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Gratuidade da justiça: Instrumento constitucional ou combustível para a litigância abusiva?

Dados do Justiça em Números 2025 revelam que mais de R$ 37 bilhões foram consumidos por ações com assistência judiciária gratuita - muitas delas estruturadas sobre práticas abusivas que distorcem a função constitucional do processo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Atualizado às 15:01

Acesso à justiça: um direito inegociável

A gratuidade da justiça é uma das expressões mais concretas do princípio constitucional do acesso à justiça. Prevista no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, ela garante que ninguém será impedido de recorrer ao Poder Judiciário por insuficiência de recursos. Trata-se de um pilar democrático essencial: o Estado assegura que os direitos não fiquem restritos a quem pode pagar custas e honorários, cumprindo sua missão de viabilizar a justiça como bem público.

Mas, como quase tudo no campo dos direitos fundamentais, a gratuidade não é apenas uma conquista. É também um desafio - e, no Brasil, tornou-se cada vez mais evidente que esse instituto tem sido, em larga medida, desvirtuado por práticas que vão muito além do acesso legítimo ao Judiciário.

O retrato em números: um custo bilionário e crescente

O Justiça em Números 2025, publicado pelo CNJ, traz dados que ajudam a dimensionar a magnitude desse tema. Em 2024, o Poder Judiciário brasileiro movimentou cerca de 120 milhões de processos, considerando tanto os que já estavam em tramitação (80,6 milhões) quanto os novos ingressados (39,4 milhões).

O custo total para manter essa estrutura foi de impressionantes R$ 146,5 bilhões - valor equivalente a 1,2% do PIB nacional e a 2,45% de todos os gastos públicos do país. Só a Justiça Estadual respondeu por R$ 91,67 bilhões, o que representa 62,6% de todo o orçamento do Judiciário.

Agora, o dado mais revelador: 25,5% dos processos arquivados em 2024 tramitaram com AJG - assistência judiciária gratuita. Em outras palavras, um em cada quatro processos no Brasil não gerou qualquer custo direto para a parte demandante - o que, por si só, é uma vitória do acesso à justiça.

Mas ao cruzarmos esse percentual com o custo médio por processo (cerca de R$ 1.220,83, considerando estoque e novos casos), chegamos a um número que precisa ser debatido: aproximadamente R$ 37,4 bilhões do orçamento público foram destinados a financiar processos gratuitos em 2024.

Quando a gratuidade deixa de ser acesso e vira estratégia

Garantir acesso à justiça não é apenas constitucionalmente legítimo - é indispensável. O problema surge quando um direito concebido para proteger os vulneráveis se transforma em instrumento estratégico de litigância abusiva, sustentando um modelo de negócio que se aproveita do processo para obter vantagem econômica.

O fenômeno tem se intensificado em áreas como empréstimos consignados e ações revisionais, em que estruturas especializadas fabricam demandas em série, muitas vezes com base em condutas que nada têm de legítimas:

  • Fatiamento de ações: em vez de discutir a totalidade de um contrato, ajuízam-se dezenas de ações isoladas sobre parcelas específicas, multiplicando o volume de processos e o custo para o sistema.
  • Ajuizamento sem ciência do autor: há milhares de casos em que a parte sequer sabe que figura como autora, violando a boa-fé e o devido processo legal.
  • Captação irregular de clientes: redes organizadas aliciam consumidores, em afronta direta ao Estatuto da Advocacia e ao Código de Ética da OAB.
  • Apropriação indevida de valores: advogados retêm total ou parcialmente os valores de condenações, desviando recursos que deveriam chegar ao consumidor.

Essas práticas seriam graves em qualquer circunstância. Mas quando somadas ao fato de que o custo de cada ação é absorvido pelo Estado por meio da gratuidade da justiça, a distorção se torna ainda mais preocupante. Estamos diante de uma dupla perversão: o uso abusivo do processo e a socialização dos custos dessa conduta.

