A violação do princípio da irretroatividade da lei penal - Parte final
Trata-se de uma garantia fundamental que protege os cidadãos contra o arbítrio do Estado e que deve ser respeitada mesmo quando se trata de mudanças jurisprudenciais dos tribunais superiores.
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Atualizado às 11:13
Após uma análise aprofundada nas duas primeiras partes, chegamos à conclusão deste artigo, que aborda um tema de extrema delicadeza e relevância. As discussões anteriores nos permitiram explorar diferentes facetas da questão, e agora, nesta última parte, buscaremos consolidar os principais pontos levantados e oferecer reflexões finais que nos ajudem a compreender a complexidade do assunto. É essencial que continuemos a dialogar e a buscar soluções, e esperamos que este artigo contribua para esse importante conversa.
4.4 - As Implicações da mudança de posicionamento
A mudança de posicionamento dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes no Tema 1068 tem implicações que transcendem o caso específico do Tribunal do Júri. Esta mudança representa um precedente perigoso que pode ser utilizado para justificar a aplicação retroativa de outras mudanças jurisprudenciais desfavoráveis aos jurisdicionados, criando um ambiente de insegurança jurídica sem precedentes no sistema jurídico brasileiro.
Como observa a doutrina especializada, "a coerência jurisprudencial não é apenas uma questão de elegância intelectual, mas uma exigência fundamental do Estado de Direito" 24. Quando ministros do STF abandonam posicionamentos consolidados sem justificativa adequada, eles não apenas comprometem sua própria credibilidade, mas também enfraquecem a legitimidade da própria instituição.
Mais grave ainda é o fato de que esta mudança de posicionamento ocorre em detrimento dos direitos fundamentais dos acusados. Enquanto a jurisprudência do STF tem se mostrado cada vez mais rigorosa na proteção de direitos em outras áreas, no campo penal observa-se um movimento inverso, com o enfraquecimento sistemático das garantias constitucionais em nome de uma suposta eficiência do sistema de justiça criminal.
5 - A rejeição categórica da modulação dos efeitos
A decisão de 22 de agosto de 2025 representa um marco negativo na jurisprudência do STF sobre segurança jurídica e proteção dos direitos fundamentais. Ao rejeitar categoricamente o pedido da Defensoria Pública da União para modulação dos efeitos do Tema 1068, a Corte demonstrou um desprezo inaceitável pelos princípios constitucionais que sempre defendeu em outros contextos.
A argumentação do ministro Luís Roberto Barroso para negar a modulação é particularmente preocupante. Segundo o relator, "não é possível alegar uma aplicação indevida de retroatividade da lei penal em prejuízo do acusado, pela simples consideração de que a execução imediata da pena imposta pelo Tribunal do Júri tem por fundamento central norma originária do texto constitucional". Esta argumentação revela uma incompreensão fundamental sobre a natureza e os efeitos da mudança jurisprudencial operada pelo Tema 1068.
Como observam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, "pelos princípios em que se baseiam o direito brasileiro, o 'overruling' sempre demandará modulação dos efeitos, não sendo tal modulação facultativa"25. Esta observação é especialmente pertinente no campo penal, onde os direitos em jogo são de natureza fundamental e sua violação pode ter consequências irreversíveis.
A rejeição da modulação torna-se ainda mais grave quando se considera que o próprio STF já reconheceu a necessidade desta técnica em casos similares, como no julgamento do Tema 788. A contradição é evidente: enquanto em outros casos a Corte protege a segurança jurídica através da modulação, no Tema 1068 ela deliberadamente escolhe ignorar este princípio fundamental.
5.1 - A consolidação da insegurança jurídica
A decisão de 22 de agosto de 2025 consolida definitivamente um cenário de insegurança jurídica sem precedentes no sistema jurídico brasileiro. Ao confirmar a aplicação retroativa do Tema 1068 e rejeitar expressamente qualquer forma de modulação, o STF estabeleceu um precedente extremamente perigoso que pode ser utilizado para justificar outras violações similares.
Se mudanças jurisprudenciais desfavoráveis aos jurisdicionados podem ser aplicadas retroativamente sem qualquer limitação temporal, não há mais garantia de que os cidadãos possam orientar sua conduta com base em expectativas legítimas sobre a aplicação do direito. Este cenário é especialmente preocupante em um país como o Brasil, onde a jurisprudência do STF já é marcada por constantes mudanças de entendimento.
A unanimidade dos ministros na rejeição da modulação (Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Edson Fachin, Gilmar Mendes e André Mendonça) demonstra que a violação dos princípios constitucionais não foi um erro isolado, mas uma escolha deliberada da maioria da Corte. Esta escolha representa um retrocesso civilizatório inaceitável e uma ameaça concreta ao Estado de Direito.
As consequências desta insegurança jurídica transcendem o campo penal e podem afetar todas as áreas do direito. Se o próprio guardião da Constituição pode ignorar princípios constitucionais fundamentais quando lhe convém, não há mais garantia de estabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. Este cenário é incompatível com os fundamentos do Estado de Direito e representa um precedente perigoso para o futuro da democracia brasileira.
