Exame de aspectos pontuais da reforma tributária
A EC 132/23 cria normas confusas, impostos seletivos e um Comitê Gestor questionável, sem trazer simplificação, neutralidade ou eficiência ao sistema.
terça-feira, 7 de outubro de 2025
Atualizado em 6 de outubro de 2025 11:08
A reforma tributária aprovada pela EC 132/23, centrada na unificação de tributos incidentes sobre o consumo pertencentes às diferentes esferas de poder impositivo (IPI, Contribuições Sociais, ICMS e ISS), foi um embuste do começo ao fim.
Nenhum dos pilares invocados - a simplicidade, a neutralidade fiscal e a eficiência - foram alcançados.
De fato, não cabe falar em simplificação, item martelado na cabeça do contribuinte dia e noite pela mídia estatizada, se a reforma contém 491 novas normas constitucionais, e o regulamento do IBS/CBS contém nada menos que 1.000 normas dúbias, confusas e conflitantes.
Não há que falar em neutralidade fiscal, igualmente, se a reforma prevê isenções e reduções de 30%, 40%, 50% e 60%, conforme se verifica dos incríveis XV anexos onde aparecem uma infinidade de produtos, de mercadorias e de serviços isentos ou favorecidos por reduções na proporção da atuação dos diferentes lobbys durante a discussão e aprovação da proposta de reforma tributária, tudo de sorte a direcionar os consumidores. Turbinada pela liberação de bilionárias emendas parlamentares a PEC 45 não observou o devido processo legislativo. Além de incorporar emendas no curso da votação, o que é inusitado, a reforma tributária foi aprovada nas duas Casas Legislativas em dois turnos em sessões relâmpagos. O primeiro e segundo turnos foram votados simultaneamente.
Por derradeiro, a eficiência, também, é incogitável ante o inferno fiscal bem pior do que aquele desenhado por Dante Alighieri.
Mas, o pecado da reforma não fica apenas na quebra dos pilares anunciados, como veremos.
A reforma criou o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro - para identificar todos os imóveis rurais ou urbanos existentes no território nacional através de um código. A IA propiciará uma visão de destinação dada a cada imóvel. Se o contribuinte tiver dois ou mais imóveis e não estiver residindo em nenhum deles será classificado como sonegador do imposto sobre a renda incidente sobre os alugueis e haverá lançamento retroativo do imposto com imposição de multa.
Portanto, é preciso que o contribuinte que cedeu o uso gratuito do imóvel a um familiar se municie com um contrato de comodato revestido de todas as formalidades legais para evitar a cobrança retroativa do imposto de renda.
A reforma implantou o regime de tributação por fora, que vai ao encontro do princípio da transparência tributária previsto no art. 150, § 5º da CF, e ao mesmo tempo criou o cashback, como se o consumidor final tivesse arcado com o ônus financeiro do imposto como acontece com o ICMS, ISS e contribuições sociais.
Os atrapalhados legisladores do Congresso Nacional não têm a menor ideia do monstrengo que aprovaram, precipitadamente, regados por liberação de emendas parlamentares bilionárias por duas vezes em cada Casa Legislativa.
A EC 132/23 institui, ainda, o chamado imposto seletivo a pretexto de preservar o meio ambiente e a saúde do brasileiro.
Sabe-se que nenhum tributo regulatório no Brasil cumpre a sua missão, transformando-se em mero tributo arrecadatório, a exemplo do IOF.
Esse imposto seletivo foge do princípio da generalidade da tributação e do princípio da isonomia. É conhecido como imposto do pecado. Joga uma carga tributária estúpida sobre produtos selecionados a dedo, recaindo sobre aqueles mais rendosos.
Esse imposto escorchante viola o princípio informador da ordem econômica e afronta o princípio da livre concorrência. Parte das empresas serão oneradas com esse imposto do pecado, ferindo de morte o princípio da isonomia entre os contribuintes, jogando uma carga tributária estúpida sobre alguns poucos contribuintes e deixando a maioria deles sem esse imposto.
Outro absurdo da reforma tributária é a introdução do split payament ou pagamento fracionado.
O governo não mais quer esperar o final da apuração mensal do IBS. Ele quer arrecadar a cada operação de compra e venda aumentando a burocracia, de um lado, e reduzindo o espaço de manobra para formação do capital de giro, de outro lado. Configura um aumento indireto do IBS. É o carnê leão em sua versão moderna.
A reforma criou, ainda, o Comitê Gestor, uma autarquia federal que faz às vezes do Estado arrecadando e distribuindo o IBS mediante abocanhamento de 60% do IBS de 2026 e de 50% do IBS de 2027/2029.
Isso é inusitado. Não há similar no mundo. Tornou-se um sócio permanente na partilha do produto de arrecadação do IBS.
