A aplicação da cláusula de limitação de responsabilidade
Em contratos paritários, é possível restringir efeitos indenizatórios, respeitando limites legais e boa-fé.
segunda-feira, 27 de outubro de 2025
Atualizado em 24 de outubro de 2025 13:52
1. Introdução
A evolução do direito contratual brasileiro tem refletido uma crescente tensão entre a valorização da autonomia privada e a necessidade de observância de princípios de ordem pública, como a boa-fé e a função social do contrato. No cerne dessa dualidade está a cláusula de limitação de responsabilidade, instrumento jurídico que busca mitigar os efeitos patrimoniais decorrentes de eventuais inadimplementos contratuais, sem comprometer a essência obrigacional do pacto.
O presente estudo tem por escopo analisar a validade e os limites da cláusula de limitação de responsabilidade à luz do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir da promulgação da lei 13.874/19 - a chamada lei da liberdade econômica - e das disposições dos arts. 421-A e 421 do CC. Em especial, examina-se a possibilidade de estipulação contratual em contratos paritários, em contratos de adesão e nas relações de consumo, sempre considerando os critérios de legalidade, boa-fé objetiva, equilíbrio contratual e vedação ao abuso de direito.
A denominada Cláusula de Limitação de Responsabilidade, também conhecida como Cláusula de Exclusão ou Exoneração de Responsabilidade ou Cláusula de Limitação de Indenizar, embora nomenclaturas diversas, tratam do mesmo objeto: condição contratual que possibilite a limitação das causas indenizáveis ou a extensão da indenização, de uma ou outra parte. Nesse sentido, por didática, adotar-se-á nesse artigo 'Cláusula de Limitação de Responsabilidade' para referir-se a essa condição, sem aprofundar-se na discussão doutrinária sobre o termo mais apropriado tecnicamente.
Busca-se, assim, avaliar até que ponto a autonomia da vontade pode operar como legitimadora da limitação da responsabilidade civil, sem que se configure violação a direitos indisponíveis, princípios constitucionais ou normas de ordem pública.
2. Da responsabilidade contratual
1.1 Da autonomia da vontade das partes e da obrigatoriedade
Para expressar uma vontade juridicamente relevante, as partes utilizam um instrumento para regular direitos e obrigações de determinado negócio jurídico, o que pode ser denominado por Contrato.
Essa definição encontra respaldo na doutrina clássica do direito civil, como em Caio Mario da Silva Pereira1, para o qual o "contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos", ou "o acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos".
Do mesmo modo, Pablo Stolze Gagliano2 define o contrato como:
"um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades."
Também o ilustre jurista Orlando Gomes3:
"O contrato é uma espécie de negócio jurídico que depende, para a sua formação, da participação de pelo menos duas partes. É, portanto, negócio jurídico bilateral ou plurilateral. Com efeito, distinguem-se, na teoria dos negócios jurídicos, os unilaterais, que se aperfeiçoam pela manifestação de vontade de apenas uma das partes, e os bilaterais, que resultam de uma composição de interesses. Os últimos, ou seja, os negócios bilaterais, que decorrem de mútuo consenso, constituem os contratos. Contrato é, portanto, como dito, uma espécie do gênero negócio jurídico."
Pelo princípio da autonomia da vontade, Flávio Augusto Monteiro de Barros afirma que, "as partes são livres pra estipular as cláusulas contratuais e o tipo de contrato."4
A partir disso, é muito difundido o jargão: o contrato faz lei entre as partes, o qual é proveniente do princípio clássico do direito, o pacta sunt servanda, ou seja, 'pactos devem ser cumpridos' do que decorre o princípio da obrigatoriedade que, por sua vez, está intimamente atrelado ao princípio da autonomia da vontade das partes.
Se o Contrato é a expressão da vontade das partes, nada mais natural que as partes estejam a ela vinculadas. Segundo Arnaldo Rizzardo5, o princípio da obrigatoriedade estabelece que "é irredutível o acordo de vontades, portanto, os contratos devem ser cumpridos pela mesma razão que a lei deve ser obedecida."
Dessa forma, como condição imprescindível de manter a segurança jurídica, tem-se que as partes são livres para definir entre si, direitos e obrigações para regular suas relações, mas, a elas estarão plenamente vinculadas.
