Streaming musical e fragilidade dos criadores
Reflexão jurídica sobre a exploração de autores no streaming musical, destacando a urgência de valorização e remuneração justa dos criadores.
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Atualizado em 7 de outubro de 2025 11:04
- "Meu filho, artista morre de fome".
- "Não tem problema, mãe, eu como pouco"1.
1. Introdução
O ato de criar transcende a cintilância daquilo que se banalizou chamar de "genialidade", constituindo um tipo de labor peculiar: é o agir do trabalhador2 intelectual, o "cérebro-de-obra". Aqueles que se dedicam a tal profissão no campo musical podem cumular talentos de domínio melódico, de métrica, do uso da semântica/sintática/pragmática literária, das transformações criativas, das adaptações, das novas interpretações, da especialização em obras derivadas etc.
Tal como o imortal Ruy Castro escreveu3, ninguém escreve bem; alguns reescrevem bem. Fenômeno parecido ocorre com a criação musical: a versão que chega aos ouvidos de terceiros é resultado de um longo refino4, tal como o de um vasto tapete que começou com um mísero fio.
2. Obra criada e exteriorizada: A distribuição e execução
Quando se envereda a forma com a qual a obra musical alheia é transmitida, alguns juristas do Direito Comercial se interessam pelas perdas hegemônicas entre as formas de distribuição (rádio, mídias isoladas, download etc.). Cada era denota oscilações sobre a predileção consumerista no que tange às formas de acesso musical.
Perpassada a fase inaugural de novidade tecnológica; definida a atuação das sociedades de streaming musical como prestadoras de serviços de execução pública (STJ, 2ª seção, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, REsp 1.559.264, DJ 15/2/17); é preciso evoluir nos debates jurídicos setoriais.
Para tanto, o pretório excelso marcou uma data importante - o dia 27/10/25, quando o ministro José Antônio Dias Toffoli designou audiência pública para o caso ARE 1.542.420 (Tema 1.403), cuja temática abrange os direitos autorais e o streaming.
3. Intermediários e violações às esferas jurídicas alheias
As facilidades e utilidades de um serviço do intermediário que lucra ao conectar consumidor com os titulares de direito autoral, além de viabilizar o acesso à obra, são conhecidas. Entre elas, destacam-se: (a) a centralização de um canal unívoco, ao invés da pulverização de fontes, (b) maior controle às circulações ilícitas da obra, pelas limitações ao download, (c) grande número de assinantes ao serviço, o que permite ganho de escala e de escopo, além de publicidade, e (d) utência da plataforma para a divulgação de novos trabalhos, e os efeitos virtuosos de espetáculos "ao vivo" gerarem demanda para novas execuções das canções no streaming - a continuidade da "experiência".
O modismo e eventual conveniência dos serviços de tais intermediários, entretanto, não salvaguardam os criadores-autores de sofrerem com práticas "questionáveis" por parte de quem opera o streaming. Entre os atos ilícitos mais frequentemente praticados contra os autores destacam-se: (i) omissão à autoria (ex: TJ/SP, 3ª Câmara de Direito Privado, desembargador Mario Chiuvite Junior, AC 1091726-32.2023.8.26.0002, J. 22.05.2025); (ii) reprodução sem autorização da obra, além de crédito de criação ao sujeito diverso do autor (TJ/RS, 6ª Câmara Cível, desembargador Eliziana Perez, AC 0016024-64.2021.8.21.7000, J. 26/8/21) ou (iii) dados inexatos sobre a autoria ou sobre intérpretes, imputando o "erro" (rectius, terceirizando a responsabilidade) às gravadoras, distribuidoras ou produtores (TJ/SP, 10ª Câmara de Direito Privado, desembargador Márcio Boscaro, AC 1080113-75.2024.8.26.0100, J. 29/4/25).
Pela quantidade expressiva de demandas, em diversos Tribunais do país, o que se nota é uma conduta sistemática de desrespeito aos direitos patrimoniais e existenciais no contexto do Direito Autoral e dos Direitos Conexos. Deve ser lucrativo agir assim, em detrimento da pessoa humana!
