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ECA Digital inaugura marco histórico de proteção de crianças e adolescentes no ambiente online

A lei 15.211/25 cria regras rígidas para plataformas, reforçando proteção e controle digital infantil.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Atualizado em 29 de setembro de 2025 14:24

"A liberdade de expressão é um valor inegociável, mas não pode servir de desculpa para a prática de crimes no mundo digital (....) esse equívoco já custou a vida de várias crianças e adolescentes", declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao sancionar a lei federal 15.211/25, mais conhecida como ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente Digital. Impulsionada pelo vídeo-denúncia publicado pelo influenciador Felipe Pereira (Felca) sobre a exploração e adultização precoce de menores de idade nas redes sociais, a lei marca um passo decisivo no país para a garantia da proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. 

Em comparação com normativas internacionais como o COPRA - Children's Online Privacy Protection Act dos Estados Unidos, o AADC - Age Appropriate Design Code e o Online Safety Act do Reino Unido, a legislação brasileira é considerada uma das mais rigorosas iniciativas legislativas para a proteção infantojuvenil em plataformas digitais, com impactos multifacetados às empresas que estão no ambiente online. 

De plano, o ECA Digital adota um conceito expansivo de escopo de aplicação, incluindo não apenas produtos e serviços de tecnologia da informação direcionados a crianças e adolescentes, como também aqueles com "acesso provável" pelo público infantojuvenil. Naturalmente, essa definição amplia a aplicabilidade da lei para além das plataformas usuais, como redes sociais, plataformas de vídeos e jogos online, impactando praticamente todo o ecossistema digital, como plataformas de e-commerce, portais de notícias etc. Dentre as novidades trazidas pela legislação, cabe destacar as principais abaixo. 

Privacidade no centro: LGPD como pilar 

O ECA Digital eleva os princípios da LGPD a um novo patamar no contexto infantojuvenil. Não é novidade que a LGPD destinou cautela adicional ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, devendo sempre prevalecer o melhor interesse destes. Contudo, pela primeira vez, o ECA Digital torna mandatória a aplicação dos conceitos de privacy by design e privacy by default no fornecimento de produtos ou serviços a crianças e adolescentes. 

O objetivo é garantir que as plataformas digitais adotem, desde a concepção e ao longo de suas atividades, medidas razoáveis para mitigar riscos de acesso, exposição, recomendação ou facilitação a conteúdos considerados impróprios ou inadequados (pornografia, publicidade enganosa, jogos de azar, etc.), bem como para prevenir o uso excessivo e compulsivo e oferecer o nível mais elevado de proteção à privacidade e aos dados pessoais de menores. 

Nos casos em que o tratamento de dados for realizado para fins não estritamente necessários para a operação do produto ou serviço, a lei exige que seja elaborado relatório de impacto, de monitoramento e de avaliação da proteção de dados pessoais, a ser compartilhado sob requisição da autoridade administrativa competente.   

Fim da autodeclaração de idade 

A disposição que mais pode trazer impactos e desafios às plataformas digitais é a vedação à autodeclaração de idade. O modelo atualmente predominante na internet, baseado na autodeclaração do usuário a respeito de sua idade, é proibido de forma expressa. A partir de agora, as plataformas terão que adotar mecanismos confiáveis de verificação de idade a cada acesso do usuário ao conteúdo, sempre respeitando o princípio da minimização de dados.  

São diversos os possíveis novos métodos de validação de idade, incluindo, até mesmo, mecanismos de biometria facial e identidade digital. Embora de extrema importância para barrar o acesso de crianças e adolescentes a conteúdos impróprios, essa rigorosa exigência traz consigo um desafio relevante: equilibrar a robustez da lei com ferramentas que, ao mesmo tempo que observam ao princípio da minimização de dados, oferecerem confiabilidade para a efetiva verificação da idade do titular. 

Publicidade, jogos e engajamento sob novas regras 

A legislação adotou medidas que atacam e visam cessar práticas de monetização que exploravam a vulnerabilidade psicológica do público jovem. Entre elas, está a proibição total da publicidade comercial baseada em perfilamento de crianças e adolescentes, o banimento das loot boxes (caixas de recompensas) em jogos eletrônicos direcionados ou de acesso provável por menores e a vedação do uso de tecnologias imersivas (como realidade aumentada, estendida e virtual) e da análise emocional para direcionamento de anúncios. 

Supervisão parental e redes sociais 

As plataformas deverão disponibilizar aos responsáveis legais ferramentas eficazes de controle e supervisão parental, incluindo métricas de tempo de uso, restrição de compras e transações financeiras, gestão de geolocalização, monitoramento de interações e controle de recomendações.  

Para redes sociais, a legislação também prevê que as plataformas deverão garantir que usuários de até 16 anos de idade estejam vinculados à conta de um de seus responsáveis legais, de modo a facilitar a supervisão e o acompanhamento parental. Além disso, devem ser adotadas medidas adequadas para informar quando os respectivos serviços não são apropriados, monitorar e restringir a exibição de conteúdos que visem atrair crianças e adolescentes e aprimorar, de maneira contínua, os mecanismos de verificação de idade.  

