A pena de perdimento de bens: Entre a soberania fiscal e as garantias constitucionais da propriedade e devido processo legal
Sanção grave no Direito Aduaneiro, o perdimento de bens exige equilíbrio entre interesse fiscal, devido processo legal e Direito de Propriedade.
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Atualizado às 14:27
A pena de perdimento de bens, no contexto do Direito Aduaneiro brasileiro, representa uma das mais severas sanções administrativas, senão a mais grave, devido à sua natureza de confisco. Aplicada pela Receita Federal do Brasil, sua essência reside na privação do direito de propriedade de mercadorias ou veículos que tenham sido objeto de uma infração fiscal, especialmente aquelas que causam "dano ao erário". Esta medida coercitiva, tem sido palco de intensos debates jurídicos, oscilando entre a necessidade de o Estado proteger seu interesse público e a garantia constitucional do direito de propriedade.
A complexidade da pena de perdimento não se limita à sua aplicação, mas se estende à sua própria natureza jurídica, vista por alguns como uma sanção administrativa "sui generis", com reflexos tributários e, por vezes, penais1. A sua evolução legislativa e os posicionamentos jurisprudenciais refletem uma jornada conturbada, marcada por contrapontos entre a soberania fiscal do Estado e os princípios fundamentais do direito, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a proporcionalidade.
A reforma legislativa ocorrida em 2023, impulsionada por acordos internacionais, trouxe uma nova dinâmica a esse debate, buscando harmonizar a legislação nacional com padrões globais de governança e transparência.
Este artigo se propõe a analisar os aspectos mais relevantes da aplicação da pena de perdimento de bens. Abordaremos a sua evolução legislativa, a reflexão crítica de sua aplicação em contraponto ao direito de propriedade, o contencioso envolvendo o devido processo legal e o duplo grau de jurisdição, e, por fim, a importância de uma atuação especializada para a garantia dos direitos do contribuinte.
O arcabouço legal da pena de perdimento está intrinsecamente ligado à história do Direito Aduaneiro no Brasil, com suas origens nos decretos-lei 37/1966 e 1.455/1976.
O decreto-lei 37/1966, que reestruturou o imposto de importação e os serviços aduaneiros, já previa a pena de perdimento como sanção para infrações como a importação sem documentação adequada, a ocultação de mercadorias e a falsificação de documentos2. O rito processual estabelecido por esta norma previa a apuração da infração mediante processo fiscal, com a imediata apreensão do bem, e a possibilidade de defesa do responsável3. Contudo, as vias recursais eram limitadas, e a decisão administrativa era muitas vezes vista como definitiva, uma realidade que viria a ser fortemente questionada anos depois.
O decreto-lei 1.455/1976 aprofundou e detalhou as infrações passíveis de perdimento, consolidando a ideia de que a penalidade se aplicava a condutas que configurassem "dano ao erário", como a ocultação do real adquirente por meio de fraude ou interposição fraudulenta de terceiros4. A sua redação original, no entanto, manteve o rito processual simplificado, com um julgamento em instância única, que era diferente do rito geral do processo administrativo fiscal (decreto 70.235/1972) e gerava grande controvérsia e violava a garantia de um duplo grau de jurisdição5.
A ausência do duplo grau de jurisdição na via administrativa foi um dos pontos mais criticados da legislação por anos, levantando dúvidas sobre a sua constitucionalidade. Embora o STF já tivesse se posicionado pela constitucionalidade da pena em si6, a questão processual permaneceu em aberto, pois a CF/88, em seu art. 5º, incisos LIV e LV, assegura o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa a todos os litigantes, tanto na esfera judicial quanto na administrativa. A decisão em instância única, sem a possibilidade de revisão por uma autoridade superior e independente, era vista como uma afronta a essas garantias.
Essa lacuna legislativa ganhou urgência com a adesão do Brasil a acordos internacionais, em especial a CQR - Convenção de Quioto Revisada7 e o Acordo de Facilitação de Comércio8. Ambos os tratados exigem que qualquer pessoa afetada por uma decisão aduaneira tenha o direito de recorrer primeiro a uma autoridade administrativa superior ou independente e, em última instância, a uma autoridade judicial. A não adequação da legislação brasileira a essas diretrizes colocava o país em uma posição de descumprimento de compromissos internacionais.
Foi nesse cenário que a lei 14.651/23 surgiu para preencher essa lacuna. Alterando o decreto-lei 1.455/1976, a nova legislação introduziu o duplo grau de jurisdição administrativo para o contencioso da pena de perdimento. A partir de então, o processo administrativo de perdimento passou a prever, expressamente, um rito com julgamento em primeira e segunda instâncias, trazendo a legislação brasileira para um patamar mais alinhado com as exigências de tratados internacionais e com os princípios constitucionais.
