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Direito de Família: A desconsideração inversa e os alimentos

O presente artigo analisa a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica em ações de alimentos, com fundamento nos arts. 50 do CC e 133 a 137 do CPC.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Atualizado às 13:53

Introdução

A desconsideração da personalidade jurídica é um mecanismo jurídico previsto no art. 50 do CC, que visa impedir o uso abusivo da pessoa jurídica para fins ilícitos. Sua modalidade inversa, a desconsideração inversa, permite atingir o patrimônio da empresa quando esta é utilizada para esconder bens pessoais do sócio, especialmente quando há indícios de confusão patrimonial, fraude ou desvio de finalidade.

No Direito de Família, tal medida mostra-se essencial para assegurar a efetividade da obrigação alimentar, principalmente quando o alimentante tenta frustrar o cumprimento da obrigação legal para com filhos menores, conforme será demonstrado com base no processo judicial analisado.

2. Fundamento legal e aplicação no processo

A autonomia patrimonial da pessoa jurídica, pilar fundamental do Direito Empresarial, visa fomentar a atividade econômica e limitar a responsabilidade dos sócios. Contudo, quando essa autonomia é desviada de sua finalidade social para fins ilícitos ou abusivos, o ordenamento jurídico impõe mecanismos de contenção. A crescente prevalência de casos de abuso da personalidade jurídica no contexto familiar, onde a estrutura empresarial é utilizada para blindar bens e frustrar obrigações pessoais, torna a discussão sobre esses mecanismos ainda mais relevante.

A desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do CC, é tradicionalmente utilizada como instrumento de contenção ao uso abusivo da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Tal dispositivo autoriza o afastamento pontual da separação entre os patrimônios da empresa e de seus sócios ou administradores, sempre que verificada a prática de atos caracterizados por desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Com o advento do CPC/15, os arts. 133 a 137 regulamentaram o procedimento do incidente de desconsideração, conferindo maior segurança jurídica à sua instauração e tramitação.

É importante ressaltar que a desconsideração "direta", que busca atingir o patrimônio pessoal do sócio a partir de dívidas da empresa, mostrou-se insuficiente para coibir as manobras fraudulentas no âmbito familiar. A necessidade de proteger o credor de alimentos, que muitas vezes se via impossibilitado de executar o devedor que ocultava seus bens sob o manto de uma pessoa jurídica, impulsionou o reconhecimento e a aplicação da desconsideração inversa.

No entanto, a doutrina e a jurisprudência evoluíram para reconhecer também a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica inversa, hipótese em que o sócio se utiliza da empresa como instrumento para fraudar obrigações de natureza pessoal, ocultando bens sob o manto da pessoa jurídica. Essa construção encontra respaldo no enunciado 283 da Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que expressamente reconhece:

"É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada 'inversa' para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiro" (BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado 283 da Jornada de Direito Civil).

No contexto da obrigação alimentar, o "desvio de finalidade" se manifesta quando a empresa, em vez de servir ao seu objeto social legítimo, é instrumentalizada pelo sócio para blindar seu patrimônio pessoal, impedindo que este seja alcançado para o pagamento de pensão. Já a "confusão patrimonial" ocorre quando há uma indistinção entre os bens e as despesas da pessoa física do alimentante e da pessoa jurídica, como, por exemplo, o pagamento de contas pessoais com recursos da empresa ou a utilização de bens da empresa para fins particulares do sócio, sem a devida contrapartida ou formalização contábil.

No caso concreto objeto deste estudo, o Ministério Público destacou, com base em documentos e extratos bancários, que o requerido se valia da empresa como fachada patrimonial para evitar a penhora de bens e a majoração de alimentos. As movimentações financeiras evidenciaram pagamentos feitos à empresa com imediata transferência para contas do alimentante, indicando confusão patrimonial entre os entes.

O pedido de desconsideração inversa baseou-se no art. 50 do CC e nos arts. 133 a 137 do CPC, como mecanismo apto a garantir o cumprimento da obrigação alimentar frente a indícios de má-fé processual e ocultação de bens.

A sentença proferida no processo reconheceu:

"Há evidências de grande movimentação/transações bancárias, usufruição de bens móveis de luxo que apontam da utilização do patrimônio da pessoa jurídica pela pessoa física do sócio-administrador" (fls. 290).

