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Uso da tecnologia no "market for lemons" - Akerlof "já era"?

Akerlof mostrou como a assimetria informacional afeta mercados. Hoje, a tecnologia reduz esse desequilíbrio em setores como autos e capitais.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Atualizado em 30 de setembro de 2025 15:11

1) O market for lemons e a assimetria informacional

Em 1970 George Akerlof publicou o artigo "The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism1", no qual apresentou o resultado dos seus estudos em relação à qualidade dos bens negociados em um determinado mercado, que poderia apresentar falhas diante da presença da denominada "assimetria informacional" entre vendedores compradores, que estavam sujeitos ao risco da aquisição de limões, que, na gíria norte-americana, significavam carros que apresentavam defeitos depois da compra efetuada.

O referido texto não foi inicialmente bem recebido, mas se tornou depois uma referência na teoria econômica, tendo sido Akerlof, juntamente com Michael Spence e Joseph Stiglitiz agraciados com o prêmio Nobel em 1970, como resultado de suas pesquisas na área da informação assimétrica. 

Segundo essa teoria, os preços dos produtos podem ser o resultado da qualidade dos bens comercializados nos mercados, tendo-se em conta que os preços baixos afastariam os vendedores dos produtos de alta qualidade, nele sendo negociados apenas limões. Vejamos.

O problema da incerteza da qualidade de veículos usados que podem ser bons (pêssegos) ou ruins (limões), considerados estes como o resultado da operação de diversas variáveis, que não podiam ser aferidas quanto à sua efetividade e extensão, tais como o modo de condução pelo proprietário, a qualidade e a frequência de manutenção, troca de peças defeituosas por outras da mesma qualidade etc. Diante dessas circunstâncias as partes não sabem se, em vista de determinado veículo usado, têm diante de si um bom ou um ruim. Isso se aplica, nas operações feitas por meio de empresas do ramo, tanto nas compras celebradas por elas, quanto nas vendas feitas posteriormente a pretendidos compradores. 

No sentido acima os donos de carros bons não os colocarão para venda no mercado, preferindo outros meios diretos. Segue-se que - diante da situação da existência de limões nesse mercado os compradores - cientes de que na melhor das hipóteses - o veículo desejado será de qualidade média - ele somente estará disposto a pagar o mesmo valor que dispenderia na compra de um veículo de qualidade média conhecida, aplicando-se de forma indireta a lei de Greshan, segundo a qual o bem ruim afasta o bom do mercado, o que gera elevado índice de ineficiência, péssimo para os dois lados da operação.

Não sendo o caso neste momento de nos aprofundarmos nesse tema, vejamos as iniciativas que têm sido adotadas para diminuir o grau de assimetria informacional no mercado de automóveis usados e sua aplicação a outros.

2) O recurso à tecnologia nesse mercado e sua extensão a outros

A assimetria informacional nesse mercado tem sido sensivelmente reduzida de algum tempo a esta parte pela introdução de recursos tecnológicos por algumas empresas nos Estados Unidos da América, capacitando as partes na venda e na compra de veículos usados a terem acesso maior quantidade e melhor qualidade de informações sobre eles, de maneira a que possam fazer negócios em melhor situação do que aquela tradicionalmente enfrentada.

A minimização desse problema tem sido feita pelas revendas dos fabricantes, quanto a veículos que tenham sido originalmente vendidos nesse ambiente e cujas revisões periódicas e reparos necessários são também nelas realizados. Assim sendo, os vendedores e compradores têm à sua opção um bom conjunto de informações. Isso também acontece nas compras efetuadas entre nós pelas grandes locadoras de veículos - que os compraram "zero km" dos respectivos fabricantes, então considerados de excelente qualidade. 

