump 2.0. Esse governo sinalizou não priorizar a aplicação da lei em relação às empresas americanas e manifestou oposição ao uso de monitores corporativos. Portanto, as considerações a seguir refletem a abordagem que o DOJ e a SEC adotaram historicamente, mas não obrigatoriamente a que adotarão sob o novo governo Trump.

Segundo o Memorando Morford, a tarefa fundamental do monitor é, por meio do seu trabalho, avaliar o cumprimento da empresa com os termos do acordo, reduzindo o risco de reincidência da conduta ilícita. Apesar de afirmar que não há um método único de seleção de monitores, o Memorando Morford ainda traça linhas gerais sobre como selecioná-los, tal como, por exemplo, a sugestão de uma lista tríplice de monitores por parte da empresa ou das autoridades públicas; e o direito de as autoridades públicas vetarem a sugestão da empresa envolvida caso o monitor seja inaceitável. Não só isso, como também três critérios devem ser sempre levados em consideração: o custo, o impacto e os benefícios dos monitores para a companhia e para o público.

Para além do Memorando Morford, o DOJ atualizou constantemente seu entendimento sobre a seleção e aplicação de monitores independentes. Entre 2008 e 2025, o DOJ emitiu 7 novos memorandos que tratam desse tema: (i) Memorando Breuer (2009); (ii) Memorando Grindler (2010); (iii) Memorando Benczkowski (2018); (iv) 2 Memorandos Monaco (2021 e 2022); (v) Memorando Kenneth (2023); e (vi) Memorando Galeotti (2025).

O Memorando Breuer (2009)3, intitulado "Selection of monitors in Criminal Division Matters", informa que o processo de seleção de monitores independentes conta com um comitê instituído especificamente para tal finalidade, o standing committee. Dentre suas funções, está a de escolher o monitor independente previamente sugerido pela empresa envolvida e aprovado pelos advogados da divisão criminal do DOJ. Destaca-se que, após isso, a proposta ainda deve ser avaliada em última instância pelo vice-procurador geral da divisão criminal. Por fim, chama atenção que, não obstante os procedimentos contidos nos Memorandos Morford e Breuer, os critérios adotados pela divisão criminal podem ser diferentes dos previstos em tais documentos, caso se entenda que as particularidades do caso demandem um processo seletivo diverso, a ser aprovado pelo standing committee.

Por sua vez, o Memorando Grindler (2010)4 volta-se para outra perspectiva que não a seleção de monitores independentes: o papel e posicionamento do DOJ nas negociações de acordos com empresas. Mais especificamente, o Memorando adiciona mais um princípio aos elencados pelo Memorando Morford: o acordo firmado deve explicitar o papel do DOJ na resolução de conflitos entre a empresa e o monitor independente, como, por exemplo, as razões para que determinado aprimoramento no programa de compliance da empresa, sugerido pelo monitoramento, não foi adotado.

O Memorando Benczkowski (2018)5 focou nos critérios para definir a aplicação ou não de monitorias externas, assim como o processo de seleção dos monitores. Em especial, o memorando detalha os critérios para a avaliação dos benefícios dos monitores para a companhia e para o público. O DOJ, portanto, para avaliar se há benefícios ou não na aplicação de monitores independentes, deve considerar, dentre outros elementos, se a conduta penalizada envolveu manipulação de livros e registros contábeis, foi facilitada pela companhia ou pela alta administração, assim como se a empresa penalizada investiu significativamente em seu programa de integridade para prevenção de condutas similares no futuro. Inclusive, deve também ser levado em consideração o próprio custo que a monitoria terá à empresa penalizada.

Nas mesmas linhas, têm-se os Memorandos Monaco (2021 e 2022)6. No que tange ao monitor independente, destacam-se as seguintes previsões sobre seu uso, seleção e reporte7: (i) nos casos em que empresas voluntariamente informarem às autoridades públicas condutas relevantes e que demonstrarem a implementação eficiente de programa de compliance não terão a requisição de monitoramento independente pelo DOJ; (ii) os critérios objetivos para a averiguação da necessidade de monitores independentes, tais como fornecimento voluntário da empresa sobre violações de conduta cometidas, participação da equipe da área de Compliance no ilícito investigado, em que medida a empresa está sujeita a autoridades reguladoras nacionais ou internacionais, etc.; e (iii) os monitores independentes devem relatar periodicamente aos procuradores sobre o andamento dos trabalhos previamente acordados, quaisquer conflitos existentes com a empresa, tal como não ter acesso à informação, ao pessoal e aos recursos necessários para implementação dos aprimoramentos necessários.