E concluiu:

"Assim, impõe-se a procedência do pedido. Ante o exposto e considerando o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE o presente INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, I, do Código de Processo Civil, a fim de que a requerida responda por dívida da pessoa física do alimentante F. R. de M., consoante art. 50 do Código Civil e 133, § 2º, do Código de Processo Civil. Em face do princípio da causalidade e por força da sucumbência, deverá a requerida arcar com o pagamento das custas e despesas processuais do presente incidente, assim como com os honorários do Advogado da parte autora, os quais arbitro em R$ 1.000,00 (hum mil reais), com atualização monetária a partir da publicação, no Diário da Justiça Eletrônico, da presente."

A análise da sentença demonstra que o julgador interpretou as "grandes movimentações/transações bancárias" e a "usufruição de bens móveis de luxo" como fortes indícios de que a pessoa jurídica estava sendo utilizada para fins pessoais do sócio-administrador, caracterizando a confusão patrimonial e o desvio de finalidade. Essa interpretação é crucial, pois reconhece que a prova direta da fraude é muitas vezes inviável, bastando um conjunto probatório indiciário robusto para justificar a medida.

Portanto, o caso em questão representa aplicação legítima e necessária da desconsideração inversa como meio de viabilizar a execução dos alimentos devidos a menores absolutamente incapazes, assegurando não apenas o cumprimento da obrigação, mas também a dignidade da criança e do adolescente como sujeitos de direitos fundamentais.

3. Jurisprudência aplicada, doutrina relevante e fundamentação científica

A consolidação jurisprudencial em torno da desconsideração da personalidade jurídica inversa demonstra a sensível evolução dos Tribunais na interpretação do princípio da autonomia patrimonial, especialmente em demandas de natureza alimentar. A jurisprudência tem se mostrado atenta às tentativas de ocultação patrimonial praticadas por alimentantes inadimplentes, reconhecendo a excepcionalidade do instituto como meio de assegurar a efetividade da tutela jurisdicional e a proteção do interesse superior do menor.

No processo objeto deste estudo (0015201-13.2024.8.26.0577), a fundamentação judicial amparou-se em diversos precedentes do TJ/SP e do STJ, nos quais se reconhece a possibilidade de aplicação da desconsideração inversa diante de indícios de confusão patrimonial e desvio de finalidade, ainda que ausente prova cabal, bastando para tanto o conjunto indiciário robusto.

A evolução jurisprudencial, especialmente no STJ, tem sido fundamental para a consolidação da desconsideração inversa. Inicialmente, havia uma maior exigência de prova cabal da fraude. Contudo, a dificuldade inerente em comprovar atos de ocultação patrimonial levou os tribunais a flexibilizarem o standard de prova, aceitando um conjunto indiciário robusto como suficiente. Essa mudança reflete a compreensão de que exigir prova direta e inequívoca de fraude seria, em muitos casos, inviabilizar a aplicação do instituto e, consequentemente, a proteção do credor.

Destacam-se, neste sentido, os seguintes julgados mencionados nos autos:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de alimentos. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Cabimento. Indícios de ocultação patrimonial. Decisão mantida. Recurso não provido." (TJSP; Agravo de Instrumento 2016637-96.2021.8.26.0000; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 2ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 23/03/2021; Data de Registro: 23/03/2021)" [Nossos grifos]

"RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE ALIMENTOS. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. ABUSO DE DIREITO CARACTERIZADO. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. 1. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. 2. É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva. 3. Recurso especial não provido." (REsp 1236916/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/10/2013, DJe 27/03/2014)" [Nossos grifos]

No âmbito do TJ/SP, a aplicação do instituto em casos similares é igualmente reconhecida:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de execução de alimentos. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Decisão que indeferiu o pedido. Reforma. Indícios de ocultação patrimonial. Necessidade de instauração do incidente. Recurso provido."(TJSP; Agravo de Instrumento 2105434-26.2021.8.26.0000; Relator (a): Marcia Dalla Déa Barone; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 2ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 17/06/2021; Data de Registro: 17/06/2021) [Nossos grifos]

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de alimentos. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Indeferimento. Inconformismo. Acolhimento. Presença de indícios de ocultação patrimonial. Necessidade de instauração do incidente para apuração. Decisão reformada. Recurso provido." [Nossos grifos]

(TJSP; Agravo de Instrumento 2056466-46.2021.8.26.0000; Relator (a): José Aparício Coelho Prado Neto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 3ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 13/04/2021; Data de Registro: 13/04/2021)