Esses conceitos são incorporados em nosso ordenamento jurídico, primeiramente, na própria Constituição da República, ainda em seu preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
E já em seu art. 1º, IV, a livre iniciativa é estabelecida como fundamento.
Já na esfera infraconstitucional, o CC Brasileiro adota como regra a liberdade de contratar, limitando-a à função social do contrato, em seu art. 421:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
Embora muitas vezes tratado como conceito abstrato e com grande subjetividade, para a finalidade que se pretende neste artigo, será adotado o entendimento de que a função social do contrato do art. 421 do CC é aplicada de modo residual, ou seja:
"É instituto jurídico destinado à realização de justiça ao caso concreto. Trata-se de uma limitação à liberdade de contratar, para que, em sentido amplo, os institutos jurídicos produzam seus efeitos regulares, em sentido estrito impõe deveres à liberdade de contratar, quando o seu exercício provocar externalidades à sociedade."6
Ademais, o art. 422 do CC ainda determina outros dois balizadores principiológicos da contratação: a probidade e a boa-fé:
"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."
É notório que a interpretação constitucional do CC de 1916 e a promulgação do CC de 2002 com um viés fortemente social, contribuíram para uma maior aplicação aos princípios da função social do contrato, probidade e boa-fé, em detrimento da autonomia da vontade das partes e da obrigatoriedade contratual, o que foi objeto de discussões, debates e decisões judiciais nem sempre coesas.
Diante da evidente margem de discricionariedade desses princípios, adveio a lei 13.874/19, conhecida como lei da liberdade econômica, a qual resgata as premissas relativas aos princípios da obrigatoriedade e da autonomia de vontade, mormente nas relações empresariais, das quais se destaca o inciso VIII do art. 3º, que estipula que as regras de direito empresarial serão aplicadas de forma subsidiária ao quanto pactuado entre as partes, resguardadas as previsões de ordem pública:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
[...]
VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;
Seguindo o mesmo direcionamento, a lei incluiu no CC o art. 421-A, restringindo as hipóteses de revisão contratual; permitindo às partes estabelecer até mesmo as regras de interpretação a que se sujeita a avença entabulada e, ainda, chancelando que a distribuição de riscos definida pelas partes deve ser respeitada, nos seguintes termos:
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Disso fica claro o intento do legislador em fomentar a autonomia das partes em prol do desenvolvimento de um ambiente de negócios, ao passo que obriga o cumprimento das condições assumidas, deixando como evento excepcional a revisão.
Para Carolina Raboni Ferreira7, em contratos entabulados por pares, a autonomia da vontade deve ser prestigiada como elemento essencial:
"De fato, as relações paritárias ainda existem e ostentam importância singular na prática econômica. E, tal como as relações em que presente o elemento vulnerabilidade, as relações paritárias merecem regime especial de disciplina. Ora, se os sujeitos em igualdade de condições de negociação têm interesses particulares e visam compor tais interesses, privativamente, por meio de um contrato; se têm a intenção ética de formar vínculo conforme o direito; negar-lhes espaço de negociação livre é promover o dirigismo contratual exacerbado, cuja consequência será a de lhes podar a iniciativa privada, desestimulando o desenvolvimento econômico."
Contudo, apesar dessa liberalidade que as partes têm para contratar, ela não é absoluta e possui limitações que devem ser respeitadas.
Primordialmente, os requisitos de validade do negócio jurídico, gênero do qual o contrato é espécie, elencados no art. 104 do CC8 devem ser respeitados como norma de ordem pública, quais sejam, (I) agente capaz; (II) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (III) forma prescrita ou não defesa em lei.
Ademais disso, o direito de contratar oriundo dos princípios não é absoluto, nesse sentido, ensina Flávio Tartuce9: "Certo é, portanto, que o princípio da força obrigatória não tem mais encontrado a predominância e a prevalência que exercia no passado. O princípio em questão está, portanto, mitigado ou relativizado."
Ainda nessa linha, a autonomia da vontade das partes, segundo o mesmo autor, "há muito tempo os sujeitos do direito vêm encontrando limitações ao seu modo de viver, inclusive para as disposições contratuais, eis que o velho modelo individualista de contrato encontra-se superado"10.