6. A Contradição com a Jurisprudência Consolidada
A aplicação retroativa do Tema 1068 representa também uma contradição flagrante com a própria jurisprudência consolidada do STF sobre a necessidade de modulação dos efeitos de mudanças jurisprudenciais significativas. Como demonstrado, a Corte já reconheceu em diversos precedentes a importância de proteger a segurança jurídica através da limitação temporal dos efeitos de suas decisões.
O caso mais paradigmático é o julgamento do Tema 788, em que o STF modulou expressamente os efeitos de sua decisão para que fosse aplicada apenas prospectivamente. Esta modulação demonstra que a própria Corte reconhece a necessidade de proteger expectativas legítimas dos jurisdicionados quando há mudanças significativas de entendimento.
A ausência de modulação no Tema 1068 não pode ser justificada por qualquer peculiaridade do caso, uma vez que os fundamentos constitucionais que justificaram a modulação no Tema 788 são exatamente os mesmos que deveriam ter sido observados no caso do Tribunal do Júri. Esta contradição revela uma aplicação seletiva e arbitrária dos princípios constitucionais, o que é incompatível com a função de guardião da Constituição exercida pelo STF.
7. Conclusão
A análise desenvolvida ao longo deste artigo permite concluir, de forma categórica, que a aplicação retroativa do entendimento fixado no Tema 1068 do STF constitui uma violação inaceitável de princípios constitucionais fundamentais. Esta conclusão tornou-se ainda mais evidente e urgente após a decisão de 22 de agosto de 2025, quando o STF, por maioria de sete votos, rejeitou definitivamente o pedido da Defensoria Pública da União para modulação dos efeitos, confirmando sua posição de aplicar retroativamente uma mudança jurisprudencial claramente prejudicial aos réus.
Esta decisão demonstra um desprezo inaceitável pelos princípios constitucionais da segurança jurídica e da irretroatividade, que sempre foram considerados pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito.
A contradição entre os posicionamentos históricos dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes sobre irretroatividade e suas decisões no Tema 1068 revela a gravidade da situação. Ambos os ministros, que durante décadas defenderam com veemência o princípio da irretroatividade como garantia fundamental, não apenas abandonaram seus posicionamentos consolidados, mas também rejeitaram expressamente qualquer tentativa de modulação que pudesse preservar a segurança jurídica.
A decisão de 22 de agosto de 2025 consolida definitivamente um cenário de insegurança jurídica sem precedentes no sistema jurídico brasileiro. Ao confirmar que mudanças jurisprudenciais desfavoráveis aos jurisdicionados podem ser aplicadas retroativamente sem qualquer limitação temporal, o STF estabeleceu um precedente extremamente perigoso que ameaça os fundamentos do Estado de Direito.
O princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, consagrado no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, não é uma mera formalidade jurídica que pode ser ignorada quando conveniente ao poder público. Trata-se de uma garantia fundamental que protege os cidadãos contra o arbítrio do Estado e que deve ser respeitada mesmo quando se trata de mudanças jurisprudenciais dos tribunais superiores.
As consequências desta decisão transcendem o caso específico do Tribunal do Júri e podem afetar todo o sistema jurídico brasileiro. O precedente criado pela aplicação retroativa do Tema 1068, agora definitivamente confirmado, pode ser utilizado para justificar outras violações similares, criando um ambiente de insegurança jurídica generalizada que é incompatível com os fundamentos do Estado de Direito.
A rejeição da modulação dos efeitos é particularmente grave quando se considera que o próprio STF já reconheceu a necessidade desta técnica em casos similares, como no julgamento do Tema 788. Esta contradição revela uma aplicação seletiva e arbitrária dos princípios constitucionais, onde a proteção da segurança jurídica depende da conveniência política ou ideológica da maioria da Corte.
Em um país que precisa de estabilidade institucional para consolidar sua democracia, a violação de princípios constitucionais básicos pelo próprio guardião da Constituição representa um sinal de alerta que não pode ser ignorado.
Por todas estas razões, conclui-se de forma definitiva que não é possível a aplicação retroativa do entendimento fixado no Tema 1068, uma vez que tal aplicação fere frontalmente a Constituição Federal e representa uma ameaça concreta ao Estado Democrático de Direito.
A mudança de posicionamento é salutar quando fundamentada em razões constitucionais sólidas e quando observa os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima. Contudo, quando esta mudança vai contra a própria Constituição, viola direitos fundamentais e é aplicada retroativamente em prejuízo dos jurisdicionados, ela se torna inaceitável e gera uma insegurança jurídica que compromete a legitimidade do próprio sistema de justiça.
A aplicação retroativa do Tema 1068, agora definitivamente confirmada, deve ser reconhecida pelo que realmente é: uma violação inaceitável da Constituição Federal que compromete a segurança jurídica e ameaça os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros.
Esta é a única conclusão compatível com uma análise honesta e rigorosa dos fatos e do direito.
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Referências da seção:
24 DOUTRINA ESPECIALIZADA. Coerência jurisprudencial e Estado de Direito.
25 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil.