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de execução de alimentos. Decisão que deferiu o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Cabimento. Indícios de ocultação patrimonial. Decisão mantida. Recurso não provido." (TJSP; Agravo de Instrumento 2133872-96.2020.8.26.0000; Relator (a): José Aparício Coelho Prado Neto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 3ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 15/09/2020; Data de Registro: 15/09/2020)" [Nossos grifos]

A análise minuciosa dos extratos financeiros revela indícios contundentes de fraude e ocultação patrimonial, com movimentações significativas entre as contas pessoais do genitor e da empresa do mesmo, da qual é sócio administrador. Esta conduta não apenas configura má-fé processual, mas também atenta diretamente contra os direitos fundamentais dos menores envolvidos. Como bem pontua Maria Berenice Dias:

"A ocultação de bens em processos de alimentos não apenas configura má-fé, mas também atenta contra o princípio do melhor interesse da criança, que deve ser o norte de todas as decisões judiciais que envolvem menores." [Nossos grifos]

Diante deste cenário, a desconsideração da personalidade jurídica inversa se apresenta como medida não apenas cabível, mas imperativa para garantir a efetividade da prestação jurisdicional e a proteção dos direitos dos alimentandos. 

O STJ tem reiteradamente decidido que práticas fraudulentas para reduzir a obrigação alimentar são inaceitáveis. No REsp 1.201.993/PR, o tribunal enfatizou que "a ocultação de patrimônio, com o intuito de prejudicar a fixação de alimentos, constitui ato atentatório à dignidade da justiça e ao princípio da boa-fé objetiva". Esta decisão reflete a postura do STJ em proteger os interesses dos menores e assegurar que os alimentos sejam fixados de maneira justa e equitativa.

A doutrina especializada também reconhece a importância e a necessidade da aplicação deste instituto em casos de obrigação alimentar. Nesse sentido, Rolf Madaleno ensina:

"A desconsideração inversa da personalidade jurídica é um importante mecanismo para coibir fraudes em ações de alimentos, garantindo a efetividade da prestação jurisdicional e a proteção dos direitos dos alimentandos." [Nossos grifos]

Flávio Tartuce, por sua vez, destaca:

"Em casos de obrigação alimentar, a desconsideração inversa da personalidade jurídica se mostra como um instrumento essencial para garantir o cumprimento da obrigação, evitando que o devedor se valha da pessoa jurídica para ocultar seu patrimônio." [Nossos grifos]

Ainda, de uma importância ressaltar que o presente caso atende e, ainda, mostra de forma explícita o abuso de direito do executado, através do desvio de finalidade e confusão patrimonial nos termos em que preceitua a lei 13.874/19.

A lei 13.874/19 (lei da liberdade econômica), ao alterar o art. 50 do CC, buscou reforçar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Contudo, é crucial entender que essa proteção não é absoluta. A própria redação do art. 50, mesmo após as alterações, mantém a possibilidade de desconsideração quando há "desvio de finalidade" ou "confusão patrimonial". Assim, a lei não impede a aplicação da desconsideração inversa em casos de abuso, como o presente, mas sim busca coibir sua aplicação indiscriminada. A utilização da pessoa jurídica para ocultar patrimônio e frustrar obrigações alimentares é, inequivocamente, um desvio de finalidade e uma forma de abuso de direito, que não encontra guarida na proteção à liberdade econômica.

É importante ressaltar que a aplicação deste instituto não viola o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Trata-se, na verdade, de uma medida excepcional que visa coibir o abuso deste princípio. O STF já se manifestou nesse sentido:

"A desconsideração da personalidade jurídica é instituto compatível com a Constituição Federal, que não consagra direito absoluto de proteção à personalidade jurídica." (ARE 1121856 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/12/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-032 DIVULG 15-02-2019 PUBLIC 18-02-2019)" [Nossos grifos]

Diante dos indícios de confusão patrimonial e abuso da personalidade jurídica por parte do genitor, é imperativo a desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa a ele vinculada. Esta medida é prevista no art. 50 do CC e visa coibir fraudes patrimoniais que possam lesar os direitos dos credores, neste caso, os menores.

A desconsideração da personalidade jurídica inversa é uma medida excepcional que visa coibir o uso abusivo da pessoa jurídica para ocultar bens pessoais e fraudar credores, incluindo os interesses de menores em situações de fixação e revisão de alimentos. Essa medida encontra amparo tanto na doutrina quanto na jurisprudência nacional.

