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A obrigatoriedade de fornecimento amplo de procedimentos e tratamentos para redesignação sexual de pessoas transexuais

Decisão do STJ consolida a proteção da saúde integral e da dignidade de mulheres transexuais.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Atualizado às 18:21

A 3ª turma de Direito Privado do STJ julgou acerca da obrigatoriedade de cobertura, por planos de saúde, do procedimento de glotoplastia, procedimento cirúrgico imprescindível para feminilização da voz, em casos de disforia vocal severa decorrente do processo de redesignação sexual de mulheres transexuais.

O cerne da controvérsia reside no acórdão do Tribunal de origem, que reconheceu a obrigatoriedade de cobertura do procedimento de glotoplastia para feminilização da voz, solicitado pela recorrida - beneficiária de plano de saúde - em virtude de disforia vocal severa.

O TJ/SP, ao analisar o mérito da ação cominatória, reiterou seu entendimento de que "a jurisprudência atual do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) reconhece a obrigatoriedade de cobertura de cirurgias de transgenitalização, incluindo a glotoplastia, pelos planos de saúde para pacientes transexuais".

A Apelação Cível nº 1000557-09.2023.8.26.0472 foi citada como exemplo, reafirmando que "procedimentos cirúrgicos prescritos por médicos assistentes, que são reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), devem ser cobertos pelos planos de saúde, mesmo que não estejam explicitamente listados no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) sem diretrizes de utilização".

A Ministra Daniela Teixeira, relatora do processo no STJ, fortaleceu a argumentação pela obrigatoriedade da cobertura, refutando a tese do plano de saúde de que o procedimento seria experimental ou de finalidade estética.

O voto destaca o Parecer Técnico nº 26/2021 da ANS, que define o "processo transexualizador" (ou redesignação sexual, transgenitalização, mudança de sexo, afirmação de gênero) como um conjunto de procedimentos clínicos e cirúrgicos disciplinados pela Portaria GM/MS 2803/2013 e pela Resolução CFM n.º 2265/2019. Embora o processo em si não esteja listado na RN n.º 465/2021, o parecer garante a cobertura de procedimentos listados no rol vigente sem diretriz de utilização, como mastectomia, histerectomia, ooforectomia/ooforoplastia e tiroplastia, quando indicados pelo médico assistente no âmbito do processo transexualizador.

A Lei 14.454/2022, que alterou a Lei 9.656/1998, é um marco fundamental. O § 4º do art. 10 da L. 9.656/98 passou a prever que "A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação." Os §§ 12 e 13 do mesmo artigo foram incluídos, consolidando o entendimento de que o rol da ANS, embora com certas exceções, é exemplificativo. Terapias não contempladas no rol, mas embasadas em evidências e protocolos médicos (como é o caso da glotoplastia com os laudos médicos e psicológicos presentes nos autos), devem ter cobertura assegurada.

A Ministra reforça que a Constituição Federal assegura o direito à saúde como direito social fundamental (artigos 6º e 196), integrando-se à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III). Desse modo, as operadoras de planos de saúde, mesmo sendo da iniciativa privada e exercendo função complementar ao SUS (artigo 199, §1º da CF), devem atuar em conformidade com os preceitos constitucionais, evitando práticas que comprometam o acesso a tratamentos essenciais à integridade psicofísica de seus beneficiários. A obrigação de promover a saúde se irradia também sobre as operadoras, que devem atuar em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e da função social do contrato.

A jurisprudência do STJ é clara e consolidada no sentido de que o plano de saúde deve custear cirurgias de redesignação sexual e prótese mamária para mulher transexual, ainda que não expressamente previstas no rol da ANS. Tais procedimentos são reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM 2265/2019) e incorporados ao Sistema Único de Saúde - SUS (Portaria nº 2.836/2011 do Ministério da Saúde, que institui a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, e a Portaria nº 2.803/2013, revisada pela Resolução CFM n° 2.427/2025). Tais intervenções não se caracterizam como procedimentos experimentais ou estéticos, mas sim como parte integrante de um conjunto de medidas voltadas à manutenção da saúde integral de pessoas trans, com finalidade terapêutica e de contribuição para o bem-estar psicossocial e afastamento da incongruência de gênero.

O voto cita precedentes importantes, como o AgInt no AREsp n. 2.480.833/RJ, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 10/2/2025, DJEN de 14/2/2025, que afirma: "A jurisprudência desta Corte consolidou entendimento de que é obrigatória a cobertura, pela operadora do plano de saúde, de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses em mulher transexual, pois se trata de procedimentos prescritos por médico assistente, reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e listados no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS)."

Destaca-se também o REsp n. 2.097.812/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/11/2023, DJe de 23/11/2023, que enfaticamente rechaça a alegação de caráter experimental e finalidade estética, afirmando que no processo transexualizador, a cirurgia plástica mamária reconstrutiva bilateral, incluindo prótese mamária de silicone, "muito antes de melhorar a aparência, visa à afirmação do próprio gênero, incluída no conceito de saúde integral do ser humano, enquanto medida de prevenção ao adoecimento decorrente do sofrimento causado pela incongruência de gênero, pelo preconceito e pelo estigma social vivido por quem experiencia a inadequação de um corpo masculino à sua identidade feminina."