A autorização para downloads de aplicativos por crianças e adolescentes também dependerá de consentimento livre e informado dos pais ou responsáveis legais, o que impactará significativamente provedores de lojas de aplicativos e de sistemas operacionais.  

Fiscalização, sanções e reflexos penais 

A ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados - agora transformada em Agência Nacional de Proteção de Dados - foi designada como autoridade responsável pela fiscalização do cumprimento da nova legislação por parte das empresas de tecnologias digitais. As sanções previstas são severas: desde advertências à suspensão ou proibição de atividades, além de multas que podem chegar a R$ 50 milhões por infração, funcionando como estratégia para compelir as plataformas a adotar uma postura proativa de moderação e proteção, e não apenas reativa.  

Da perspectiva criminal, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a responsabilização penal de pessoas jurídicas apenas em caso de crimes ambientais. Apesar disso, ainda que não tenha caráter criminal, o regime de sanções previsto no ECA Digital remete às penalidades já consolidadas na legislação ambiental (lei 9.605/1998), a qual também estabelece sanções de multa, suspensão parcial das atividades e interdição temporária do estabelecimento, entre outras.  

Do ponto de vista da responsabilização penal de pessoas físicas, a legislação não estabelece novos crimes. Apesar disso, é necessário lembrar que o ECA (lei 8.069/1990) conta, desde 2008, com norma penal direcionada a responsáveis legais de empresas que prestam serviços relacionados ao acesso, compartilhamento e armazenamento de conteúdos na internet. Em seu art. 241-A, a lei criminaliza a divulgação de conteúdos com cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente e responsabiliza quem assegura os meios ou serviços para o armazenamento ou acesso a esse tipo de conteúdo. Especificamente em seu § 2º, a norma penal é direcionada ao responsável legal pela prestação do serviço, o qual será punido com pena de 3 a 6 anos quando, oficialmente notificado, deixar de desabilitar o acesso ao material ilícito.  

As novas previsões trazidas pelo ECA Digital, em uma primeira análise, não têm o condão de ampliar o objeto de aplicação da norma penal. Por outro lado, o seu art. 29, que traz o dever de remoção de conteúdo violador a partir de comunicações feitas pela vítima, pelo Ministério Público ou por entidades representativas, independentemente de ordem judicial, pode instaurar novo debate sobre as hipóteses de configuração da omissão penalmente relevante: se somente após a comunicação por órgãos oficiais (como judiciário ou Ministério Público), ou se a notificação por particulares já seria suficiente para caracterizar a responsabilidade penal do responsável legal do provedor por crime omissivo. 

Remoção de conteúdo e prestação de contas  

Como referido acima, para garantir a proteção integral da criança e do adolescente, é dever das plataformas digitais remover conteúdo que viole direitos de crianças e adolescentes assim que forem comunicados da publicação pela vítima, por seus representantes, pelo Ministério Público ou por entidades de defesa, independentemente de ordem judicial.  

Na mesma linha, para assegurar a transparência com os usuários, os provedores de aplicação também deverão elaborar e publicar, em seus respectivos sites, relatórios semestrais e em língua portuguesa, detalhando suas atividades de proteção, incluindo: os canais de denúncia disponíveis, a quantidade de denúncias e moderação de conteúdos recebidas, as medidas adotadas para identificação de contas infantis, os aprimoramentos técnicos para aferir consentimento parental e proteger os dados pessoais, e o detalhamento dos métodos utilizados para gerenciamento de riscos. Além disso, os fornecedores deverão manter um representante legal no país.   

Prazo para adequação 

De acordo com a MP 1.319/25, as empresas terão um prazo de 6 (seis) meses para se adequarem às obrigações estabelecidas pela nova lei, com término previsto para 17 de março de 2026, impondo um calendário desafiador para as plataformas. Embora tenha efeito imediato, a MP ainda precisará ser votada e depende de aprovação pelo Congresso Nacional para vigorar em definitivo.  

Um novo pacto digital

Mais do que impor restrições, o ECA Digital possui um aspecto multifacetado e redefine a relação entre empresas de tecnologia e a presença de crianças e adolescentes na internet. É uma verdadeira mudança cultural, que coloca o melhor interesse da criança e do adolescente no centro das decisões, buscando equilibrar inovação com responsabilidade social. 

Para as organizações que se adequarem de forma genuína, pode surgir uma oportunidade estratégica: transformar a conformidade em um diferencial competitivo, fortalecendo a confiança de pais e responsáveis. Por isso, é importante que as empresas afetadas se atentem ao prazo para que possam realizar as adaptações necessárias em seus procedimentos.  

Francesca Balestrin

Francesca Balestrin

Advogada nas áreas de Propriedade Intelectual e Direito Digital do escritório Silveiro Advogados, é graduada em Ciências Jurídicas e Sociais com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-graduada em Direito Digital, Cybersecurity e Inteligência Artificial pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

Vanessa Ramos da Silva

Vanessa Ramos da Silva

Advogada na área Penal do escritório Silveiro Advogados, é doutoranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com período sanduíche na University of Kent (Reino Unido), mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora universitária.

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