A lei 14.651/23, ao introduzir o duplo grau de jurisdição na via administrativa para a pena de perdimento, representa um marco na legislação brasileira. As novas regras processuais, alterando o decreto-lei 1.455/1976, definem o rito da seguinte forma: o auto de infração é lavrado, o autuado apresenta impugnação em 20 dias, e o processo é julgado em primeira instância. Em caso de decisão desfavorável, cabe recurso à segunda instância, também no prazo de 20 dias, com a decisão definitiva ocorrendo apenas após o esgotamento dessas vias ou a declaração de revelia.
Apesar dos avanços, o novo rito ainda enfrenta críticas. É de se destacar que o julgamento em ambas as instâncias (primeira e segunda) é realizado pelo Cejul - Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras, composto exclusivamente por auditores-fiscais da Receita Federal. Ou seja, será que essa composição do órgão julgador garante, de fato, a independência exigida pelos acordos internacionais e pelos princípios constitucionais? A crítica é válida na medida que a ausência de um órgão julgador independente, como o CARF, com a participação de representantes dos contribuintes, pode comprometer a imparcialidade do processo e minar o propósito do duplo grau de jurisdição.
Outra crítica relevante diz respeito aos métodos de intimação. A nova lei não estabelece uma ordem de preferência entre os métodos de notificação (pessoal, postal, eletrônica ou por edital). Essa falta de preferência pode ser considerada um retrocesso, pois a intimação por edital, que deveria ser a última alternativa, pode ser usada de forma rotineira, prejudicando o direito de defesa do autuado e contrariando a lógica processual de esgotamento das vias mais diretas e eficazes.
De outra banda, acerca da pena de perdimento, é de fundamental relevância a compreensão de que a pena de perdimento atinge o cerne do Direito de Propriedade, uma garantia fundamental consagrada no art. 5º, inciso XXII, da CF/88. A reflexão sobre sua aplicação exige um exame cuidadoso da sua relação com este direito. Embora o Direito de Propriedade não seja absoluto, podendo ser relativizado em prol do interesse público, a sua supressão, mesmo que parcial, deve ser revestida de legalidade e, acima de tudo, de proporcionalidade.
Como dito, a jurisprudência majoritária, liderada pelo STF, tem se inclinado pela constitucionalidade da pena de perdimento em matéria aduaneira, argumentando que o confisco de bens em decorrência de infrações fiscais é uma medida legítima para coibir o ilícito e proteger a economia nacional. A tese é a de que a penalidade não viola o Direito de Propriedade, mas sim atua como uma forma de reprimir condutas que violam a ordem econômica e o patrimônio público. No entanto, essa visão formalista pode gerar questionamentos quando aplicada de forma indiscriminada.
A crítica mais pertinente à pena de perdimento diz respeito à sua aplicação como sanção para infrações de "mera conduta" ou formais, sem a necessidade de comprovação de um dano efetivo e doloso ao erário.
O CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, por exemplo, em sua súmula 1609, reforça a tese de que a aplicação da multa substitutiva ao perdimento independe da comprovação de prejuízo fiscal.
A doutrina e a jurisprudência mais progressistas, no entanto, argumentam que a penalidade de perdimento, por sua extrema gravidade, exige a demonstração de um mínimo de dolo ou má-fé por parte do infrator. A penalidade, segundo esse entendimento, não pode ser um fim em si mesma, devendo ser proporcional à gravidade da conduta e à sua capacidade de lesar o bem jurídico tutelado10.
O STJ tem demonstrado uma maior sensibilidade a essa questão, flexibilizando a aplicação da pena de perdimento em casos onde não se comprova a intenção de fraude ou a má-fé do contribuinte11. Essa linha de raciocínio é crucial, pois evita que a sanção se torne arbitrária e desproporcional, o que, em última análise, acabaria por violar o devido processo legal em sua projeção substantiva.
A pena de perdimento, portanto, não pode ser vista como uma mera ferramenta de arrecadação, mas sim como um mecanismo de controle aduaneiro que deve ser aplicado com cautela, em estrita observância aos princípios constitucionais, especialmente o da proporcionalidade. A mera ocorrência da infração, sem a demonstração de uma conduta dolosa ou de uma intenção de lesar o erário, não deveria ser suficiente para justificar a penalidade mais grave.
A pena de perdimento de bens é um instrumento crucial para o controle aduaneiro, mas sua aplicação deve ser balizada por uma reflexão crítica e em consonância com os princípios constitucionais. A legislação brasileira evoluiu, especialmente com a lei 14.651/23, que finalmente introduziu o duplo grau de jurisdição administrativo no rito de perdimento, um avanço significativo que alinha o Brasil com as melhores práticas internacionais.
