A inconstitucionalidade das escolas cívico-militares
O texto visa refletir sobre os riscos pedagógicos e sociais da implantação das escolas cívico-militares no Brasil, com ênfase na sua inconstitucionalidade.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:52
Introdução
A educação, pedra angular de uma nação civilizada, não pode ser transformada em campo de testes para experimentações ideológicas travestidas de soluções rápidas. Nos últimos anos, a implantação das chamadas escolas cívico-militares tem ocupado o centro dos debates sociais e educacionais. Estados da federação, contrariando os ditames constitucionais, vêm promovendo assembleias escolares para deliberar sobre a adoção deste modelo, o que suscita, antes de tudo, uma grave afronta à CF/88, especialmente ao art. 22, inciso XXIV, que confere competência privativa à União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional.
Não se trata apenas de discutir se militares reformados possuem preparo pedagógico ou se a ordem militar é compatível com os princípios da liberdade de cátedra, mas sim de reconhecer que qualquer intervenção no sistema educacional nacional sem observância da CF é nula de pleno direito. A educação é um direito de todos, um dever do Estado e da família, promovido com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, sua formação cidadã e qualificação para o trabalho - conforme o art. 205 da CF.
Desconsiderar tais fundamentos significa desestruturar os alicerces da escola pública e democrática, abrindo espaço para o retrocesso autoritário, com graves consequências para a liberdade pedagógica e o pluralismo de ideias.
Os pilares do Objetivo 04 da Agenda 2030
O Objetivo 04 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU estabelece como meta assegurar educação inclusiva, equitativa e de qualidade, promovendo oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. É um chamado à construção de sistemas educacionais baseados na equidade, no respeito à diversidade e na valorização dos educadores.
Os pilares deste objetivo incluem:
- Universalização do acesso à educação básica de qualidade;
- Valorização dos professores com formação adequada, salários dignos e condições de trabalho justas;
- Promoção de ambientes escolares seguros, não violentos, inclusivos e eficazes;
- Fortalecimento da cidadania global, do respeito aos direitos humanos e da cultura de paz.
Não há espaço, nesse modelo, para estruturas educacionais militarizadas que suprimam o livre pensar, o debate democrático e o ambiente plural. A presença ostensiva da farda no cotidiano escolar pode gerar intimidação, silenciamento de vozes críticas e exclusão de identidades diversas, enfraquecendo a missão transformadora da educação.
A verdadeira revolução educacional se opera com valorização do magistério, investimento público consistente, formação continuada e respeito à autonomia pedagógica - jamais com soluções autoritárias mascaradas de disciplina.
Análise crítica
A adoção do modelo cívico-militar nas escolas públicas constitui uma afronta à lógica republicana da educação. Trata-se de uma tentativa de militarização do ambiente escolar, mascarada como solução mágica para problemas que decorrem, na verdade, da crônica desvalorização dos profissionais da educação e do subfinanciamento estrutural do setor.
A medida é inconstitucional, por violar a competência da União no trato das diretrizes e bases da educação (art. 22, XXIV, CF), e atenta contra os princípios fundamentais da liberdade de ensinar e aprender (art. 206, II e III, CF). Substituir educadores formados por militares reformados, sem formação pedagógica adequada, é instaurar um modelo de exceção que fere o próprio espírito da Carta Magna.
Além disso, a proposta desvia o foco da verdadeira reforma que o Brasil necessita: valorização real do magistério, com carreira estruturada, piso salarial digno e políticas públicas voltadas à equidade social. A escola pública deve ser espaço de emancipação e não de repressão disfarçada.
Ao invés de exportar lógicas militares para a sala de aula, o Estado brasileiro deveria importar os valores republicanos da CF e investir em políticas educacionais democráticas, alinhadas com as metas internacionais de desenvolvimento humano.
Conclusão
Neste cenário de tensão entre democracia e autoritarismo, a educação deve permanecer como o último bastião da liberdade, da pluralidade e da construção crítica do pensamento. A proposta de escolas cívico-militares, além de inconstitucional, revela-se antipedagógica, reducionista e desprovida de base técnica.
É hora de reafirmar o compromisso com os princípios constitucionais da educação, com os objetivos da Agenda 2030 e com a valorização de quem carrega a tocha do saber: o professor.
A escola precisa de livros, não de fardas. Precisa de diálogo, não de comando. Precisa de liberdade, não de ordem unívoca.
A solução não está em copiar modelos autoritários, mas em construir políticas públicas que resgatem o prestígio da docência, garantam infraestrutura adequada e consolidem um ensino público de qualidade com justiça social.
Que essa lição ecoe como um hino nas salas de aula e nos corações daqueles que ainda acreditam na força transformadora do saber. Que o giz, humilde em sua brancura, continue a traçar caminhos de esperança sobre o quadro negro da desigualdade. Que os mestres, guerreiros da luz, encontrem nas políticas públicas não apenas promessas, mas reconhecimento e dignidade.
O Brasil que sonhamos não nascerá do confronto de ideologias, mas do encontro de consciências. É na serenidade do espírito crítico, na pureza do afeto e na constância do exemplo que se edifica uma Nação justa, lúcida e solidária.
E quando o sol da educação romper o véu da ignorância, dissipando as sombras da intolerância e da omissão, veremos florescer, enfim, a mais bela das revoluções: a revolução do conhecimento, guiada pelo amor e sustentada pela justiça.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.
CUNHA, Luiz Antônio. A escola e a sociedade militarizada. São Paulo: Cortez, 2018.
LIBÂNEO, José Carlos. Democracia e educação: teorias da educação e a questão da democracia na escola pública. São Paulo: Cortez, 2003.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007.


