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IRR e reafirmação de jurisprudência no TST - entre precedente e súmula

Ao reafirmar sua jurisprudência em um IRR, o TST parte de um caso, mas fundamenta-se em muitos. Como identificar sua ratio? Onde está o seu elemento vinculante? Quais os contornos fáticos relevantes?

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Atualizado às 14:01

Em outra oportunidade sustentei que o TST estava construindo um navio, a saber, um vasto arcabouço de precedentes qualificados voltados à uniformização vertical da jurisprudência trabalhista nacional. Na ocasião, parafraseando Saint-Exuperry, afirmei que a construção de um navio demanda mais que uma paixão pela imensidão do azul do mar. Demanda pregos e madeira. O paralelo é este: não basta desejar criar precedentes qualificados; é preciso de forma, meios, regras, ritos, procedimentos.

No estudo anterior procurei demonstrar que os pregos e a madeira de que o TST vem se valendo em 2025 para produzir seu navio de precedentes tão rapidamente decorrem de uma significativa arquitetura regimental montada no final de 2024. Apontei que a engrenagem que mais acentuadamente acelerou o processo de criação de precedentes trabalhistas foi o IRR em reafirmação de jurisprudência - uma espécie de "procedimento sumaríssimo" do IRR "comum". Procurei definir conceitos importantes implicados no sistema de precedentes, como súmula, jurisprudência e duas acepções diferentes de precedentes. Destaquei um requisito constitucional para a legitimidade de qualquer produto do Judiciário: a relação a casos concretos. Convido o leitor a conhecer a primeira parte deste artigo para que meu argumento, nesta segunda parte, faça mais sentido, leia clicando aqui!

Naquela primeira parte procurei "limpar o campo". Nesta segunda parte vou utilizar o arcabouço conceitual já desenvolvido para tratar de uma peculiaridade dos IRRs em reafirmação de jurisprudência que exige um cuidado especial no momento de observá-los. Quero oferecer algumas reflexões sobre a interação de um precedente qualificado, como o incidente de recursos de revista repetitivos, com a jurisprudência que ele procura reafirmar, no caso de IRRs em reafirmação, e também com a disciplina legal das súmulas.

A argamassa: Jurisprudência e precedente qualificado.

A função constitucional do Judiciário é julgar casos concretos. Nessa "betoneira"1 misturam-se todos os elementos que compõem a argamassa do sistema de precedentes.

No caso do IRR em reafirmação de jurisprudência, os elementos que mais evidentemente se misturam são o precedente qualificado e a jurisprudência.

Já tratamos sobre o conceito de jurisprudência e de precedente (em sentido comum).2 Agora vamos dar uma olhada no que significa precedente qualificado.

No common law, um precedente é uma decisão judicial produzida por uma corte com autoridade final para resolver aquela controvérsia.3 E por essa razão, ela deve ser observada pelos demais juízes e tribunais.4 Precedentes, portanto, são decisões judiciais com vocação para servir de guia autoritativo para julgar casos futuros.5

No Brasil, a tradição romano-germânica levava-nos a conceber as decisões das cortes de ápice como simples jurisprudência - isto é, como um sinal sobre o entendimento daquela corte, sem poder vinculante.6

Para romper com esse paradigma, o CPC/15 elencou determinados padrões decisórios que todos os juízes e tribunais devem observar - os chamados precedentes qualificados.

Precedente qualificado é um padrão decisório que o Poder Judiciário produz a partir do desempenho de sua função jurisdicional (vale relembrar: julgar casos concretos)7 e que possui vocação para servir de guia autoritativo para julgar casos futuros. Os precedentes qualificados estão arrolados no art. 927 do CPC.

Como se pode ver, os precedentes qualificados possuem a mesma função que os precedentes do common law. No entanto, embora sempre decorram de decisões judiciais, nem sempre são decisões puras e simples. Por exemplo, uma súmula não é uma decisão, mas a enunciação linguística resumida de um entendimento jurisprudencial consolidado.8

O recurso de revista repetitivo é um precedente qualificado encontrado no inciso III do art. 927 do CPC9 e no art. 896-C da CLT. Não pretendo esmiuçar seus requisitos nem esboçar um conceito agora. Quero apenas destacar que o recurso de revista repetitivo (o IRR) é um precedente qualificado - logo, um padrão decisório que juízes e tribunais estão obrigados a observar.

