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Teoria do plano falso coletivo: Abusividade de referida contratação

A prática de enquadrar famílias em contratos formalmente classificados como planos de saúde empresariais, tem sido objeto de enfrentamento pelo Poder Judiciário, entendendo-se pela abusividade.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Atualizado em 24 de outubro de 2025 12:32

A caracterização do plano falso coletivo não se baseia exclusivamente na nomenclatura ou classificação formal do contrato, mas na análise substancial da relação jurídica estabelecida. Em diversas decisões, o TJ/PE e, também, o STJ, consignaram que o número diminuto de vidas, notadamente entre familiares, caracteriza o contrato como "coletivo atípico", devendo ser equiparado a um plano de saúde familiar.

Em acórdão do TJ/PE (Proc. APELAÇÃO: 0069275-62.2024.8.17.2001, 8ª Câmara Cível, relator desembargador PAULO ROBERTO ALVES DA SILVA, DJ 17/8/25), assim consignou:

"A controvérsia posta nos autos cinge-se à validade dos reajustes aplicados em contrato de plano de saúde formalmente classificado como coletivo empresarial, mas que, na realidade, abrange apenas três beneficiários da mesma família, sem pessoa jurídica estipulante, o que caracteriza o chamado 'falso plano coletivo'.

A jurisprudência consolidada do STJ admite a reclassificação judicial do contrato quando presente simulação na natureza da contratação. Isso porque a classificação contratual não pode servir de escudo para práticas abusivas que visam escapar do controle regulatório da ANS sobre os reajustes dos planos individuais e familiares."

O fundamento jurisprudencial atualmente consolidado reside na constatação de que, uma vez caracterizado o falso coletivo, os reajustes aplicados com base em sinistralidade ou variação de custos médico-hospitalares configuram prática abusiva.

Em verdade, a criação da figura do "falso coletivo" remonta, na origem, à retirada de comercialização dos planos individuais e familiares do mercado, a pedido das próprias operadoras, como uma decisão estratégica, conforme as próprias operadoras descrevem. Em artigo publicado pelo Jornal O Globo¹, datado de 2015, constou que diversas operadoras não comercializam mais planos individuais e familiares. Em citado artigo,

"A Bradesco Saúde (maior do país, conforme a ANS) informou que desde 2007 não comercializa mais os planos individuais, "pois seu foco estratégico está voltado para o segmento corporativo. (...)  Já a SulAmérica (quarta no ranking) deixou de comercializar planos individuais em 2008, por uma decisão estratégica, afirmou a empresa por meio de nota".

Na verdade, grandes operadoras de saúde do país, anos após a disciplina normativa que disciplinou e regulamentou os reajustes anuais para planos individuais e familiares, retirou de comercialização os planos individuais e familiares para focar apenas em planos coletivos.

O que não quer dizer, é óbvio, que não comercialize mais com famílias. Referida modalidade de contratação sempre existiu e continuou existindo - contudo, por opção (não é demais destacar), as operadoras passaram a nomear referida modalidade de contratação como "empresarial" - fugindo, a partir daí, do teto fixado pela ANS para planos individuais e familiares.

Em decisão de 2025, o TJ-PE, no acórdão do processo 0061238-17.2022.8.17.2001, relatado pelo desembargador Ruy Trezena Patu Júnior, julgado em 29/2/24 (1/3/24), avançou na fundamentação teórica da tese do falso coletivo, invocando a teoria da causa do negócio jurídico e a noção de fraude à lei - de importante lição a ser aplicada:

"Na clássica lição de Enzo Roppo, embora seja o contrato um conceito jurídico, reflete uma realidade exterior a si próprio, pois sempre traduz uma operação econômica (O Contrato, Almedina, Coimbra, 1.988, ps. 7 e seguintes).

Tal constatação está intimamente ligada à noção de causa do negócio jurídico, ou seja, 'o fim econômico e social reconhecido e garantido pelo direito, uma finalidade objetiva e determinante do negócio que o agente busca além do fato em si mesmo' (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, 18ª Edição, Forense, vol. I, p. 319)."

Aplicando essa teoria ao caso concreto, o acórdão conclui:

"No caso concreto, parece óbvio que o objetivo comum a ambas as partes foi a proteção de um grupo familiar, o que desloca a natureza do plano de empresarial para familiar e o coloca sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor.

A contratação de plano nitidamente familiar pelo seu escopo e função econômica como plano coletivo tem a finalidade de driblar e escapar do controle de normas cogentes. É a fuga de um regime jurídico protetivo para regime jurídico comum."

Essa passagem é crucial, pois identifica a prática como fraude à lei: utiliza-se de uma forma jurídica lícita (contrato coletivo empresarial) para alcançar um resultado vedado pelo ordenamento (elidir a proteção regulatória da ANS).

