A ilegalidade do "valor justo" como base do ITCMD sobre quotas
O ITCMD sobre doação de quotas deve ter como base o patrimônio líquido contábil, e não o "valor justo" dos imóveis. A adoção desse critério é ilegal, viola a legalidade e gera insegurança jurídica.
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Atualizado às 14:36
O debate em torno da determinação da base de cálculo do ITCMD em doações de quotas societárias ganha contornos cada vez mais relevantes, sobretudo diante de interpretações fiscais que procuram inovar sem respaldo Legislativo. O caso do Estado do Espírito Santo ilustra bem esse cenário: a Fazenda estadual, em Relatório Fiscal de Avaliação Patrimonial, pretendeu atribuir como base de cálculo o chamado "valor justo" dos bens imóveis integralizados ao capital social da sociedade, desconsiderando o patrimônio líquido contábil.
Essa prática, ainda que revestida de argumentos de correção econômica, padece de vícios insanáveis do ponto de vista do Direito Tributário, pois altera o critério quantitativo da regra-matriz de incidência sem lei que o ampare, resultando em exigência inconstitucional e ilegal.
1. A regra-matriz de incidência e o critério quantitativo
Como bem ensina Paulo de Barros Carvalho, a regra-matriz de incidência tributária é composta por critérios lógico-estruturais (material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo), cuja modificação somente pode decorrer de previsão legislativa específica. No caso do ITCMD, a CF (art. 155, I, CF/88) e o CTN (arts. 35 e ss.) estabelecem que a base de cálculo é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.
Se a doação tem por objeto quotas sociais, estamos diante de um bem móvel incorpóreo, cujo valor venal se identifica com o patrimônio líquido contábil da sociedade, apurado na data da ocorrência do fato gerador. O próprio Direito Societário e a doutrina contábil convergem nesse ponto: a quota não é o imóvel em si, mas a fração ideal do capital social, cujo valor se espelha na situação líquida da empresa.
A substituição desse critério pelo "valor justo" dos ativos da sociedade caracteriza verdadeira mudança de critério jurídico, o que é vedado pela legalidade tributária.
2. A ilegalidade do "valor justo" como base de cálculo
A adoção do "valor justo" dos imóveis integralizados ao capital social deriva de técnicas contábeis e de pesquisa de mercado, como o método comparativo direto de dados, mas não encontra qualquer previsão normativa para fins tributários.
Aqui reside o cerne da ilegalidade: a CF, em seu art. 150, I, veda a exigência de tributo sem lei que o estabeleça. Como o legislador estadual jamais previu que o ITCMD sobre quotas de sociedade limitada deva se pautar pelo valor de mercado dos bens integralizados, a conduta fiscal representa um claro arbitramento indevido da base de cálculo.
A jurisprudência do TJ/SP é emblemática: no julgamento da apelação 1023913-08.2020.8.26.0482, restou decidido que a base de cálculo do ITCMD em doação de quotas corresponde ao valor patrimonial contábil, e não ao valor de mercado dos imóveis integralizados. Tal entendimento, além de coerente com a literalidade da lei, preserva a segurança jurídica e a isonomia.
3. Princípios constitucionais violados
A atuação fiscal não apenas carece de respaldo legal, mas também fere princípios constitucionais estruturantes do sistema tributário:
Legalidade tributária (art. 150, I, CF/88): Vedação de exigir tributo sem lei. A substituição do patrimônio líquido contábil pelo "valor justo" é criação normativa da Administração.
Capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF/88): A tributação deve se dar de acordo com a real manifestação de riqueza. O contribuinte que doa quotas não transmite imóveis, mas frações ideais do capital.
Vedação ao confisco (art. 150, IV, CF/88): Ao reavaliar imóveis e inflar a base de cálculo, o fisco pode impor carga tributária desproporcional, transformando o ITCMD em instrumento confiscatório.
Segurança jurídica e proteção da confiança: o contribuinte deve poder planejar transmissões patrimoniais com previsibilidade. A alteração arbitrária da base de cálculo mina essa confiança legítima.
4. A busca da verdade material e o papel da prova pericial
Ainda que se cogitasse a necessidade de reavaliar o patrimônio líquido da sociedade, isso deveria ocorrer dentro dos parâmetros legais e mediante prova idônea. Laudos emitidos por peritos avaliadores regularmente inscritos têm demonstrado que os valores atribuídos pelo fisco, via "valor justo", frequentemente não refletem a realidade econômica e resultam em distorções.
O próprio princípio da verdade material, que deve nortear a atividade fiscal, não pode ser manipulado para justificar exigências ilegais. É contraditório alegar correção econômica ao mesmo tempo em que se despreza o objeto jurídico da tributação (as quotas societárias).
5. Considerações finais
A prática da Fazenda Estadual de utilizar o "valor justo" dos imóveis integralizados ao capital social como base de cálculo do ITCMD em doações de quotas societárias é ilegal, inconstitucional e perigosa.
Trata-se de um expediente arrecadatório travestido de correção contábil, que viola frontalmente a legalidade, a segurança jurídica e a capacidade contributiva. O precedente aberto por esse tipo de interpretação coloca em risco a estabilidade do sistema tributário e transforma o contribuinte em refém da criatividade fiscal.
O caminho legítimo é claro: a base de cálculo do ITCMD sobre quotas deve corresponder ao valor patrimonial contábil, conforme previsto em lei e reafirmado pela jurisprudência. O contrário representa não apenas um erro técnico, mas uma afronta à própria Constituição.