Via de regra, resulta do julgamento de um caso-piloto no qual se identifique uma questão de direito relevante ou acerca da qual haja divergência no âmbito do TST. Assim, o IRR tende a ser um precedente qualificado que resulta de uma decisão judicial (semelhante, nesse aspecto, com o precedente do common law).

Jurisprudência no horizonte, olhos nos "precedentes".

Entretanto, quando o conteúdo da controvérsia a ser afetada pelo rito do IRR representar entendimento consolidado em todas as turmas e na SbDI do TST, aciona-se o "procedimento sumaríssimo". Em vez de discutir uma questão de direito acerca da qual os órgãos julgadores do TST não tenham uniformidade, o pleno tão-somente chancela o entendimento já consolidado e estabelece-o como vinculante, uniformizando verticalmente uma jurisprudência já uniformizada horizontalmente.10

Aqui está a principal diferença desse tipo de IRR. Embora haja um caso concreto que veicule aquela controvérsia (o caso-piloto), os olhos do TST não estão voltados para aquele caso. A controvérsia travada entre as partes, as peculiaridades fáticas, os fundamentos adotados no acórdão recorrido, os argumentos suscitados pelo autor e pelo réu, não são aquilo sobre o que os ministros se debruçam. Em vez disso, os olhos do TST estão voltados para a sua compreensão acerca daquela controvérsia, em sentido amplo. Ou seja, em vez de analisar detidamente o caso, o TST apenas verifica que a controvérsia nele discutida já é objeto de entendimento consolidado em seus órgãos fracionários. Não discute a controvérsia e nem o caso, mas apenas o enquadra na moldura de uma controvérsia geral amplamente conhecida por meio de casos anteriores. Vale dizer, o TST não está com olhos no caso-piloto. Ele está com olhos na sua própria jurisprudência.

Isso pode ser facilmente constatado quando analisam-se os acórdãos dos IRRs em reafirmação. A proporção de texto dedicado ao caso concreto (normalmente um ou dois parágrafos) é irrisória quando comparada à quantidade de páginas dedicada à demonstração da existência de jurisprudência consolidada sobre o assunto.11

Um exemplo disso é o IRR Tema 50, que tem oito páginas e nenhuma referência ao caso concreto. Sequer é transcrito o trecho do acórdão recorrido que demonstra o prequestionamento da controvérsia. Em vez disso, o ministro relator dedica-se a justificar a necessidade de uniformização e a existência de multiplicidade de recursos sobre o tema e, discutindo a controvérsia em tese, a demonstrar existência de súmula de um regional em sentido contrário à jurisprudência consolidada no TST (transcrevendo ementas das oito turmas e da SbDI1). Ou seja, discute-se apenas a controvérsia na jurisprudência, e não no caso. Esse tem sido o formato padrão nos demais IRRs em reafirmação de jurisprudência.

Percebe-se o contraste na comparação, por exemplo, com o IRR Tema 8, que não se deu por reafirmação de jurisprudência: 11 páginas de relatório, mais de 30 páginas de discussão sobre a controvérsia afetada, analisando-se jurisprudência e argumentos das partes e dos amici curiae, e dezenas de outras páginas enfrentando (para acolher ou refutar) argumentos.

Meu ponto, aqui, não é a profundidade da análise ou a extensão do acórdão. O que quero ressaltar é que, embora o IRR em reafirmação decorra de um caso, até agora a prática vem demonstrando que o TST está menos preocupado com ele do que com sua própria jurisprudência a ser reafirmada. Em todos os IRRs em reafirmação produzidos até esta data, o ministro relator apresenta decisões de todas as suas turmas para justificar a adoção do "procedimento sumaríssimo", estatística de repetitividade e entendimentos regionais dissonantes. Mas, via de regra, não esclarece os contornos do caso que serviu como piloto.

