O direito não socorre aos que dormem, nem aos que acordam em cima da hora: Limites à retroação da interrupção da prescrição (art. 240, §1º, do CPC)
A interrupção da prescrição retroage ao ajuizamento da ação, mas depende de petição inicial válida; emendas essenciais não permitem retroação.
quinta-feira, 2 de outubro de 2025
Atualizado às 09:30
"O direito não socorre aos que dormem" é uma frase célebre, mas, no processo civil, assume um novo e perigoso sentido. A pressa em ajuizar uma ação antes que a prescrição se consume pode, ironicamente, resultar na perda do próprio direito de ação.
Isso ocorre porque a regra de ouro do art. 240, §1º, do CPC - segundo a qual a interrupção da prescrição retroage à data do ajuizamento da ação - comporta uma exceção pouco discutida: quando a petição inicial é incompleta e somente se torna válida após emenda substancial apresentada já depois do prazo prescricional, a retroação não se aplica. O resultado, inevitável, é a prescrição.
Não é incomum, na prática jurídica, deparar-se com ações protocoladas a poucos dias do marco final da prescrição da pretensão deduzida em juízo.
Essa conduta, embora reconhecida pela doutrina e admitida pela jurisprudência, pode ser extremamente arriscada, sobretudo quando, diante da iminência do prazo prescricional, o advogado apresenta uma petição inicial apressada, deixando de observar - ou tratando de forma secundária - alguns dos requisitos previstos nos arts. 319 e 320 do CPC.
Via de regra, a pretensão do autor, ainda que deduzida próximo ao termo final da prescrição, estaria resguardada pela redação do art. 240, §1º, do CPC.
A interrupção da prescrição pela citação válida, determinada pelo despacho que a ordena, constitui tema central no cotidiano da advocacia cível. O referido dispositivo estabelece que a interrupção retroage à data do ajuizamento da demanda. Nos termos do art. 312 do CPC, "considera-se proposta a ação quando a petição inicial for protocolada".
Contudo, como já destacado, há situações em que a pressa para propor a demanda é tamanha que a petição inicial não atende a requisitos mínimos exigidos pelo art. 319 do CPC.
Por essa razão, torna-se indispensável compreender que a regra contida no §1º do art. 240 do CPC não possui aplicação automática e irrestrita.
A lógica por trás da retroação
A retroação, segundo a doutrina e a jurisprudência, pressupõe que a petição inicial seja protocolada já com os requisitos essenciais que a tornem apta a deflagrar validamente a relação processual. Somente a partir do despacho liminar que recebe a inicial e determina a citação do réu é que se reconhece a interrupção da prescrição.
Fredie Didier Jr. é claro ao afirmar que "não é qualquer despacho liminar que interrompe a prescrição. É necessário que o magistrado tenha feito um juízo positivo, ainda que prévio/precário, da admissibilidade da causa (verificação da existência das condições da ação e pressupostos processuais), convocando o réu ao processo."1
Em outras palavras, para que a interrupção da prescrição retroaja, a petição inicial deve ter sido formulada com todos os elementos previstos nos arts. 319 e 320 do CPC.
A inobservância desses requisitos inviabiliza o desenvolvimento válido do processo e, consequentemente, a citação do réu. A lógica é evidente: se a inicial não é apta, o processo não se constitui regularmente, e o ato interruptivo (o despacho citatório) não pode retroagir quando a própria demanda não estava em condições de prosseguir.
A Distinção Crítica: Emenda Substancial vs. Emenda Formal
É precisamente nesse ponto que a jurisprudência, tanto do STJ quanto de tribunais estaduais, como o TJ/SP, tem se pronunciado de forma reiterada e consistente.
O art. 240, §1º, do CPC prevê que a interrupção da prescrição retroage à data do ajuizamento da ação. Entretanto, tal retroação somente se opera se a petição inicial, desde logo, reúne as condições necessárias ao desenvolvimento válido e regular do processo.
Quando a inicial não atende a tais requisitos, a demanda somente se aperfeiçoa com a apresentação de emenda substancial. Se essa complementação ocorre após o transcurso do prazo prescricional, a regra de retroação não se aplica, ainda que o protocolo da peça tenha sido anterior.
O TJ/SP possui jurisprudência consolidada nesse sentido, reconhecendo a prescrição quando a emenda substancial é apresentada após o quinquênio legal, como ilustra o acórdão na apelação cível 1004494-95.2021.8.26.0278, de relatoria da desembargadora Lídia Conceição.
Na mesma direção, o STJ firmou orientação de que a retroação do art. 240, §1º, do CPC/15 somente se aplica quando a inicial, desde o início, cumpre os requisitos dos arts. 319 e 320 do CPC. Não há, portanto, que se falar em benefício à parte que apresenta exordial "flagrantemente incompleta ou desidiosa".
O AgInt no REsp 1.749.085/DF é ilustrativo: a Corte rejeitou a tese recursal e afirmou que a interrupção da prescrição retroage apenas à data em que a petição inicial efetivamente reúne condições de desenvolvimento válido e regular do processo. No caso, tal aptidão somente se configurou com a emenda da inicial, momento em que o prazo prescricional já havia se esgotado.
Por outro lado, a jurisprudência também reconhece uma exceção: quando a emenda se limita a ajustes meramente formais, sem impacto no conteúdo da causa. Nessas hipóteses, a retroação se mantém. O REsp 2.088.491/TO, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, destaca que a simples retificação do valor da causa, por exemplo, não caracteriza desídia do autor nem afasta a regra geral da retroação.
Consequências para a prática jurídica
A lição é inequívoca: a petição inicial deve ser protocolada já em conformidade com os requisitos legais de validade e regularidade. O controle de prazos deve levar em conta que a apresentação de uma emenda substancial, após o transcurso do lapso prescricional, pode inviabilizar o direito de ação, mesmo quando a citação se realize posteriormente.
Em síntese, a retroação da interrupção da prescrição é um instituto processual de grande relevância, mas sua eficácia está condicionada à idoneidade da petição inicial no momento de seu ajuizamento. A segurança jurídica exige não apenas atenção aos prazos, mas também rigor técnico na formulação da exordial, garantindo a proteção da pretensão àqueles que atuam com o devido zelo profissional.
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1 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 11ª ed., vol. I. Salvador: JusPodium, 2011, p. 491
Paulo Henrique Alves Braga
Advogado Sênior e Coordenador Jurídico no Caldeira, Lôbo e Advogados Associados, lidero núcleos estratégicos com mais de 10 anos de experiência em contencioso estratégico e atuação perante Tribunais Superiores. Com vasta experiência na representação de fundos de pensão como PREVI e PETROS, sou especialista em Direito Previdenciário Complementar, Cível, Contratual e Empresarial. Minha formação executiva internacional em instituições como Yale e Stanford complementa meu foco em governança, gestão de riscos e soluções de alto impacto.
Caio Serpa Passagli
Advogado associado do Caldeira, Lôbo e Advogados Associados na área de contencioso estratégico e Tribunais Superiores. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito e cursando LLM em Processos e Recursos no Tribunais Superiores do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP.



