Monitores corporativos independentes no Brasil: Qual a experiência do MPF?
Adoção de monitores no Brasil inspira-se na experiência dos EUA, mas enfrenta desafios legais, culturais e práticos, exigindo justificativa e transparência.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Atualizado em 2 de outubro de 2025 13:27
Nos artigos anteriores dessa série, apresentamos a base conceitual sobre os monitores corporativos independentes, sua forma de trabalho, suas vantagens e desvantagens1, bem como a experiência dos EUA nesse tema.2
A experiência norte-americana com monitores independentes serviu de inspiração para a adoção do instituto no Brasil. Contudo, a transposição desse modelo exige adaptações relevantes, dada a diferença estrutural entre o sistema adversarial (predominante nos EUA) e o sistema inquisitorial/civil law brasileiro. No Brasil, a cultura jurídica valoriza a busca da "verdade real" e a atuação ativa do juiz, o que impõe limites e cuidados adicionais na negociação e implementação de acordos que prevejam monitoramento externo. A ausência de previsão legal expressa e a necessidade de observância de princípios constitucionais, como contraditório, ampla defesa, motivação e proporcionalidade, tornam imprescindível que a inclusão de monitores seja sempre fundamentada e negociada, e não imposta de forma arbitrária3.
No Brasil, o Ministério Público foi a autoridade pública pioneira na exigência de que o signatário de acordos se submeta a monitor corporativo externo independente. Desde 2016, houve ao menos 10 casos envolvendo o monitoramento de empresas brasileiras: (i) Embraer, em 2016; (ii) Odebrecht e Braskem, em 2016; (iii) J&F, em 2017; (iv) Getinge AB, em 2018; (v) Dräger, em 2018; (vi) Bozano, em 2018; (vii) Rodonorte, em 2019; (viii) Ecorodovias, em 2019; (ix) Malucelli, em 2020; e (x) Philips, em 2020.
Como será visto adiante, é possível traçar similaridades entre a forma de seleção dos monitores independentes no Brasil e o Memorando Morford, acima mencionado. Pelos Acordos de Leniência disponibilizados pelo MPF em que tal figura é utilizada4, nota-se que, tal como sugerido pelo Memorando, é costumeiro haver cláusula em que o MPF reserva para si o direito de vetar quaisquer sugestões da Leniente para o monitor independente a partir de uma lista tríplice por ela criada.
Além disso, não há legislação específica que concentre critérios ou diretrizes gerais sobre o uso de monitores independentes pelo MPF. A referência mais próxima encontra-se na orientação conjunta 1/18 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão5 - Combate à Corrupção, que menciona de forma genérica o tema do "monitoramento e auditorias externas". Há também menção no art. 45 do decreto 11.129/226, ao prever, no âmbito da CGU, que a avaliação da efetividade de um programa de integridade pode ocorrer durante o cumprimento de um acordo de leniência que imponha a obrigação de implementar ou aprimorar esse programa - atividade que, em tese, poderia ser desempenhada por um monitor independente.
Apesar disso, os acordos de leniência aqui analisados possuem anexos/apêndices em que são delineados os termos gerais da monitoria implementada no caso concreto7. Portanto, ao que tudo indica, a monitoria independente, no âmbito do MPF, parece ser regulada, principalmente, pelos termos e apêndices dos acordos celebrados.
No (i) caso Embraer8, as práticas investigadas foram de pagamento de propina para agentes públicos na República Dominicana, Arábia Saudita e Moçambique, bem como irregularidades em registros contáveis na Índia que permitiram o pagamento de propina. Esses pagamentos teriam sido feitos para garantir o fechamento de contratos para a venda de aeronaves para governos estrangeiros. Neste caso, foi celebrado em 2016 um Deferred Prosecution Agreement com a SEC e o DOJ e um Termo de Ajustamento de Conduta com as autoridades brasileiras MPF9 e CVM10.
Segundo Szmid, houve uma distinção importante na questão do monitor nos acordos em ambas as jurisdições. No acordo com as autoridades norte-americanas, a empresa se comprometeu a contratar um monitor pelo prazo de 3 anos, ao passo que no Brasil se comprometeu a apenas apresentar os relatórios de monitoramento. Para o autor, portanto, este não poderia ser considerado como o primeiro caso de imposição de monitor por meio de um acordo firmado por autoridades brasileiras.11
No (ii) caso Odebrecht e Braskem12, as práticas envolveram corrupção dentro e fora do território brasileiro, inclusive se utilizando de instituições financeiras globais, as quais realizaram transações por meio de empresas de fachada, para dificultar a identificação dos remetentes e dos beneficiários. Neste caso, foi celebrado em 201613 acordo com os Estados Unidos (DOJ e SEC), Suíça (por meio do Office of the Attorney General) e Brasil (MPF). Como parte das obrigações, as duas empresas acordaram com as autoridades norte-americanas para contratar monitores pelo período de 3 anos, sujeito à extensão ou encerramento antecipado por decisão da autoridade pública. Por sua vez, com as autoridades brasileiras, os acordos previam a imposição de um monitor pelo período de 2 anos, sujeito à extensão ou encerramento antecipado por decisão da autoridade.