Ora, se os olhos do TST não estão voltados para um caso, mas para vários, então o elemento vinculante de um IRR não decorre do julgamento de apenas um caso concreto. É certo que o IRR tem um caso concreto. Poderíamos analisar o acórdão recorrido para conhecê-lo - e temos de fazê-lo! Porém, se o TST não delineou seu precedente apenas a partir desse caso, mas, sim, a partir de vários (uma jurisprudência consolidada), então todos esses casos são importantes para compreender o quê, afinal de contas, o TST decidiu. A adequada compreensão da vinculatividade desse precedente passa, portanto, pela compreensão da jurisprudência reafirmada, mais do que pelo julgamento do caso.

Identificação da ratio: IRR em reafirmação de jurisprudência e "súmula vinculante"

Se o elemento vinculante do IRR em reafirmação de jurisprudência decorre de várias decisões (precedentes em sentido comum), e não apenas de uma (precedente tipo common law), então esse precedente qualificado se assemelha muito a uma súmula. E as súmulas, como afirmei muitas vezes na primeira parte deste estudo, estão ligadas aos "precedentes que motivaram a sua criação" (art. 926, § 2º, CPC).

O IRR em reafirmação de jurisprudência, portanto, é semelhante a uma súmula vinculante. E isso não deve escandalizar. Está tudo bem. As súmulas (tanto as comuns como as vinculantes) também são precedentes qualificados. Portanto, não estou querendo "denunciar um desvio". Estou querendo destacar a necessidade de observarmos uma técnica de criação e aplicação desse tipo de precedente.

Da necessidade de o precedente estar vinculado aos fatos da jurisprudência que ele quer reafirmar extrai-se uma implicação quando da sua criação e outra quando da sua aplicação.

Primeira implicação. Ao criar um IRR em reafirmação, o TST deve cuidar para que todos os precedentes citados no acórdão que demonstram a existência de uma jurisprudência consolidada tratem da mesma controvérsia. Se os fatos forem outros, ou se os mesmos fatos forem analisados à luz de fundamentos distintos, então não se poderá afirmar que exista uma jurisprudência a reafirmar. No IRR Tema 123, por exemplo, alguns acórdãos tratam da questão afetada à luz do princípio da estabilidade financeira e outras à luz do princípio da vedação da alteração lesiva do contrato de trabalho. Em alguns casos o trabalhador já estava percebendo a parcela incorporada; em outros ainda não.

Segunda implicação. Ao aplicar ou afastar um IRR em reafirmação, os juízes e tribunais deverão considerar os contornos não apenas do caso-piloto, mas deverão compreendê-los também a partir dos demais casos citados no acórdão pelo TST para definir com mais precisão o alcance e os limites vinculativos do precedente - tal como na aplicação de súmulas. No caso-piloto do IRR Tema 61, o trabalhador transportava, em média, R$ 3 mil a R$ 3.5 mil. Mas, se o que o TST está fazendo é reafirmar sua jurisprudência consolidada, e fez isso citando oito acórdãos como representativos dessa jurisprudência, então seria razoável supor que esses outros oito casos se enquadram na mesma compreensão, ainda que neles os trabalhadores transportassem valores distintos. Os outros acórdãos, portanto, auxiliam na compreensão dos parâmetros para definir qual é a quantidade de valores que, transportados por trabalhador não especializado, representam risco indenizável in re ipsa, no entendimento da Corte de Precedentes. A compreensão do TST sobre a quantidade de valores transportados para a incidência do precedente é enriquecida por mais exemplos, ficando mais clara.

Conclusão: O IRR em reafirmação como um tertium genus

Um acórdão proferido em um incidente de julgamento de recursos de revista repetitivos representa uma decisão com vocação para guiar outras. Já uma súmula adquire essa vocação não a partir do julgamento de um recurso, mas de vários. O IRR em reafirmação é uma terceira via: serve como guia autoritativo para outras decisões, mas decorre do julgamento tanto de um incidente processual específico (precedente qualificado) como de várias decisões já proferidas acerca daquela controvérsia (precedentes em sentido comum que, alinhados, formam jurisprudência).