Mas não é só. Quebrou a espinhal dorsal do Direito Orçamentário. Qualquer despesa a ser paga deve estar contemplada na LOA - Lei Orçamentária Anual - por meio de uma dotação específica por razões óbvias.
Todas as despesas públicas devem ser fiscalizadas e controladas pelo TCU ou Tribunais de Contas Estaduais ou municipais, e sem a inclusão orçamentária, isto é, sem elementos de despesas não há como a Corte de Contas exercer as suas atribuições de fiscalizar e controlar a execução orçamentária.
Esse famigerado Comitê Gestor burla a fiscalização do emprego de recursos públicos e viola o princípio constitucional inserto ao inciso IV do art. 167 da CF que veda a vinculação do produto da arrecadação do imposto a órgão, fundo ou despesa. Esse princípio está sob a proteção de cláusula pétrea.
Outrossim, a LC 214/25 que aprovou o regulamento do IBS/CBS dispensa do pagamento do IBS de 2026 àquele contribuinte que cumprir as obrigações acessórias, ignorando o fato de que as obrigações acessórias existem para assegurar a realização do crédito tributário.
Outrossim, o imposto é bem público essencial e indisponível, encontrando-se fora do campo de negociação, cumprindo ao ente político respectivo, no caso, o Comitê Gestor, arrecadar sob pena de prevaricação.
O Comitê Gestor que sequer detém a competência impositiva e fiscalizatória não tem, igualmente, o poder para dispensar o pagamento do imposto. Somente quem tem o poder de tributar pode dispensar o pagamento do tributo. Isso é elementar meu caro Watson!
Apesar das 1.000 normas do Regulamento do IBS/CBS o confuso Congresso Nacional não teve a competência para definir o fato gerador do IBS. Os arts. 4º, 5º e 6º do regulamento, contendo 63 normas, não foram capazes de definir o fato gerador do IBS que tem por limite o céu. É o imposto mais inseguro do planeta. Irá duplicar as demandas judiciais.
Com efeito, os arts. 4º e 5º buscam delimitar o campo de incidência do IBS, mas não de forma precisa como deveria ser, tanto é que o artigo 6º procura excluir da definição dos arts. 4º e 5º as hipóteses de não incidência proclamando o óbvio. É como se o caput de um artigo tivesse enumerado todas as espécies de animais e o parágrafo único prescrevesse que a mosca azul não integra o rol de animais.
Essa reforma tributária adoidada fracionou o fato gerador do IBS em vários de seus aspectos distintos, como se faz na doutrina para fins meramente didáticos, assim como se faz com órgãos humanos para fins de estudos médicos, e não para dar vida autônoma a cada órgão humano.
Dessa forma, o aspecto material do fato gerador do IBS ficou com a União. Esse aspecto material define o titular da competência tributária. Logo, o IBS é um imposto federal sui generis, sem poder de fiscalizar e arrecadar.
Os estados e municípios ficaram com parte do aspecto quantitativo do fato gerador criando as respectivas alíquotas sem, contudo, poder definir a base de cálculo. Ganharam, igualmente, o poder de fiscalizar e lavrar autos de infração, porém, sem poder julgar esses autos de infração por meio de seus órgãos administrativos tributários.
O Comitê Gestor, mera autarquia federal, ganhou poder normativo e a prerrogativa de arrecadar e distribuir o IBS sem que tenha competência para instituí-lo e fiscalizá-lo, desempenhado função típica de Estado sem que integre a Federação Brasileira.
O fato gerador de um imposto só se completa quando presentes todos os seus elementos: o elemento material; o elemento subjetivo (passivo e ativo); o elemento quantitativo (base de cálculo e alíquota); o elemento espacial que define o sujeito ativo; e o elmento temporal que define a legislação aplicável.
Vários atores se intercalam na criação, fiscalização e arrecadação desse imposto peculiar, tal como acontece com o revezamento da tocha olímpica por diferentes atletas ao longo do percurso.
Por tudo isso propomos, por intermédio do IBEDAFT - Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - que presidimos, um anteprojeto de contrarreforma tributária para de fato simplificar o sistema tributário e baratear o custo de arrecadação do imposto.
O IBS dual seria desmembrado em IBS estadual e em IBS municipal, atribuindo a estados e municípios a competência para instituir o imposto, fiscalizar e arrecadar sem acrescer um centavo sequer de despesas.
Mas, o projeto é simples demais para despertar a atenção dos operosos congressistas habituados a legislar em causa própria, de um lado, e gerar um caos legislativo, de outro lado, com produção de normas dúbias e conflitantes em escala industrial. Tamanha a quantidade de leis que são despejadas diariamente pelas três esferas políticas que já se perdeu a sua quantificação.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.