O Memorando Kenneth (2023)8, por sua vez, retoma considerações de memorandos anteriores, Morford, Breuer e Monaco, mas aprofundando a seleção de monitores, os acordos celebrados entre as empresas e o DOJ e a participação do standing committee.  Para além dos fatores a serem considerados quando da avaliação da necessidade de um monitor independente, destaca-se, entre as diversas recomendações, que os acordos entre a divisão criminal do DOJ e a empresa envolvida devem conter cláusulas específicas sobre a participação do Monitor: (i) qualificações requeridas; (ii) processo de seleção e de substituição do monitor; (iii) compromisso de seleção do monitor em 60 dias; (iv) responsabilidades do monitor e escopo do monitoramento; e (v) a duração do monitoramento.

Por fim, o memorando mais atual da divisão criminal do DOJ é o Memorando Galeotti (2025)9. Para além de previsões sobre a seleção dos monitores, o memorando traz seção específica para assegurar que as monitorias foram elaboradas conforme as necessidades do caso concreto. Para isso, devem ser levados em consideração 3 fatores: (i) o custo do monitor deve ser proporcional à severidade da conduta penalizada, aos lucros, ao tamanho e aos riscos da empresa envolvida; (ii) deve haver alinhamento constante entre o monitor, o DOJ e a empresa monitorada, motivo pelo qual devem ocorrer, pelo menos, duas reuniões anuais entre essas três partes; e (iii) a monitoria independente deve ser compreendida como um esforço coletivo entre o monitor, DOJ e a empresa, cujo objetivo final é a criação/aprimoramento de um programa de compliance baseado em riscos que previna condutas similares no futuro.

A imposição de monitores e preocupações quanto à sua seleção também são objetos de análise de memorandos das divisões cível e tributária do DOJ. Na seara cível, destacam-se dois memorandos: Memorando Delery10 e Memorando Gupta11. O memorando Delery estabelece as principais diretrizes para a seleção e aplicação de monitores em casos cíveis. Os três princípios que guiam a seleção, conforme o memorando, são: a escolha de monitor respeitado e qualificado; prevenção a conflitos de interesse; e garantir a confiança do público no processo de seleção.

O Memorando Gupta, por sua vez, sugere maior participação da população no processo de seleção dos monitores, reforçando sua preocupação com mais transparência nos critérios de seleção e imposição das monitorias. Para isso, estabelece 5 princípios:

  • Monitorias devem ser elaboradas para reduzir custos judiciais e prevenir conflitos de interesse;
  • Monitores possuem responsabilidade perante o judiciário, as partes envolvidas e a população;
  • Monitorias devem levar em consideração múltiplas jurisdições;
  • Monitorias devem estabelecer constante contato com a comunidade afetada; e
  • Monitorias devem auxiliar no cumprimento tempestivo dos acordos que as implementaram, evitando prorrogações desnecessárias.

No que tange à divisão tributária do DOJ, destaca-se o memorando "Selection of Monitors in Tax Division Matters"12. Nele, dentre outras alterações, destaca-se a inclusão de obrigações da empresa quanto ao trabalho do monitor e do monitoramento: (i) facilitar e conceder ao monitor o acesso a documentos, recursos, registros, áreas, colaboradores da companhia; (ii) aconselhar o monitor quanto à legislação local aplicável; e (iii) conceder ao monitor o acesso a ex-colaboradores e terceiros da companhia.

Inclusive, a própria ordem dos advogados norte-americana (ABA - American Bar Association) possui documento específico sobre uso de monitores independentes: "ABA Standards for Criminal Justice Monitors and Monitoring"13. O guia define regras sobre temas semelhantes aos memorandos acima, tais como as garantias para desempenho das funções do monitor, a seleção e retirada de monitores e relatórios periódicos a serem apresentados. O que se destaca, contudo, são as situações que configuram conflitos de interesses na seleção do monitor e que, portanto, impedem o candidato de exercer essa função: ex-agentes públicos ou quaisquer outras pessoas que trabalharam no caso que ensejou o monitoramento; pessoas que estavam envolvidas na estruturação do programa de compliance da empresa implementado no momento dos ilícitos; pessoas que tenham interesses financeiros relacionados à empresa envolvida ou que prestaram serviços jurídicos ou não à empresa envolvida relativos ao caso que ensejou o monitoramento.