A doutrina de Fábio Ulhoa Coelho destaca que "a desconsideração inversa ocorre quando a pessoa física utiliza-se da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens, frustrando a execução de obrigações pessoais".(nossos grifos).

Esse entendimento é crucial no presente caso, onde há indícios claros de que a parte contrária possa estar utilizando a estrutura empresarial para esconder patrimônio e, assim, lesar os direitos dos menores.

Ainda, importante ressaltar que, em decisões recentes, o STJ tem reiteradamente reconhecido a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica inversa em situações onde há indícios de fraude e desvio de finalidade. No julgamento do REsp 948.117/SP, o STJ afirmou que "a desconsideração inversa da personalidade jurídica é aplicável quando a pessoa jurídica é utilizada como instrumento para ocultação de bens e direitos, em prejuízo de credores ou de terceiros".

No presente caso, os extratos bancários e demais documentos apresentados evidenciam uma possível ocultação de patrimônio pelo genitor dos menores, utilizando-se da empresa para encobrir bens que deveriam ser considerados na fixação e revisão de alimentos. A desconsideração inversa é, portanto, uma medida necessária para garantir a efetividade da justiça e a proteção dos direitos dos menores, assegurando que o patrimônio real do Sr. Fabiano seja considerado no cálculo dos alimentos.

Diante desses fundamentos, é imperativo que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica inversa seja instaurado em situações como no caso estudado, permitindo a investigação e consideração dos bens ocultados pela pessoa jurídica do genitor, em conformidade com os princípios da transparência e da boa-fé objetiva.

Resta claro na emérita jurisprudência e doutrina como crucial para garantir que os direitos dos menores não sejam prejudicados por artifícios legais destinados a ocultar bens.

O caso em análise, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica se justifica não apenas pelos indícios de confusão patrimonial, mas também pela natureza da obrigação em questão. Os alimentos possuem caráter de direito fundamental, diretamente ligados à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial. Nesse contexto, o princípio do melhor interesse da criança, consagrado no art. 227 da CF/88, deve nortear a decisão judicial.

A partir da reflexão acima, não se pode deixar de considerar que a prestação alimentícia deve ser vista como um instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana, uma vez que o dever ou a obrigação alimentar é materialização do direito à vida digna pregado no inciso III, do art. I da CF/88.

Ademais, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica no presente caso está em plena consonância com o princípio da efetividade da tutela jurisdicional, previsto no art. 4º do CPC. Este princípio impõe ao julgador o dever de adotar as medidas necessárias para garantir o resultado prático equivalente ao adimplemento da obrigação.

Por fim, é crucial destacar que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica inversa não implica em violação ao devido processo legal ou ao contraditório. O procedimento previsto nos arts. 133 a 137 do CPC assegura à pessoa jurídica o direito de se manifestar e produzir provas antes da decisão judicial, garantindo assim o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa.

Diante dos indícios de confusão patrimonial e abuso da personalidade jurídica por parte do genitor, foi imperativo requerer a abertura de incidente de desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa a ele vinculada, como sua total procedência.

A dignidade da pessoa humana e o interesse do menor como fundamentos da medida

A dignidade da pessoa humana representa o alicerce axiológico de todo o ordenamento jurídico brasileiro, constituindo um princípio fundamental e cláusula pétrea consagrada no art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Quando se trata da prestação de alimentos a crianças e adolescentes, essa dignidade ganha contornos ainda mais relevantes, pois assume o papel de garantir o mínimo existencial necessário à vida, à saúde e ao pleno desenvolvimento do indivíduo em formação.

Nesse contexto, a jurisprudência e a doutrina convergem no entendimento de que o princípio do melhor interesse da criança (art. 227 da CF/88) deve orientar todas as decisões judiciais que envolvam menores. Esse princípio possui eficácia imediata, vinculando não apenas o Poder Judiciário, mas todos os atores processuais e operadores do Direito.

A jurisprudência é firme nesse sentido, como restou assentado na sentença analisada.

Dessa forma, o reconhecimento judicial da confusão patrimonial entre o alimentante e sua empresa, aliado à tentativa de fraudar a obrigação alimentar por meio da ocultação de ativos, exige do Poder Judiciário uma resposta que vá além da formalidade procedimental. Trata-se de assegurar a dignidade da criança, cuja sobrevivência e desenvolvimento não podem ser colocados em risco por práticas ardilosas de adultos que detêm poder econômico.