Dessa forma, entre nós, depois de certo tempo de uso (na média três anos) as locadoras revendem os veículos de sua propriedade no mercado de usados, senhoras de um bom nível de informação sobre a sua qualidade, tendo feito as revisões e reparos necessários. Do lado dos compradores esses se encontram em situação de melhor nível de informação se feita uma comparação com negócios realizados diretamente com os vendedores particulares. Tanto é verdade que as locadoras oferecem uma garantia contra defeitos surgidos depois da venda dos veículos, geralmente de seis meses. Assim sendo, os compradores, recorrendo-se à lição de Akerlof, pagarão pelos veículos o preço equivalente a um bem de qualidade média conhecida.

A mesma situação acontece com os negócios feitos junto às revendas das concessionárias que geralmente adquirem veículos dos clientes que os desejam trocar por um novo. A única diferença está no fato de que as concessionárias compradoras se deparam com um nível bastante sensível que assimetria informacional, necessitando buscar o máximo de informações que lhes seja possível reunir. De qualquer maneira elas pagarão ao seu cliente o preço de um veículo de qualidade abaixo da média, com variação para mais ou para menos, segundo a situação fática de redução da assimetria informacional. Do lado do cliente, este aceita fazer o negócio com receio dos riscos que corre nas vendas diretas a terceiros desconhecidos.

Mesmo se recorrendo aos mecanismos acima citados de redução da assimetria informacional, negócios nesse mercado continuam sendo feitos às escuras, com favorecimento informacional um pouco maior em favor dos vendedores, tal como sempre aconteceu, como observado há décadas no passado em São Paulo, nas lojas situadas na Barra Funda, um profundo poço cheio de perigos para as partes. Os compradores oferecendo um valor muito baixo e os compradores aceitando-o, ambos correndo o risco de defeitos ocultos. 

Ora, nos Estados Unidos da América foram criadas empresas, organizadas em plataformas no ambiente da internet, que reúnem uma grande quantidade de informações sobre os veículos nele negociados, de maneira a que a assimetria informacional se situe em um nível que pode ser considerado ótimo, permitindo preços justos e com uma garantia adequada em favor do comprador. 

Como se sabe, naquele país negócios efetuados pelos fabricantes, diretamente ou por suas concessionárias, são feitos pelo recurso ao contrato de leasing, sendo usual o prazo de três anos, findo o qual o carro é devolvido, passando a ser negociado no mercado de usados que é de enorme envergadura. 

A operação da empresa na compra do veículo no mercado de usados passa pelas seguintes fases: levantamento junto aos fabricantes de todas as informações sobre o modelo de veículo; uma checagem que cobre cerca de 150 itens; avaliações feitas pelos consumidores; obrigação do vendedor de listar todos os reparos feitos no veículo e problemas com eles ocorridos; checagem com as companhias de seguros; direito do comprador de mudar de ideia para desfazer o negócios, recebendo o dinheiro de volta ou mudar de modelo; fornecimento de crédito para o negócio; etc.

Assim sendo, se Akerlof viesse a escrever o seu texto na atualidade, a sua teoria continuaria válida na essência, mas desatualizada quanto ao nível de assimetria informacional, muito menos acentuada no mercado que aqui foi até o momento estudado.

3) Novos modelos de acesso à informação eficiente e a sua aplicação a outros mercados

Na atualidade também se tem demonstrado a redução da assimetria informacional em diversos mercados, pelo recurso a mecanismos tradicionais, como também às novas tecnologias. Isso se dá no campo do comércio, dos serviços e dos bancos. Existem à disposição dos interessados via internet um verdadeiro universo de informações cadastrais e relativas a certidões negativas, que cobrem várias necessidades dos interessados. No campo dos bancos o sistema do open finance agregou em favor dos fornecedores de crédito e de serviços bancários um patamar informacional de nível mais elevado do que o modelo conhecido no tempo passado. 

As informações sobre cada um de nós são acessadas em todos os momentos nos quais utilizamos os nossos cartões de crédito - para o bem e para o mal2. Somos poços de informação espalhados por todas as áreas da nossa vida e não é por outro motivo que os pedidos de acesso aos cookies nos infernizam a todo o momento nos acessos pela internet. "Abre-te Sésamo", nos dizem eles. 