O custo invisível da litigância abusiva financiada pelo Estado

O número de R$ 37,4 bilhões é mais do que uma estatística. Ele representa recursos públicos reais que foram destinados, em boa parte, a sustentar ações que nem sempre têm legitimidade material. Para colocar isso em perspectiva, esse valor seria suficiente para financiar:

  • A construção de mais de 370 hospitais de médio porte;
  • A criação de cerca de 12 mil escolas públicas;
  • A distribuição anual de cestas básicas para mais de 10 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade.

Ao permitir que ações artificiais e fraudulentas se beneficiem da gratuidade da justiça, o Estado acaba desviando recursos que poderiam ser aplicados em políticas públicas estruturantes. E, mais grave ainda, premia comportamentos oportunistas, tornando barato litigar - mesmo quando a demanda é infundada ou fabricada.

A gratuidade precisa ser preservada - e protegida

Nada disso significa que devamos restringir a gratuidade ou torná-la inacessível. Pelo contrário: ela é condição essencial para a concretização do acesso à justiça, especialmente em um país com desigualdades tão profundas como o Brasil.

O que precisamos é de uma mudança estrutural na forma como o instituto é aplicado e fiscalizado, para impedir que ele seja sequestrado por práticas abusivas. Algumas medidas urgentes se impõem:

  • Aprimoramento dos critérios de concessão: hoje, muitas vezes, a gratuidade é deferida automaticamente, sem análise aprofundada da real necessidade. É preciso reforçar a exigência de comprovação de hipossuficiência e permitir revisões quando há indícios de abuso.
  • Monitoramento e cruzamento de dados: sistemas automatizados podem identificar padrões suspeitos, como autores hiperlitigantes, endereços repetidos ou documentos idênticos, sinalizando possíveis fraudes.
  • Responsabilização efetiva: práticas como ajuizamento sem ciência da parte ou captação irregular de clientes devem gerar consequências concretas - não apenas éticas, mas também civis e, quando for o caso, criminais.
  • Integração com Centros de Inteligência: mapear comportamentos abusivos e compartilhar informações entre tribunais, OAB e Ministério Público é essencial para desarticular estruturas organizadas.

O caminho para um Judiciário sustentável

O Justiça em Números 2025 nos mostra que a litigiosidade brasileira permanece alta e que os custos do sistema continuam em patamares bilionários. Mostra também que um quarto de todo esse custo é financiado por ações gratuitas - o que é legítimo quando se trata de garantir direitos, mas inaceitável quando se trata de sustentar fraude.

O desafio, portanto, não é restringir a gratuidade, mas proteger sua integridade. O acesso à justiça não pode se tornar o álibi perfeito para a litigância abusiva. O processo não pode ser ferramenta de negócio. E a sociedade não pode continuar arcando com a conta de comportamentos que distorcem a finalidade do Judiciário.

Conclusão: proteger a gratuidade é proteger a democracia

A gratuidade da justiça é um dos instrumentos mais poderosos da democracia constitucional brasileira. Ela garante que a Justiça não seja um privilégio, mas um direito. No entanto, quando transformada em escudo para práticas abusivas e modelo de negócio, ela deixa de cumprir sua função e passa a corroer o próprio sistema que deveria fortalecer.

Os dados do Justiça em Números 2025 não deixam dúvidas: R$ 37,4 bilhões do orçamento público foram consumidos com processos gratuitos em 2024. É hora de decidir se esse dinheiro continuará financiando distorções - ou se será usado para garantir que a Justiça cumpra o papel para o qual foi criada: proteger direitos, resolver conflitos legítimos e servir ao interesse público.

Proteger a gratuidade é, no fim das contas, proteger o Estado de Direito. E isso exige coragem institucional, inovação tecnológica e um compromisso coletivo com a integridade do processo judicial.

Viviane Ferreira

Viviane Ferreira

Sócia - Diretora jurídica de Excelência e experiência do cliente do Parada Advogados. Mestranda no IDP-Brasília.

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