No (iii) caso J&F14, as práticas envolveram os fatos investigados no âmbito das operações Greenfield, Sépsis, Cui Bono e Carne Fraca, consistentes em corrupção e improbidade administrativa, em razão do pagamento de propina a agentes públicos. Nesse caso, foi celebrado em 2017 acordo com o MPF, havendo previsão de adesão ao acordo pela PREVIC - Superintendência Nacional de Previdência Complementar, TCU, CGU, CVM, Receita Federal, Petrobras, Caixa Econômica Federal e fundos de pensão. Como parte das obrigações, foi definida a possibilidade de "auditoria externa", incluindo acompanhamento das obrigações assumidas no âmbito do acordo, com enfoque no aprimoramento do programa de conformidade e controles internos, bem como o controle sobre a execução dos projetos sociais desenvolvidos pela empresa. Destaca-se, ainda, que o Acordo, no que tange ao programa de integridade, propõe que a leniente obtenha a certificação ISO 19600 (Sistema de Gestão de Compliance) e ISO 37001 (Sistema de Gestão Antissuborno).
No (iv) caso Getinge AB15, as práticas apuradas estavam relacionadas à improbidade administrativa, ilícitos eleitorais e fraudes a licitações e contratos administrativos no Rio de Janeiro, investigadas pela Operação Lava Jato. O Acordo de Leniência foi celebrado em 2018 entre o MPF, a Getinge AB, Maquet do Brasil Equipamentos Médicos Ltda. e Maquet Cardiopulmonary do Brasil Indústria e Comércio Ltda. Um dos compromissos firmados foi a implementação de programa de integridade nas entidades brasileiras, Maquet do Brasil e Maquet Cardiopulmonary, assim como seu acompanhamento, mediante quatro relatórios, por monitor independente.
No (v) caso Dräger16, as condutas, investigadas pela Operação Fatura Exposta e seus desdobramentos, envolveram fraudes em licitações e contratos administrativos. Pelo Acordo de Leniência, celebrado com o MPF em 2018, a leniente estaria sujeita ao monitoramento independente de seu programa de integridade por 2 anos, período no qual deveria apresentar relatórios de acompanhamento a cada 6 meses.
No (vi) caso Bozano17, as práticas envolveram o pagamento de valores, sonegados ao fisco, a executivos e funcionários da companhia, fatos apurados pela Operação "Câmbio, desligo!". No Acordo de Leniência firmado com o MPF em 2018, a leniente se submeteu à avaliação independente de seu programa de integridade durante 2 anos, devendo, tal como no caso Dräger, apresentar relatórios a cada 6 meses ao MPF.
No (vii) caso Rodonorte18, as práticas envolveram corrupção, fraudes tributárias e lavagem de dinheiro relacionadas, direta ou indiretamente, a contrato de concessão de obras públicas. Neste caso, foi celebrado acordo em 2019 com o MPF, no qual a empresa se comprometeu a se submeter a uma monitoria externa de conformidade por 32 meses.
No (viii) caso Ecorodovias19, similar ao da Rodonorte, as práticas envolveram corrupção, fraudes tributárias e lavagem de dinheiro, dentre outras, relacionadas aos contratos de concessão de obras públicas no Paraná20. Pelo Acordo de Leniência, celebrado com o MPF em 2019, uma das obrigações acordadas foi a contratação do monitor independente para implementação e acompanhamento do programa de integridade por 32 meses.
No (ix) caso Malucelli21, as práticas apuradas envolveram corrupção e lavagem de dinheiro em concessões de rodovias no Paraná, as quais foram objeto das operações Lava Jato, Sépsis, Pilo, Integração e Rádio Patrulha22. Em razão disso, o respectivo Acordo de Leniência foi firmado com o MPF em 2020, o qual, dentre outras previsões, também determinou que os programas de compliance/integridade das lenientes fossem submetidos ao monitoramento independente por 32 meses.
No (x) caso Philips23, as práticas investigadas consistiram em fraudes licitatórias perante o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, no Ministério da Saúde e na Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Tal como nos casos anteriores, o Acordo de Leniência, firmado em 2020, determinou a atuação de monitoramento externo do programa de compliance/integridade durante 36 meses.24
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Empresa |
Ano do Acordo |
Tipo de Monitor |
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Embraer |
2016 |
Monitor Individual |
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Odebrecht e Braskem |
2016 |
Monitor Individual |
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J&F |
2017 |
Comitê e Auditoria Independente25 |
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Getinge AB e Maquet |
2018 |
Auditoria Independente26 |
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Dräger |
2018 |
Monitor Individual |
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Bozano |
2018 |
Monitor Individual |
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Rodonorte |
2019 |
Monitor Individual |
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Ecorodovias |
2019 |
Monitor Individual |
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Grupo J. Malucelli |
2020 |
Monitor Individual |
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Philips |
2020 |
Monitor Individual |
A adoção de monitores independentes no Brasil enfrenta desafios práticos e culturais, como a resistência de empresas à presença de um agente externo, o custo elevado do monitoramento, a ausência de regulamentação centralizada e a multiplicidade de autoridades competentes para celebrar acordos. Além disso, a percepção de que acordos podem gerar impunidade ou abrandamento de sanções exige que a imposição de monitores seja sempre justificada como medida de interesse público, voltada à prevenção de reincidência e ao fortalecimento dos programas de integridade.