No entanto, a jornada está longe de terminar. Os desafios permanecem. A falta de independência do órgão julgador em segunda instância e as lacunas no procedimento de intimação são pontos sensíveis que precisam ser abordados para garantir a plena efetividade do devido processo legal.
Nota-se, portanto, que a pena de perdimento envolve questões que transcendem o simples conhecimento do Direito Tributário e Aduaneiro. Requer uma compreensão aprofundada dos princípios constitucionais, da jurisprudência do STJ e do STF, bem como dos tratados internacionais, devendo atentar-se a:
- Garantir a ampla defesa: Orientar a apresentação de uma impugnação robusta, com argumentos técnicos e jurídicos que questionem a validade da infração, a proporcionalidade da pena e a regularidade do processo.
- Navegar pelo novo rito: O novo rito, embora mais justo, é complexo. Um especialista é fundamental para garantir que os prazos sejam cumpridos e que o processo seja acompanhado em todas as suas etapas, desde a intimação até o julgamento final em segunda instância.
- Identificar vícios processuais e violações de princípios: A falta de independência do órgão julgador e a utilização indevida da intimação por edital são pontos sensíveis que podem ser usados para anular o processo ou a decisão.
- Analisar a proporcionalidade: A falta de má-fé ou dolo do contribuinte, utilizando a jurisprudência do STJ, para flexibilizar ou afastar a aplicação da pena, mostrando que a sanção de perdimento seria desproporcional à conduta praticada.
Diante deste contexto, importante ressaltar que a constante vigilância e a atuação de especialistas jurídicos são essenciais para que o Direito de Propriedade não seja suprimido de forma arbitrária e para que a pena de perdimento cumpra seu papel de coibir o ilícito sem se tornar uma ferramenta de confisco desproporcional.
A batalha entre a soberania fiscal e a garantia constitucional do Direito de Propriedade continua a ser travada, e a evolução do Direito Aduaneiro no Brasil dependerá da capacidade de harmonizar esses dois pilares em um sistema legal justo e transparente.
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1 CHAVES, Thiago do Poço. Tipos de penalidades nas infrações aduaneiras. Coletânea de direito aduaneiro. 1. ed. São Paulo: IOB SAGE, 2016, p. 501-550, p. 512
2 Art.105 - Aplica-se a pena de perda da mercadoria:
(...)
3 Art.118 - A infração será apurada mediante processo fiscal, que terá por base a representação ou auto lavrado pelo Agente Fiscal do Imposto Aduaneiro ou Guarda Aduaneiro, observadas, quanto a este, as restrições do regulamento.
Parágrafo único. O regulamento definirá os casos em que o processo fiscal terá por base a representação.
4 Art 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:
I - importadas, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, quando a sua emissão estiver vedada ou suspensa na forma da legislação específica em vigor;
II - importadas e que forem consideradas abandonadas pelo decurso do prazo de permanência em recintos alfandegados nas seguintes condições:
(...)
III - trazidas do exterior como bagagem, acompanhada ou desacompanhada e que permanecerem nos recintos alfandegados por prazo superior a 45 (quarenta e cinco) dias, sem que o passageiro inicie a promoção, do seu desembaraço;
IV - enquadradas nas hipóteses previstas nas alíneas "a" e "b" do parágrafo único do artigo 104 e nos incisos I a XIX do artigo 105, do Decreto-lei número 37, de 18 de novembro de 1966.
V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.(Incluído pela lei 10.637, de 30/12/02)
5 Art. 27. As infrações mencionadas nos artigos 23, 24 e 26 serão apuradas através de processo fiscal, cuja peça inicial será o auto de infração acompanhado de termo de apreensão, e, se for o caso, de termo de guarda.
§ 4º Após o preparo, o processo será encaminhado ao Secretário da Receita Federal que o submeterá a decisão do Ministro da Fazenda, em instância única.
6 STF - AI: 861141 PR, Relator.: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 16/09/2014, Data de Publicação: DJe-183 DIVULG 19/09/2014 PUBLIC 22/09/2014
7 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10276.htm
8 https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/importacao-e-exportacao/AcordodeFacilitaoOMCnovo.pdf
9 Súmula CARF nº 160
Aprovada pela 3ª Turma da CSRF em 03/09/2019
A aplicação da multa substitutiva do perdimento a que se refere o § 3º do art. 23 do Decreto-lei nº 1.455, de 1976 independe da comprovação de prejuízo ao recolhimento de tributos ou contribuições.
10 SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 2ª ed., São Paulo: Forense, 2022, p. 1088-1089 (Edição Kindle)
11 REsp n. 639.252/PR / AgInt no AREsp n. 2.108.582/RJ
Arthur Vruck Rodrigues Arimatéa
Sócio do CM Advogados. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET).