A Ministra Daniela Teixeira, em um movimento inovador e fundamental, subsidia a análise do caso ao Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, conforme a Resolução CNJ n. 492 /2023. Essa abordagem visa a uma atenção especial às especificidades de mulheres e à prática jurisdicional que considere as subjetividades do caso.

O julgado, ainda, faz menção ao caso de Luiza Melinho, submetido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos à Corte Interamericana. Nele, a omissão do Estado brasileiro em assegurar o direito fundamental à saúde, especificamente o acesso à cirurgia de afirmação de gênero (glotoplastia), foi analisada. Os reiterados obstáculos ao procedimento, como cancelamentos, negativas em hospitais públicos e exigência de novas avaliações, evidenciaram a ausência de alternativas no sistema público de saúde e a falha das instâncias judiciais em garantir a tutela do direito à saúde em condições de igualdade. A Comissão concluiu pela violação de direitos assegurados pela Convenção Americana de Direitos Humanos, recomendando reparação integral e a adoção de medidas estruturais para eliminar entraves nos protocolos de saúde e garantir a celeridade na apreciação judicial de demandas relacionadas a cirurgias de afirmação de gênero.

A inclusão dessa perspectiva no voto da Ministra Daniela Teixeira reforça o compromisso do Judiciário com a igualdade e a não discriminação, reconhecendo a vulnerabilidade das pessoas trans e a necessidade de um olhar atento às barreiras sistêmicas que enfrentam. O voto representa um avanço significativo na proteção dos direitos de mulheres transexuais no Brasil, solidificando o entendimento de que procedimentos como a glotoplastia não são meramente estéticos ou experimentais, mas essenciais para a saúde integral e a dignidade humana, devendo ser cobertos pelos planos de saúde.

Por fim, a incorporação da perspectiva de gênero e a referência a casos internacionais como o de Luiza Melinho demonstram um olhar sensível e abrangente do Judiciário frente às complexidades das questões de gênero e saúde.

Reconhecer o direito das pessoas Trans de ter acesso a todas as cirurgias de redesignação de gênero, para que sua aparência se aproxime cada vez mais com o qual se identifica e se apresenta socialmente, é resguardar a sua vida, segurança, saúde mental, felicidade e acima de tudo, o seu direito de ser quem é.

A título de registro, somente no ano de 2024, 122 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil. No comparativo entre os anos de 2023 e 2024, foi percebida uma queda de 16% no número de assassinatos contra pessoas trans, de 145 em 2023 para 122 em 2024. Embora esse cenário venha melhorando nos últimos anos, há dados desagregados sobre o assassinato de pessoas trans, diante da subnotificação e da dificuldade de se colocar dados reais nos boletins de ocorrência. Jovens trans entre 15 e 29 anos têm sido os alvos mais recorrentes das dinâmicas de violências. A repetição desses dados ao longo dos anos aponta para a normalização da violência contra pessoas trans, especialmente as mais jovens. Isso corrobora com as pesquisas que indicam que a estimativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos.

Por fim, a pesquisa da ANTRA1 - Associação Nacional de Travestis e Transexuais -   constatou que em pelo menos 89% dos casos os assassinatos demonstraram requintes de crueldade, como o uso excessivo de violência, múltiplos golpes, degolamento, esquartejamento, e a associação com mais de um método e outras formas brutais de violência, como arrastar o corpo pela rua e desferir golpes em regiões como cabeça, seios e genitais.

Pessoas trans em geral precisam e merecem ser protegidas pela sociedade. Dar a elas o direito à auto identificação é lhes garantir o mínimo de segurança que as pessoas binárias já têm desde o seu nascimento.

É importante destacar que a vasta jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores já destacou que o direito à felicidade e a dignidade humana devem ser garantidos para todas as pessoas. O papel do judiciário é exatamente o de acompanhar as mudanças e evoluções da sociedade, garantindo a toda a sociedade os direitos descritos pela nossa Constituição Federal.

A decisão da Ministra Daniela Teixeira reforça a necessidade do reconhecimento de que outras cirurgias que atualmente são consideradas pelos planos de saúde "menos importantes", como a de glotoplastia, são imprescindíveis para a conclusão do processo de transição e feminilização das mulheres transexuais.


1. Benevides, Bruna G. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024 / Bruna G. Benevides. ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) - Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2025. 144 f. ISBN: 978-65-986036-1-8. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2025/01/dossie-antra-2025.pdf Acesso em: 10/10/2025.

Cíntia Cecilio

Cíntia Cecilio

Assessora de Ministra do STJ. Advogada licenciada. Pós graduada em Direito e Processo do Trabalho, Direito Homoafetivo e Gênero - LGBTI+ e Direito das Famílias. Especialista e Palestrante em Diversidade e população LGBTI+.

Thayná Yared

Thayná Yared

Assessora no STJ, pesquisadora do Núcleo de Estudos afro-brasileiros da Universidade Federal do ABC, doutoranda e mestre do programa de pós-graduação na linha de pesquisa de ciências humanas e sociais da Universidade Federal do ABC, pós-graduada em Direito fundamentais pela Universidade de Coimbra.

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira

Defensor Público do Estado do Paraná. Ex-Assessor de Ministra Superior do Tribunal de Justiça. Ex-Defensor Público do Estado do Maranhão. Mestrando pela Universidade de Buenos Aires. Pós-graduado pela FESMPDFT e Unitar (ONU). Organizador da obra Faixa Verde no Júri.

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