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IA escreve. Mas quem responde no tribunal?

Uso da inteligência agiliza tarefas jurídicas e gera ganhos de produtividade, mas o advogado mantém papel central na estratégia e decisão.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Atualizado em 7 de outubro de 2025 11:02

Um estudo muito interessante da Thomson Reuters (Future of Professionals Report) analisou os impactos da IA no mundo jurídico e como ela, na prática, gera ganhos de produtividade consistentes quando a adoção é bem-feita. Segundo a pesquisa, 8 em cada 10 profissionais acreditam que a IA terá um impacto alto ou até transformacional em suas profissões nos próximos cinco anos - e mais da metade (53%) já afirma que suas organizações estão obtendo retorno sobre esse investimento, sobretudo em eficiência, redução de erros e agilidade de resposta. Algumas coisas são tão fantásticas que é difícil não pensar que, em breve, seremos todos substituídos.

Essa qualidade tão evidente me fez refletir sobre uma característica antiga do nosso negócio, até então tida como imutável: a alta dependência de capital humano. Em 2017, John Morley escreveu o artigo Why Law Firms Collapse, publicado pela Harvard Law School, em que analisa fragilidades comuns aos escritórios de advocacia - e essa era uma das principais. Tão marcante que uma frase comum no meio diz que "os ativos dos escritórios de advocacia descem pelo elevador todas as noites".

E se o coração do negócio sempre foi gente, como fica essa equação diante da ascensão da inteligência artificial? Estamos perto de perder essa dependência?

Como toda nova tecnologia, a chegada da IA veio com o entusiasmo típico dos cenários "hipertransformadores". Eu mesmo entrei no hype. Imaginava reduzir um volume considerável das atividades repetitivas do time logo no primeiro ano - e, de fato, otimizamos muitos fluxos, como cadastro de pastas, tratamento de subsídios, validação de peças, identificação de advocacia predatória e triagem de sentenças, entre outros. Mas, surpreendentemente, o efeito não foi a redução da equipe. Pelo contrário: ao liberar tempo e incorporar a IA às rotinas, abrimos novas frentes com clientes e ampliamos a atuação. No fim, mesmo ganhando em produtividade, o time cresceu.

Por outro lado, surgem diariamente ferramentas que prometem "disruptar" a advocacia como a conhecemos - muitas com base em petições geradas automaticamente por IA. Essa expectativa, no entanto, me parece uma leitura simplória da atuação do advogado.

É verdade que a IA já se mostra útil para agilizar análises, sugerir minutas e organizar grandes volumes de informação. Mas, até o momento, não vejo a IA substituindo o advogado - e sim redistribuindo funções, especialmente porque o sistema que automatiza depende de quem ensina, valida e ajusta. O impacto, claro, varia conforme a área: algumas atividades são mais impactadas que outras. Ainda assim, até aqui, enxergo que a IA criou um papel para o advogado: o de quem treina os próprios sistemas.

Afinal, o que o cliente menos espera - e o que o negócio menos pode tolerar - é a repetição de padrões, o que torna a retroalimentação humana ainda mais essencial. Isso porque, se de um lado há um grande litigante explorando ao máximo uma defesa padronizada, do outro sempre haverá alguém tentando contorná-la.

Para ilustrar o que realmente está em jogo, lembro uma história que ouvi do meu pai, advogado, doutor em Direito e professor da universidade. Um cliente e amigo de longa data reclamava, em tom de brincadeira, do preço dos honorários em um caso que foi resolvido com uma petição de apenas uma página - suficiente para demonstrar, em juízo, uma nulidade em uma execução que, até aquele momento, bloqueava os bens do cliente. Meu pai riu e devolveu:

- Se você conseguir chegar à mesma conclusão, redigir, assinar, protocolar, ser recebido pelo juízo, despachar o caso e obter a decisão com a brevidade esperada, além de não pagar, eu ainda pago o jantar.

Era claro que o valor dos honorários não precificava apenas aquela página.

Anos depois, vivi uma experiência parecida numa negociação de honorários. Um cliente justificou: "as peças destas causas são simples e têm só duas páginas". Tive de explicar que aquelas duas páginas eram apenas parte do trabalho: a análise anterior, a definição de estratégia, o risco assumido e até o feedback que retornava à operação.

Essa mesma ideia aparece numa história que circula na academia, atribuída a Pontes de Miranda. Já em idade avançada, depois de escrever mais de duzentos volumes de obras jurídicas, ele foi questionado sobre o que mais lamentava não ter feito pela área. Respondeu que lamentava só então, quando já não tinha mais a mesma energia, começar a entender o que era o Direito.

Essas situações ilustram o mesmo ponto: a advocacia não é apenas o que está escrito - é a clínica que antecede a redação. Exige interpretação, contexto, escuta, sensibilidade e tempo. É assumir riscos junto ao cliente e com o Judiciário. É interagir com áreas-meio, construir aprendizado organizacional a partir dos casos e, muitas vezes, influenciar diretamente o negócio da empresa. É também a capacidade de gerir equipes, conhecimento e processos em escala. Acima de tudo, é a relação de confiança que se constrói.

A advocacia seguirá sendo uma atividade de decisão. A tecnologia pode apoiar, sugerir, redigir - mas não substitui o papel de quem escolhe a tese e assina por ela.

Assinar, aliás, não é só protocolar. É assumir risco. Quando um cliente contrata um advogado, muito além de indicar um representante, está contratando alguém que topa dividir a responsabilidade pela condução do caso. Alguém que responde por cada palavra e, não raro, pelo que acontece depois do processo - especialmente naquelas situações em que a lide ultrapassa o processo e vira disputa entre advogados no Tribunal de Ética da OAB.

Por outro lado, como entusiasta, vejo claramente como a IA acelera a olhos vistos no mundo jurídico e em tantas outras áreas. Em dez anos, é provável que surjam usos tão inesperados quanto aqueles que vieram com o surgimento da internet - como pedir comida, comprar produtos online, usar a rede como álbum de fotos, compartilhar a rotina, peticionar em processos eletrônicos e até despachar com o magistrado por vídeo. A inovação tem sua dose de acaso - e penso que, com a IA, não será diferente. Ainda assim, acredito que este trabalho do advogado - invisível e contínuo -, para além da petição, seguirá sustentando a profissão e subindo pelo elevador todas as manhãs.

Diogo Furtado

Diogo Furtado

Sócio do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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