Nota-se, portanto, que o uso de monitores é um instrumento tradicional do sistema jurídico estadunidense, em particular nos casos envolvendo corrupção transacional, litígios criminais, civis e administrativos de diferentes naturezas, podendo ser utilizado em outras esferas, como em casos antitruste, ambientais, litígios societários, etc14. Tal instituto, inclusive, foi utilizado em acordos envolvendo empresas brasileiras, como a Embraer, Braskem e Odebrecht. Nesses casos, houve atuação paralela do DOJ com o MPF, como será visto nos próximos artigos sobre o uso dos Monitores Corporativos Independentes por autoridades públicas no Brasil.

___________

ATHAYDE, Amanda. SZMID, Rafael. BUTURI, Pedro Henrique Ache. Monitores corporativos independentes anticorrupção e antitruste: O que são? O que fazem? Onde vivem? Quais suas vantagens e desvantagens?  Migalhas, 17.9.2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/440224/monitores-corporativos-independentes-anticorrupcao-e-antitruste

2 ESTADOS UNIDOS. Departamento de Justiça. Memorandum Morford, Office of the Deputy Attorney General, U.S. Department of Justice, March 7, 2008. Disponível em: https://www.justice.gov/sites/default/files/dag/legacy/2008/03/20/morford-useofmonitorsmemo-03072008.pdf. Acesso em: 23 set. 2020.

3 Disponível em: https://www.justice.gov/sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2012/11/14/response3-supp-appx-3.pdf. Acesso em 4 fev. 2024.

4 Disponível em: https://www.justice.gov/archives/usam/criminal-resource-manual-166-additional-guidance-use-monitors-dpas-and-npas. Acesso em 4 fev. 2024.

5 Disponível em: https://www.justice.gov/archives/opa/speech/file/1100531/dl?inline. Acesso em 26 jul. 2025.

6 Disponíveis, respectivamente, em: https://www.justice.gov/dag/page/file/1445106/download e  https://www.justice.gov/d9/pages/attachments/2022/09/15/2022.09.15_ccag_memo.pdf. Acesso em fev. 5 2024.

7 Os Memorandos Monaco também tratam de outros temas, tais como a consideração de todo o histórico de más condutas da empresa envolvida, fornecimento de informações relevantes e responsabilização individual das pessoas físicas envolvidas.

8 Disponível em: https://www.justice.gov/archives/opa/speech/file/1571916/dl?inline=. Acesso em 4 fev. 2024.

9 Disponível em: https://www.justice.gov/criminal/media/1400036/dl?inline. Acesso em 23 jul. 2025.

10 Disponível em: https://www.justice.gov/oip/foia-library/asg_memo_statement_of_principles_corporate_monitors_civil_settlements/dl. Acesso em 23 jul. 2025

11 Disponível em: https://www.justice.gov/archives/ag/file/1166091-0/dl?inline. Acesso em 24. jul 2025.

12 Disponível em: https://www.justice.gov/d9/pages/attachments/2023/04/04/final_selection_of_monitors_in_tax_division_matters.pdf.  Acesso em 5 fev. 2024.

13 Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/criminal_justice/standards/MonitorsStandards/. Acesso em 4 fev. 2024.

14 SZMID, Rafael. Monitores corporativos anticorrupção no Brasil: um guia para sua utilização no processo administrativo e judicial. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2021. p. 23.

Amanda Athayde

Amanda Athayde

Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

Rafael Szmid

Rafael Szmid

Counsel no escritório global Reed Smith. Advogado licenciado no Brasil e nos Estados Unidos (Nova Iorque). Mestre e Doutor, Universidade de São Paulo. LL.M., Stanford Law School. Membro da International Association of Independent Corporate Monitors. Autor do livro "Monitores Corporativos Anticorrupção no Brasil: Um Guia para sua Utilização no Processo Administrativo e Judicial" e de artigos acadêmicos sobre anticorrupção, antitruste e compliance.

Pedro Henrique Ache Buturi

Pedro Henrique Ache Buturi

Advogado em Silva Prado Advogados. CPC-A. Pós-graduado em Direito Empresarial. As opiniões são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais esteja vinculado.

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