O TJ/PE não construiu essa tese isoladamente. Ao contrário, fundamenta-se em sólida jurisprudência do STJ, que há anos vem reconhecendo a possibilidade de reclassificação judicial dos contratos de plano de saúde quando presentes indícios de simulação ou fraude.

O acórdão do processo 0061238-17.2022.8.17.2001 transcreve trecho de julgado do STJ que sintetiza o entendimento da Corte Superior:

"Tal prática já foi reconhecida pelo STJ, que estendeu as regras protetivas e cogentes dos planos de saúde individuais e familiares aos planos 'falsos coletivos' (AgInt no REsp 1.823.727/SP, relator ministro Moura Ribeiro, 3ª turma, DJe de 18/12/19; AgInt no REsp 1.834.839/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, DJe de 29/11/19; AgInt no AREsp 1.428.427/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª turma, DJe de 26/11/19; e AgInt no REsp 1.817.280/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, DJe 26/9/19)."

O acórdão cita ainda precedente mais recente, que consolida definitivamente a tese:

"AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO COMINATÓRIA - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA RECURSAL DA DEMANDADA. 1. O Tribunal local consignou se tratar de um contrato 'falso coletivo', porquanto o plano de saúde em questão teria como usuários apenas poucos membros de uma mesma família. Modificar tal premissa demandaria o revolvimento de matéria fático-probatório. Incidência das súmulas 5, 7 do STJ. Precedentes. 2. Segundo a jurisprudência do STJ é possível, excepcionalmente, que o contrato de plano de saúde coletivo ou empresarial, que possua número diminuto de participantes, como no caso, por apresentar natureza de contrato coletivo atípico, seja tratado como plano individual ou familiar, aplicando-se-lhe as normas do CDC. 3. Agravo interno desprovido. AgInt no REsp 1.880.442/SP (relator: ministro Marco Buzzi, Data de Julgamento: 2/5/22, T4 - 4ª turma, Data de Publicação: DJe 6/5/22)"

Mais recentemente, o STJ reafirmou esse entendimento no REsp 2.060.050 (DJe 13/4/23):

"É possível afirmar que o contrato do requerente deveria ter natureza familiar, podendo ser denominado de falso coletivo, o que possibilita a adoção excepcional dos índices fornecidos pela ANS para os contratos individuais e/ou familiares."

E quais os direitos dos segurados, portanto?

Uma vez reconhecida judicialmente a falsa coletivização, as consequências jurídicas são claras e uniformes:

Direito à reclassificação judicial do contrato, com equiparação às regras dos planos individuais/familiares, independentemente da nomenclatura formal do contrato.

Direito à aplicação dos reajustes anuais da ANS, afastando-se os percentuais baseados em sinistralidade ou variação de custos médico-hospitalares aplicados pela operadora.

Direito à restituição simples dos valores pagos a maior, nos últimos três anos anteriores à propositura da ação, com correção monetária e juros de mora.

Direito à manutenção do contrato, impedindo a rescisão unilateral imotivada pela operadora.

A teoria do plano falso coletivo representa uma importante evolução da jurisprudência brasileira na proteção dos direitos dos consumidores de planos de saúde. Ao privilegiar a substância sobre a forma, o Poder Judiciário tem enfrentado práticas abusivas que visam unicamente maximizar os lucros das operadoras em detrimento da segurança e da saúde dos segurados.  A prova da falsa coletivização, a demonstração da abusividade dos reajustes e a correta formulação dos pedidos (equiparação, aplicação dos índices da ANS, restituição de valores e manutenção do contrato) são elementos determinantes para o êxito das demandas.

_____________________

1 Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/plano-de-saude-individual-mais-raro-caro-15848792. Consultado em 15 de outubro de 2025.

Acórdãos e decisões:

TJ-PE, Apelação Cível nº 0061238-17.2022.8.17.2001, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Trezena Patu Júnior, j. 29/02/2024, pub. 01/03/2024.

TJ-PE, Apelação Cível nº 0069275-62.2024.8.17.2001, 8ª Câmara Cível Especializada, Rel. Des. Paulo Roberto Alves da Silva, j. 17/08/2025, pub. 17/08/2025.

Precedentes do STJ:

STJ, AgInt no REsp 1.823.727/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3ª Turma, DJe 18/12/2019.

STJ, AgInt no REsp 1.834.839/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, DJe 29/11/2019.

STJ, AgInt no AREsp 1.428.427/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 26/11/2019.

STJ, AgInt no REsp 1.817.280/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, DJe 26/09/2019.

STJ, REsp 1.701.600/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 09/03/2018.

STJ, AgInt no REsp 1.880.442/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, DJe 06/05/2022.

STJ, REsp 2.060.050, DJe 13/04/2023.

Iris Novaes

VIP Iris Novaes

Pós graduada na área de saúde suplementar, advogada especialista em demandas contra planos de saúde com foco em demandas de reajustes indevidos aplicados pelas operadoras de saúde.

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