4. Urge um debate público sobre valorização remuneratória dos autores
Se não há grandes dúvidas sobre a reparabilidade pelos danos patrimoniais e existenciais perpetrados contra os autores, questão menos evidente é o do achatamento remuneratório pela execução pública de suas produções.
No ambiente do Direito Internacional Público, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 27.1 e 27.2) menciona o direito dos autores de fruírem dos benefícios da vida cultural, além da proteção de seus interesses juridicamente relevantes pelas suas criações artísticas.
Por sua vez, quando se observa a Constituição da República Federativa do Brasil, além das previsões específicas do art. 5º XXVII e XXVIII, deve-se refletir sobre uma remuneração digna a tais trabalhadores, na esteira do art. 7º, V e XI. Ou seja, é preciso um debate público vertical sobre (a) a ampliação da sindicabilidade dos critérios remuneratórios pela execução de suas obras, (b) a melhoria da transparência sobre o quantitativo da execução pública nas plataformas (não podem existir "caixas-pretas") e (c) o aumento da remuneração em si, com melhor partilha das mais-valias.
No atual estado da arte, os intermediários têm permanecido com as fatias mais gordas do bolo enquanto a comunidade artística permanece sobrevivendo com parcas migalhas.
5. Conclusões
Alguns dos desafios impostos à classe musical não difere, em demasia, do tipo de imposição unilateral que as plataformas de transporte individual de passageiros - ou os intermediários de serviços de entregas à domicílio - impõem aos motoristas.
Sem dúvidas há a distinção da "mão-de-obra" para o "cérebro-de-obra", a reprodutibilidade técnica que pode independer de novas intervenções do autor, além das complexidades por outros intermediários na relação (gravadora, editora, produtora, demais coautores, intérpretes etc.).
O que se percebe na conhecida dicotomia entre o dever-ser jurídico e o ser do cotidiano na economia, é que o darwinismo social tem imposto um compartilhamento extremamente injusto das benesses capitalistas da circulação das obras musicais. Um ambiente cultural (art. 215 da CRFB) plural e includente pode ser estabelecido com a implementação dos direitos fundamentais, sociais e humanos em prol de um maior controle e prestígio dos autores no ambiente da execução pública via streaming.
A "romântica" mitologia de que o aperto n'alma5, as privações econômicas dos artistas e a carestia são boas musas aos autores deve ser sepultada de uma vez por todas. Assim, o mesmo STF que sepultou a existência de Patentes Marajás no Brasil - (prazos incertos, muito extensos e vilipendiadores do domínio público, ADIn 5.529) - terá a oportunidade de ouvir atores dos mais diversos âmbitos, de modo a formar seu convencimento sobre o necessário e delicado equilíbrio entre autores, titulares, o Estado, os consumidores, a "concorrência" e o meio-ambiente cultural.
________________
1 Excerto da Palestra do artista plástico goiano Siron Franco (no qual narrou diálogo havido com sua mãe, quando ainda infante comunicou sua decisão existencial-profissional), organizada pelo Prof. Dr. Osny da Silva Filho (douto Diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC)), na sede da FGV-SP, 21.05.2025.
2 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. O trabalhador-autor. São Paulo: Migalhas, 12.06.2020, acessível em https://www.migalhas.com.br/depeso/328786/o-trabalhador-autor
3 CASTRO, Ruy. Escrever Bem. São Paulo: Folha de São Paulo, 28.09.2023: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2023/09/escrever-bem.shtml.
4 "A perfeição instantânea da arte, a necessidade de sua renovação não passa de preconceito. Pois a obra de arte é também uma construção." CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. 22ª Edição, Rio de Janeiro: Record, 2021, p. 114.
5 "Quando o homem está em situação de aflição, tudo o que entra no espírito parece-lhe inspiração." CASANOVA, Giacomo. História da Minha Fuga das Prisões de Veneza. São Paulo: Nova Alexandria, 2012, p. 160.
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.