Viver fora desse ambiente se tornou impossível, ao ponto de que não se ter um telefone celular não é opção. Ele se tornou um membro inseparável do nosso corpo e da nossa mente, sendo ele hoje o instrumento essencial para quase todas as operações da nossa vida diária. No futuro não distante ele será instalado no nosso corpo, na forma de um microchip.

4) A assimetria informacional e o mercado de capitais

Esse é um campo em relação ao qual praticamente nada mudou quando se trata de informação sobre a existência e a qualidade dos ativos nele negociados. Pensemos a respeito disso nos valores mobiliários emitidos pelas companhias abertas. 

Simplificando, tudo começa com o processo de abertura do capital. Para tanto passam a atuar os órgãos internos da companhia para o fim do atendimento das exigências necessárias. Tratando-se do nascimento de uma companhia aberta - por subscrição pública - o projeto se dá pelo atendimento às exigências constantes dos arts. 82 a 87 da lei 6.404/1976, neste sentido se atendo à necessidade de apresentação de um estudo de viabilidade econômico-financeira do empreendimento, no tocante às bases da companhia e os motivos que justifiquem a expectativa de bom êxito do empreendimento, destacando-se o valor do capital destinado à sua realização. Aqui começa o problema da assimetria informacional. 

Primeiro, será necessário informar como será formado o capital social, em dinheiro e/ou em bens. Estes devem ser discriminados na sua identidade e no valor a eles atribuídos pelos fundadores. O capital em dinheiro corresponde ao seu valor nominal, sem maiores problemas, a não ser que constituído por criptoativos, dependentes de avaliação. No tocante aos bens em geral, de qualquer natureza, eles deverão ser avaliados na forma do art. 8° da lei acima referida, devendo ser apresentado laudo fundamentado, com a indicação dos critérios de avaliação e dos elementos de comparação adotados e instruído com os documentos relativos aos bens avaliados. Esse valor deverá ser aprovado pelos subscritores do capital. 

Observamos, por oportuno, que essa avaliação tem sido objeto de fraudes no mercado de capitais, tomando-se como exemplo as operações de Elke Batista controlador do grupo EBX e as empresas OGX e OSX, tendo o problema se relacionado às reservas de petróleo que seriam o substrato econômico das operações, em relação às quais sua existência e extensão se revelaram muito menores do que o prometido. 

Tudo começou nas empresas daquele grupo, a partir da orientação do controlador, mediante a captura do conselho de administração (politicamente contaminado) da diretoria, do jurídico, da contabilidade e da auditoria internos. No tocante aos pareceres das auditorias independentes não houve comprovação de fraude. Dessa forma, foi dado o ingresso dos pedidos de abertura de capital junto à CVM, portando as deficiências acima apontadas, que foram a gênese dos problemas futuros das empresas em questão.

Da mesma forma, a assembleia geral de constituição da companhia aberta também não examina os mesmos aspectos materiais aqui referidos, lhe cabendo a análise do atendimento das formalidades legais (lei 6.385/1976, art. 88, § 3°), restritos os acionistas que nela deliberarão às informações de que já falamos acima.

Dentro da CVM não existe como regra geral a obrigação para a análise do fundamento do estudo de viabilidade econômica e financeira do empreendimento, cabendo-lhe, na forma da lei, tão somente analisar as informações pertinentes do ponto de vista formal. Existe uma exceção, prevista no § 2° do art. 82 da lei acima citada, quando deve ser denegado o registro em vista diante da inviabilidade ou temeridade do empreendimento ou inidoneidade dos administradores. Para esse efeito se tomará em consideração o disposto no art. 19 da mesma lei, que condiciona a negociação pública de valores mobiliários a registro prévio naquele Órgão, especialmente a previsão do § 5°, II, "a", que diz respeito a prestação de informações sobre os empreendimentos explorados pela empresa ou que os pretende explorar, bem como a sua situação econômica e financeira. 