Um IRR em reafirmação de jurisprudência serve para tornar vinculante a autoridade judiciária do TST, de conferir, em última palavra, a interpretação ao ordenamento jurídico trabalhista decorrente dos casos julgados (os seus "precedentes", na dicção do art. 926, § 2º, do CPC). Se a função do Judiciário está ligada ao julgamento de casos concretos, são as decisões publicadas ao longo de anos, representando um entendimento consolidado, diante das controvérsias concretas suscitadas pelas partes nos processos judiciais, que embasam a legitimidade desse tipo de precedente.

Logo, a vinculatividade de um precedente firmado em IRR de reafirmação de jurisprudência está diretamente ligada à jurisprudência reafirmada. É preciso olhar para os casos concretos julgados nesses "precedentes" (novamente: art 926, § 2º, do CPC). É nos contornos fáticos e jurídicos desses casos, e não na discussão da controvérsia "em tese", que um IRR em reafirmação de jurisprudência está adequado ao design constitucional de distribuição de competências.

_________________

1. Na primeira parte deste estudo desenvolvi a imagem da função judiciária, sempre relacionada a julgar casos concretos, como a betoneira na qual os elementos da argamassa (precedentes, súmula, jurisprudência) se misturam para produzir um sistema de precedentes sólido. Cf. BAINI, Gustavo. IRR e reafirmação de jurisprudência no TST - palavras e conceitos. Disponível aqui.

2. BAINI, Gustavo. IRR e reafirmação de jurisprudência no TST - palavras e conceitos. Disponível aqui.

3. CROSS, Rupert; HARRIS, J.W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Clarendon Press, 1991, pp. 103 e ss.

4. LEWIS, Sebastian. 'On the Nature of Stare Decisis. In: ENDICOTT, Timothy; KRISTJÁNSSON, Hafsteinn Dan; LEWIS, Sebastian (eds.). Philosophical Foundations of Precedent. Oxford, Oxford, 2023. SUMMERS, R. Introduction, In: MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting Precedents. Oxfordshire: Routledge, 2016, pp. 1-3

5. GARNER, Bryan et. al. The Law of Judicial Precedent. Thomson Reuters, 2016, p. 22. MacCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

6. TARUFFO, Michele. El precedente judicial en los sistemas de Civil Law. Revista Ius et Veritas, n. 45, dezembro de 2012.

7. Exceção feita ao desempenho da função jurisdicional na condição especialíssima de controlar a constitucionalidade das leis em abstrato - as ações de controle concentrado no STF.

8. Cf. o que se disse a respeito da súmula (e também do precedente e da jurisprudência) em BAINI, Gustavo. IRR e reafirmação de jurisprudência no TST - palavras e conceitos. Disponível aqui.

9. Supletivamente aplicável ao processo do trabalho por força do art. 896-B da CLT.

10. PRITSCH, César. Reafirmação de jurisprudência: força nova para a jurisprudência antiga do TST. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reafirmacao-de-jurisprudencia-forca-nova-para-a-jurisprudencia-antiga-do-tst. Acesso em 07/09/2025.

11. É claro que a quantidade de texto não é o único parâmetro para dizer onde estão os olhos do TST. Mas a qualidade do texto também deve ser levada em consideração. Onde está o esforço argumentativo da Corte: em expor e analisar o caso, seus argumentos e contornos fáticos, ou em enquadrá-lo na jurisprudência a ser reafirmada? Também vale ressaltar que o esforço de demonstrar a existência de uma jurisprudência consolidada é absolutamente legítimo e imprescindível para que o IRR adote o rito da reafirmação. A crítica, aqui, não diz respeito ao esforço feito. Mas ao não feito.

Gustavo Martins Baini

Gustavo Martins Baini

Mestre em Direito (UFRGS) e Doutorando em Direito (Universidade de Lisboa). Coordenador de Agravos Internos na Secretaria de Recurso de Revista do TRT4. Professor e autor de artigos e livros.

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