Conforme já salientado pelo STJ, práticas que visam reduzir artificialmente o patrimônio disponível para fins de cálculo ou cumprimento de alimentos são inadmissíveis, por atentarem contra os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

A efetivação da prestação alimentar, nesse contexto, transcende a esfera patrimonial: trata-se da garantia de um direito fundamental que, se não observado, compromete a própria razão de ser do Estado de Direito, que é a promoção da justiça e a concretização dos direitos humanos básicos.

Portanto, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica no caso em tela está não apenas em consonância com os princípios constitucionais, como é imposta por eles. Ignorar o desvio de finalidade e a confusão patrimonial - ainda que sob a aparente regularidade contábil - seria consagrar a injustiça e negar o acesso à proteção alimentar a quem mais necessita: o menor.

Considerações finais e conclusão

A presente análise, construída exclusivamente a partir do conteúdo doutrinário e jurisprudencial constante nos autos do processo 0015201-13.2024.8.26.0577, demonstrou que a desconsideração da personalidade jurídica em sua forma inversa constitui instrumento legítimo, necessário e constitucionalmente amparado para a proteção dos direitos alimentares de crianças e adolescentes.

A utilização da pessoa jurídica como mecanismo para frustrar obrigações alimentares evidencia desvio de finalidade e confusão patrimonial, ensejando a aplicação do art. 50 do CC em conjunto com os arts. 133 a 137 do CPC. No caso concreto, a existência de movimentações bancárias suspeitas, ausência de coerência entre os rendimentos declarados e o padrão de vida do alimentante, bem como a transferência direta de recursos da empresa para suas contas pessoais, serviram como base para o reconhecimento judicial da fraude e do abuso de direito.

A decisão proferida pelo juízo da 3ª vara de família e sucessões da Comarca de São José dos Campos/SP ilustra, com precisão, o correto uso da desconsideração inversa como resposta jurisdicional proporcional e eficaz, observando todas as garantias do contraditório e do devido processo legal, sem abrir mão da efetividade da tutela judicial.

Conforme destacado pela doutrina especializada - notadamente Maria Berenice Dias, Rolf Madaleno, Flávio Tartuce e Fábio Ulhoa Coelho -, o instituto da desconsideração inversa deve ser compreendido como mecanismo de justiça substancial, voltado à proteção da dignidade humana e à concretização dos direitos fundamentais.

No plano constitucional, a medida se justifica pela conjugação dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), do melhor interesse da criança e do adolescente (art. 227, CF/88) e da efetividade da jurisdição (art. 5º, XXXV e art. 4º do CPC/15), sendo inconcebível que a estrutura empresarial seja mantida como escudo protetivo para inadimplentes alimentares. Conclui-se, portanto, que a desconsideração da personalidade jurídica inversa, quando devidamente comprovada e utilizada como ferramenta de correção de abusos, representa não uma violação da autonomia patrimonial, mas sim uma afirmação da justiça material e da responsabilidade civil do devedor de alimentos. Em causas que envolvam menores, sua aplicação deve ser orientada por critérios de razoabilidade, proporcionalidade e proteção integral, permitindo que a ordem jurídica se cumpra em sua plenitude.

Para o futuro, a aplicação da desconsideração inversa no Direito de Família aponta para a necessidade de uma vigilância judicial contínua sobre as novas formas de ocultação patrimonial, muitas vezes facilitadas pela complexidade das estruturas empresariais e financeiras. O caráter não apenas repressivo, mas também preventivo deste instituto, é fundamental: ao coibir o abuso e a fraude, o Judiciário envia uma mensagem clara, desestimulando futuras tentativas de desvirtuar a autonomia da pessoa jurídica em detrimento de obrigações essenciais como a alimentar.

Joao Victor Lima Souza

Joao Victor Lima Souza

Advogado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) - Nº 00024653

César Henrique Policastro Chassereaux

César Henrique Policastro Chassereaux

Advogado e sócio da Ferreira Chassereaux Advogados. Diretor Jurídico da APAE Santo André (2025/2026). Conselheiro Jurídico do Rotary Santo André - Distrito 4420 (2024/2025). CEO do Grupo Chassereaux.

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