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Reforma tributária e Direito Penal: Incertezas sobre tipicidade e competência jurisdicional pós-reforma

Modernização dos impostos traz dúvidas no Direito Penal sobre tipicidade e competência, exigindo ajustes legais para evitar insegurança jurídica.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Atualizado em 16 de outubro de 2025 11:11

A reforma tributária, consubstanciada na EC 132/23, promulgada em dezembro de 2023, insere-se num contexto de modernização do sistema fiscal do país, com o objetivo de simplificação, racionalização e aumento da eficiência arrecadatória. Em janeiro de 2025, foi aprovada a primeira legislação para regulamentá-la, a LC 214/25, que, em tese, materializa os objetivos centrais de simplificar e unificar o Sistema Tributário Nacional, com a instituição de novos impostos de competência compartilhada e a criação de um órgão responsável pela administração, arrecadação, compensação e distribuição do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços entre Estados, Distrito Federal e municípios.

Embora não tenham ocorrido modificações literais na legislação penal, notadamente na lei 8.137/1990, esse processo de reforma tributária possui implicações diretas no âmbito do direito penal, sobretudo no que se refere aos Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica. A intersecção entre direito penal tributário e reforma fiscal exige atenção, uma vez que alterações no sistema de tributos podem impactar a própria tipificação do crime, a fiscalização, a persecução penal e, consequentemente, a atuação do Ministério Público.

Atualmente, a lei 8.137/1990 regula e define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, com destaque para condutas como: omitir ou prestar informações falsas ao Fisco, suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social, fraudar a fiscalização tributária, e falsificar ou alterar Nota Fiscal, dentre outras. Para que haja a constituição do crime, é necessária a existência de um lançamento definitivo do crédito tributário, condição de procedibilidade para a ação penal, conforme pacificado pela súmula vinculante 24 do STF.

Todavia, destacam-se críticas ao modelo vigente, entre as quais: (i) a utilização do direito penal como forma de coação para o pagamento do tributo - e não apenas de proteção de bens jurídicos essenciais; (ii) a dificuldade de delimitar a responsabilidade e autoria delitiva em grandes operações tributárias; e (iii) a insegurança jurídica decorrente da complexidade normativa, que afeta a previsibilidade da conduta criminosa.

Assim, o direito penal tributário hoje funciona como parte de uma engrenagem que combina fiscalização tributária, sanção administrativa e intervenção penal quando a infração adquire gravidade suficiente.

Nesse cenário, com as modificações realizadas pela reforma tributária nos deparamos com algumas lacunas e discussões jurídicas de imediato. Vejamos.

1. Legalidade estrita - Art. 5, XXXIX, da CF/88

A norma constitucional prevê o princípio da legalidade estrita, exigindo lei anterior que defina cada tipo penal. Com a substituição dos tributos, que funcionam como elementares do tipo, pela LC 214/25, é possível que surjam discussões sobre a atipicidade da conduta por ausência de previsão legal específica. Na hipótese de se entender pela ausência de correspondência entre a conduta e o novo ordenamento jurídico, poder-se-ia cogitar a ocorrência de abolitio criminis, com a consequente extinção da punibilidade, conforme previsão do art. 107, inc. III, do CP. Nesse sentido, a jurisprudência terá papel crucial na fixação e pacificação de entendimento sobre a matéria.

Entretanto, não obstante a necessidade de reformulação da legislação penal para que esteja em consonância com o novo sistema tributário, a lei 8.137/1990, ao mencionar que "constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório", deixa claro que se trata de uma norma penal em branco, ou seja, que carece de complementação por outra norma para ser integralmente aplicada - neste caso, aquela que especifica o tributo e o órgão competente para sua apuração.

Diante disso, considerando que a lei 8.137/1990 jamais teve a pretensão de elencar, de maneira taxativa ou exemplificativa, tributos em espécie, entendemos pouco provável a extinção da punibilidade por abolitio criminis, devendo prevalecer o princípio da continuidade normativo-típica.

2. Fixação de competência e jurisdição penal tributária

Outro ponto que merece atenção reside na fixação de competência no momento da fiscalização e instauração de procedimentos criminais decorrentes de obrigações tributárias. Isso se deve ao fato de que, ao reorganizar competências tributárias (por exemplo, entre União, Estados e municípios), haverá uma redistribuição das responsabilidades de fiscalização e investigação entre as esferas federativas. Não está claro, até o momento, de quem será a competência para a apuração de ilícitos penais relacionados aos impostos de competência compartilhada (o IBS, em especial).

Em que pese a unificação ter como objetivo tornar o sistema tributário mais célere e eficiente, na esfera penal, a falta de clareza sobre como os procedimentos e as fiscalizações serão realizadas, além de gerar insegurança jurídica, pode dificultar não só a apuração dos delitos e o combate à criminalidade organizada, como também o próprio exercício do contraditório e da ampla defesa, garantidos constitucionalmente.

Conclusão

É louvável o esforço do legislador em promover a modernização e simplificação das leis fiscais no Brasil. Contudo, as profundas alterações no sistema tributário geram impactos diretos e significativos no âmbito do Direito Penal Tributário. A intersecção entre o novo arranjo de tributos e a lei 8.137/1990 levanta questões cruciais, como a possível discussão sobre a tipicidade da conduta, em face da legalidade estrita, e a complexa definição da competência e jurisdição penal, especialmente diante da criação do IBS e da nova administração compartilhada de impostos. Urge, portanto, a necessidade de harmonização da legislação penal à nova realidade fiscal, de modo que, sem as devidas adaptações e clareza nos procedimentos de fiscalização e persecução, os objetivos de celeridade e eficiência da reforma podem ser comprometidos no campo penal, gerando insegurança jurídica e potencialmente dificultando o combate aos crimes contra a ordem tributária e o exercício das garantias constitucionais de defesa.

Lavínia Costa dos Santos

Lavínia Costa dos Santos

Advogada Criminalista e Pós Graduada em Direito e Processo Penal pela PUC SP.

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