No tocante ao prospecto relativo à abertura do capital, a resolução CVM 160, de 13/7/22 (nos termos das consolidações efetuadas até o momento da elaboração deste artigo) ele é obrigatório (art. 9°, dentro de algumas exceções), elaborado pelo ofertante em conjunto com o líder do lançamento, devendo espelhar a informação necessária, suficiente, verdadeira, precisa, consistente e atual, apresentada de maneira clara e objetiva em linguagem direta e acessível, de modo que os investidores possam formar criteriosamente a sua decisão de investimento (art. 16). Dele, dentre outros elementos, devem constar dados sobre o emissor e sua situação patrimonial, econômica e financeira; e os principais fatores de risco relacionados com o emissor, com o valor mobiliário, com a oferta, e com o terceiro garantidor. 

Como se verifica, a assimetria profunda ainda se manifesta porque todos os elementos relacionados ao conhecimento do investidor sobre a companhia e os valores mobiliários estão dentro dela mesma, ou quando produzidos por terceiros, a exemplo das auditorias independentes, não abrangem elementos de mérito, exceto em casos excepcionais e limitados no seu escopo. 

Como se sabe, a função das entidades de auditoria independente não tem por função investigar a existência de fraudes quanto aos documentos submetidos ao seu exame, mas tão somente realizar um exame independente e sistemático dos demonstrativos contábeis da sociedade e de outros documentos e evidências do seu cliente. Esse trabalho é realizado por amostragem, voltado para aquilatar se as demonstrações contábeis foram elaboradas segundo a as normas aplicáveis. Assim sendo, a percepção de fraude dependerá de falhas graves, presentes na documentação examinada, especialmente quando elas mostram discrepâncias e inconsistências. 

O trabalho dos auditores independentes é de meio e não de resultado, ficando sujeitos a penalidades administrativas e a responsabilidade civil quando tiverem agido com culpa ou dolo. E o nível de sua investigação para afastar eventual culpabilidade deverá ser feito a partir dos parâmetros regulares de sua atividade, que corresponderiam às normas pertinentes e aos usos e costumes da sua atividade. E o exame do mérito ou demérito do seu trabalho será efetuado no plano dos casos concretos, 

Portanto, eventual fraude que tenha contaminado o processo de abertura do capital poderá passar sem a sua identificação e/ou mensuração, tal como aconteceu com o caso das empresas supracitadas. Eventualmente, de lege ferenda, poderia se pensar na atribuição àquele Órgão, de fazer a confrontação das informações a ela prestadas, especialmente no tocante aos laudos das auditorias independentes nos casos de operações complexas e de montante muito elevado.

Conclusões

Tratando da abertura do capital de uma sociedade, como foi possível perceber neste breve e insuficiente estudo para a análise de toda a sua complexidade operacional, o nível de assimetria informacional é ainda muito elevado, nos termos da legislação vigente. Nesse sentido, um valor mobiliário pode ser lançado no mercado em plena condição de um limão muito amargo, cuja identificação somente será feita em futuro maior ou menor, com a deflagração de enorme prejuízo para os agentes e investidores que nele atuam.

O recurso às novas tecnologias na busca de informações de boa qualidade pode ser realizado livremente, com os variados recursos disponíveis, diretos ou indiretos, que possam agregá-las com a quantidade e qualidade suficientes para permitir aos agentes operarem mais perto de uma cesta de pêssegos, do que de limões.

Insuficiências existentes poderiam ser trabalhados pelo mercado mediante o aperfeiçoamento legislativo, cuja construção poderia até mesmo ser feita pelos mecanismos sandbox regulatório, de autorregulação e de trabalhos de pesquisa, valendo um doutoramento. Fica aqui o desafio.

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1 In "The Quarterly Journal of Economics, vol. 84, n° 3, Ago/1970, Oxford UKniversity Press.

2 Para o mal porque o desvio informacional fraudulento está ocorrendo de forma avassaladora, sendo esse um seríssimo problema a ser resolvido.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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