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1 Monitores corporativos independentes anticorrupção e antitruste: O que são? O que fazem? Onde vivem? Quais suas vantagens e desvantagens?
2 Monitores corporativos independentes nos Estados Unidos e seus possíveis reflexos no Brasil: Os memorandos do DOJ e as experiências concretas
3 SZMID, Rafael. Monitores corporativos anticorrupção no Brasil: um guia para sua utilização no processo administrativo e judicial. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2021. P.25-51.
4 Para saber mais: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Acesso em 25 set. 2025.
5 Disponível em: https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/enunciados-notas-tecnicas-e-orientacoes-1/orientacoes/docs-1/orientacao-conjunta-no-1-2018.pdf. Acesso em 29 set 2025.
6 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D11129.htm#art70. Acesso em 29 set 2025.
7 Destaca-se, contudo, que tais anexos não são disponibilizados ao público, estando sob sigilo.
8 Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/termo-de-compromisso-e-de-ajustamento-de-conduta-envolvendo-embraer-sa-a3ecc5b558a44f70b2c3c110eb2fcc1a. Acesso em 2 fev. 2024.
9 Homologado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (Combate à Corrupção) do MPF e pelo Juízo da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro.
10 Homologado pelo colegiado da CVM.
11 SZMID, Rafael. Monitores corporativos anticorrupção no Brasil: um guia para sua utilização no processo administrativo e judicial. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2021. p. 124-130.
12 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimentos n° 1.00.000.019193/2016-92 e 1.00.000.019436/2016-92. Acesso em 29 set. 2025.
13 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/odebrecht-e-braskem-fecham-acordo-com-suica.ghtml. Acesso em 28 set. 2025.
14 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.16.000.000393/2016-10. Acesso em 29 set. 2025.
15 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.30.001.000144/2018-07. Acesso em 29 set. 2025.
16 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.30.001.003998/2017-56. Acesso em 29 set. 2025.
17 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.30.001.002374/2018-01. Acesso em 29 set. 2025.
18 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.25.000.004899/2018-42. Acesso em 29 set. 2025.
19 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.25.000.005107/2018-57. Acesso em 29 set. 2025.
20 Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/forca-tarefa-lava-jato-do-mpf-pr-faz-acordo-de-r-400-milhoes-com-a-ecorodovias. Acesso em 3 fev. 2024.
21 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.25.000.004816/2018-15. Acesso em 29 set. 2025.
22 Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/ministerio-publico-federal-na-lava-jato-e-greenfield-e-ministerio-publico-do-parana-assinam-leniencia-com-empresas-do-grupo-j-malucelli. Acesso em 3 fev. 2024.
23 Disponível em: https://apps.mpf.mp.br/apps/f?p=131:8. Procedimento n° 1.30.001.003458/2020-78. Acesso em 29 set. 2025.
24 Disponível em: https://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-firma-acordo-de-leniencia-e-garante-o-ressarcimento-de-quase-r-60-milhoes-aos-cofres-publicos. Acesso em 3 fev. 2024.
25 O Acordo prevê que o monitoramento seja realizado por auditoria independente, que realize seus trabalhos conforme as melhores práticas internacionais: cláusula XXI - A COLABORADORA compromete-se a contratar auditoria independente, conforme as melhores práticas internacionais, que deverá realizar o controle do acompanhamento de todas as obrigações assumidas neste Acordo, incluindo o controle sobre a execução dos projetos sociais previstos na cláusula 16, devendo o resultado de tal auditoria e controle de acompanhamento serem consolidados em relatórios anuais;
26 TAMASAUSKAS, Igor Sant'Anna. Acordo de leniência anticorrupção: uma análise sob o enfoque da teoria de redes. 2020. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 174. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-22032021-132641/publico/1049987_Tese_Original.pdf#page=25.10. Acesso em 6 set. 2025.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.
Rafael Szmid
Counsel no escritório global Reed Smith. Advogado licenciado no Brasil e nos Estados Unidos (Nova Iorque). Mestre e Doutor, Universidade de São Paulo. LL.M., Stanford Law School. Membro da International Association of Independent Corporate Monitors. Autor do livro "Monitores Corporativos Anticorrupção no Brasil: Um Guia para sua Utilização no Processo Administrativo e Judicial" e de artigos acadêmicos sobre anticorrupção, antitruste e compliance.




