MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Entre acesso e abuso: Os desafios da gratuidade judicial no Brasil

Entre acesso e abuso: Os desafios da gratuidade judicial no Brasil

STJ reforça que renda não pode barrar gratuidade judicial, protegendo vulneráveis, mas alerta para riscos de litigância excessiva e sobrecarga do Judiciário.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Atualizado em 16 de outubro de 2025 11:22

O STJ, ao julgar recentemente o Tema 1.178, reafirmou a centralidade do princípio constitucional do acesso à justiça ao decidir que critérios objetivos, como renda ou patrimônio, não podem servir como fundamento exclusivo para negar a gratuidade judiciária. A decisão preserva a lógica de que a declaração de hipossuficiência goza de presunção relativa de veracidade, de modo que apenas indícios consistentes podem justificar a exigência de comprovação adicional. O entendimento, à primeira vista, reforça a proteção ao mais vulnerável e impede que fórmulas rígidas criem barreiras artificiais a quem depende da Justiça.

Mas há um outro lado desse debate que não pode ser negligenciado. A leitura econômica da litigância revela que, se mal aplicada, a gratuidade irrestrita pode ter um efeito colateral perverso: o de incentivar a judicialização excessiva, contribuindo para o já conhecido cenário de sobrecarga do Judiciário. Ao blindar pedidos de justiça gratuita de um filtro minimamente objetivo, corre-se o risco de transformar um mecanismo de inclusão em um vetor de ineficiência. O acesso universalizado, quando não calibrado, gera uma corrida aos tribunais que não distingue o necessitado do oportunista, fragilizando a própria função do Poder Judiciário como espaço de solução qualificada de conflitos.

Dados recentes do Relatório Justiça em Números do CNJ oferecem contexto empírico para esse temor: estima-se que 34% dos processos arquivados definitivamente na Justiça Estadual tramitem com pedido de gratuidade judicial1. Esse percentual - que, segundo o próprio relatório, pode ser ainda maior por causas de sub-registro ou por tribunais que não registram adequadamente o movimento de decisão pela gratuidade - revela que não se trata de casos isolados nem marginais2. O dado sugere que a gratuidade se tornou uma parcela significativa do volume processual, e isto intensifica o risco de congestionamento, atraso ou recurso desproporcional de estrutura para demandas que poderiam eventualmente contar com algum critério de moderação.

O desafio, portanto, está em encontrar o equilíbrio. A decisão do STJ corretamente afasta fórmulas matemáticas que, sozinhas, não captam a complexidade da realidade econômica do cidadão. No entanto, também não se pode ignorar que o sistema de justiça opera com recursos finitos e que a litigância em massa, estimulada pela ausência de custos, contribui para o congestionamento das pautas e para a demora na entrega das decisões. Uma aplicação acrítica da gratuidade, ainda que em nome de uma nobre garantia constitucional, pode redundar no paradoxo de dificultar o acesso à justiça justamente por comprometer sua efetividade.

Em última instância, o que está em jogo é a necessidade de preservar o direito de acesso sem convertê-lo em uma carta em branco. O olhar econômico demonstra que a eficiência e a justiça social não são valores opostos, mas faces complementares de um mesmo objetivo: assegurar que a porta do Judiciário esteja aberta a quem dela precisa, sem que se torne um corredor congestionado que atrapalha a todos. O STJ deu um passo importante ao reafirmar o princípio da individualização, mas caberá aos magistrados, na prática, a difícil tarefa de aplicar esse entendimento sem perder de vista que a justiça gratuita é um instrumento de inclusão, não de banalização do processo.

_______

1 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pesq-gratuidade-insper.pdf?utm_source=chatgpt.com

2 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pesq-gratuidade-insper.pdf?utm_source=chatgpt.com

Guilherme da Costa Ferreira Pignaneli

Guilherme da Costa Ferreira Pignaneli

Sócio no escritório Ernesto Borges Advogados, atua na área de Legal Operation. Autor do livro "Análise Econômica da Litigância". Graduado pela PUC-PR Especialização LLM em Direito Empresarial FGV/RIO; Mestre em Direito Econômico e Socioambiental PUC/PR.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca