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Apuração de haveres e critério patrimonial no REsp 2.063.134/MG

Apuração de haveres no REsp 2.063.134/MG: STJ reforça critério patrimonial, exclui lucros futuros e exige transparência na prova contábil.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Atualizado às 09:06

A dissolução parcial de sociedades é sempre um terreno sensível do Direito Empresarial, sobretudo quando o contrato social não prevê de forma clara como devem ser apurados os haveres do sócio que opta por se retirar.

Este artigo se destina a elucidar três importantes pontos estabelecidos pelo STJ no julgamento do REsp 2.063.134/MG1: a exclusão dos lucros futuros da apuração de haveres, a fragilidade da perícia diante da ausência de documentos e a responsabilidade da parte que se omite em fornecer informações.

A iniciarmos pela exclusão dos lucros futuros da apuração de haveres, é pertinente iniciarmos com a definição de lucro. Conforme os ensinamentos de Alberto Asquini, o lucro é a remuneração típica do empresário, justamente por assumir riscos de duas naturezas: o técnico, ligado ao processo produtivo, e o econômico, relacionado à incerteza de que os custos serão cobertos pelos resultados. Nessa lógica, só há legitimidade em falar de lucro quando há quem assuma risco; quem se afasta da sociedade não pode projetar para si ganhos que já não depende de se realizar2.

Essa compreensão também explica o motivo de o legislador brasileiro, ao prever a aplicação do balanço de determinação na ausência de cláusula contratual, optou pelo critério patrimonial para a apuração de haveres.

A apuração com base no patrimônio efetivo da sociedade não elimina incertezas econômicas, mas as neutraliza: ao valorizar ativos e passivos existentes, oferece ao sócio retirante aquilo que de fato lhe pertence, sem transferir a ele riscos e oportunidades que pertencem ao futuro da empresa. Trata-se de um ponto de equilíbrio entre a proteção individual do dissidente e a preservação da coletividade societária.

Neste ponto, o judicioso voto de relatoria do ilustre ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, citando jurisprudência anterior da Corte, é assertivo ao pontuar que: "A avaliação pelo valor patrimonial evita que a expectativa de lucro futuro seja incluída no cálculo, o que configuraria uma distorção do próprio conceito de investimento na atividade empresarial (...). E, quando se diz que a avaliação deve se dar pelo critério patrimonial, significa que será levantado um balanço de determinação, no qual os bens e direitos serão calculados pelo valor de mercado, descontado o passivo, chegando-se no valor patrimonial da quota. É certo que o valor patrimonial a preço de mercado é figura de certo modo incoerente para a contabilidade; porém, para o Direito, significa que no balanço os bens depreciados serão considerados não pelo preço de aquisição, mas pelo valor que alcançariam caso vendidos na data da dissolução (preço de saída). (...). No que importa à perspectiva de lucros futuros, verifica-se que os ativos intangíveis precisam ser identificáveis, de modo que se possa diferenciar o valor de mercado do ágio derivado da expectativa de rentabilidade futura. Na apuração de haveres em decorrência da saída de um sócio, devem ser considerados os benefícios já gerados, e não a perspectiva de rentabilidade."

Protege-se, assim, a continuidade da atividade ao rejeitar a metodologia do fluxo de caixa descontado. É de se asseverar, no entanto, que não há óbice a se prever regras diferentes no contrato social, o que demanda uma análise pormenorizada e cuidadosa por parte dos profissionais.

O julgamento também chamou atenção para a qualidade da prova contábil.

No mencionado caso, o perito se valeu apenas de declarações fiscais e do Livro Diário porque os sócios remanescentes não apresentaram documentos mais completos, como balancetes, livros razão e balanços específicos.

Essa limitação fragilizou o laudo, que deixou de refletir com precisão a real dimensão do patrimônio social, pois as informações fiscais servem a propósitos declaratórios, mas não substituem demonstrações financeiras, que são o instrumento adequado para aferir a posição econômica da empresa.

Por sua vez, a conduta consubstanciada na omissão dos sócios remanescentes em entregar a documentação necessária à perícia, segundo definiu a Corte, não pode servir para reduzir artificialmente o valor da quota do sócio retirante, e caso o Judiciário admitisse esse tipo de manobra, estaria legitimando práticas de má-fé que corroem a confiança nas relações societárias.

Sobre o tema, Martins-Costa3 que "a boa-fé, como standard por excelência da conduta leal, atuará para conforma o exercício in concreto do dever de lealda, pontuando, inversamente, os limites opostos ao exercício societário desleal". Assim, o dever de lealdade apresenta-se, "em temas tais como o conflito de interesses, exclusão de sócios, ou quando os sócios assumem a posição de administradores, situação na qual os deveres que recaem sobre os administradores e sócios, muitas vezes, se sobrepõem", ou seja, os sócios têm o dever de lealdade e transparência, e esse dever não se esgota nem mesmo diante de litígios.

O judicioso voto do ilustre ministro relator bem evidencia essa disparidade ao dispor que: "Com efeito, ainda que na apuração de haveres seja vedada a inclusão das expectativas de resultados futuros, não pode o sócio dissidente suportar o prejuízo resultante da inércia da parte contrária em fornecer a documentação necessária à apuração do verdadeiro valor patrimonial da sociedade. Não sendo possível a realização da prova pericial por culpa dos demandados, deverão as instâncias ordinárias ponderar sobre a possibilidade de adoção do valor estimado, à luz das normas atinentes à distribuição do ônus da prova."

A decisão, diante de todo o contexto, cumpre um duplo papel ao resolver o caso concreto, mas também projeta uma orientação mais ampla: a apuração de haveres deve refletir o patrimônio real, sem ficções de lucros futuros, e precisa ser conduzida de forma transparente, afastando condutas estratégicas de ocultação documental. Trata-se, sobretudo, de um precedente pedagógico, que confere maior previsibilidade às dissoluções societárias.

Por fim, o REsp 2.063.134/MG reafirma a primazia do critério patrimonial na apuração de haveres, afastando a inclusão de lucros futuros e impondo a necessidade de transparência e de prova contábil completa, estabelecendo-se sanções ao sócio que deliberadamente omite documentos necessários à avaliação das cotas sociais.

_________

1 3ª. Turma, Relator Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, DJEN/CNJ de 18/8/25

2 ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 104, p. 109-126, out./dez. 1996, p. 110-111

3 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 315/316

Juarez Arnaldo Fernandes

VIP Juarez Arnaldo Fernandes

Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

Adriano Henrique Baptista

Adriano Henrique Baptista

Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Ex-assessor de juiz no TJPR. Advogado e administrador judicial.

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