No que tange ao objeto de análise deste artigo, a situação não é diferente. A responsabilidade civil é condição que está dentro das possibilidades de autonomia de vontade das partes, portanto, podendo ser regulada de acordo com os ajustes negociados, contudo, encontrando delimitações que serão tratadas a seguir.
1.2 Da responsabilidade
A responsabilidade trata do resultado da violação de uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), desembocando na necessidade de reparação pelos danos causados pelo infrator.
O CC brasileiro estabelece de forma clara e sistemática a obrigação de indenizar em casos de inadimplemento contratual ou de prática de ato ilícito. Os arts. 389, 402, 403 e 40411 tratam especificamente da responsabilidade civil contratual, delimitando que o inadimplemento gera o dever de indenizar a outra parte pelos prejuízos sofridos. Já o art. 92712, combinado com os arts. 186 e 187, fundamenta a responsabilidade extracontratual, impondo o dever de indenizar aquele que causar dano a outrem.
Assim, consolida-se no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da reparação integral do dano, seja no âmbito contratual ou extracontratual, restitutio in integrum, em decorrência da responsabilidade civil das partes, ou seja, o causador de um dano a outrem deve ressarcir integralmente a vítima, colocando-a, na medida do possível, na mesma situação em que estava antes da ocorrência do evento danoso.
Este princípio busca reequilibrar a situação da vítima, abrangendo tanto os prejuízos materiais: diretos (danos emergentes), indiretos (lucros cessantes), quanto pessoais, morais e outras consequências do dano.
Assim, falar em responsabilidade civil contratual, que é a que importa no presente estudo, nada mais é do que tratar da reparação dos danos causados pelo descumprimento do quanto pactuado. Note-se que, na concepção legal de perdas e danos, independentemente do fundamento da responsabilidade civil, abrange-se tanto os danos efetivos quanto os que deixou de ganhar (danos emergentes e lucros cessantes).
Em outras palavras, quem infringe dever jurídico pelo qual se submeteu voluntariamente, fica obrigado a reparar o dano causado em decorrência dessa conduta ou omissão.
Contudo, essa responsabilidade não é estanque. Em que pese o fundamento do princípio da reparação integral do dano, sua aplicação pode ser mitigada pela autonomia da vontade das partes em conjunto com a obrigatoriedade dos contratos, é nesse espectro que se encontra a possibilidade de ajustar condição contratual que limite o alcance da responsabilidade contratual.
1.3 Da limitação da responsabilidade contratual
Inobstante o conjunto de normas, princípios e doutrina atinente às diretrizes para contratação, não há um dispositivo de lei que proíba ou regule especificadamente a instituição da cláusula de limitação de responsabilidade.
Contudo, a lei da liberdade econômica, 13.874/19, pode ser um norte normativo, pois definiu como prerrogativa das partes em contratos paritários, em exercício da autonomia privada, a possibilidade de alocação dos riscos contratuais, ao inserir o inciso II do art. 421-A do CC.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
[...]
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada;
Dentre as possibilidades de um evento danoso oriundo do contrato, que resulte prejuízo para qualquer das partes, pode restar definida previamente a distribuição do risco, ou seja, diante da ocorrência dessa hipótese, qual das partes assume, e em que proporção, a responsabilidade pelo prejuízo.
Por certo que o contrato, como representação formal de uma operação econômica, deve ser acompanhado de uma análise de risco a ser elaborada pelas partes. Por meio de uma avaliação de risco, os contratantes ponderam os possíveis efeitos e resultados, positivos e negativos, que podem advir do negócio jurídico.
Como consequência da autonomia da vontade das partes é que a cláusula de limitação de responsabilidade pode ser estipulada contratualmente, pela qual, as partes de um contrato analisam os riscos provenientes ao negócio e decidem estabelecer um limite ao efeito indenizatório da responsabilidade de uma ou ambas as partes, seja por meio da escolha de um valor máximo exigível, seja pela limitação a um tipo específico de dano, seja por meio da alteração das regras supletivas do regime legal ou, ainda, um prazo pré-determinado para cumprimento da obrigação.
Nesse sentido, ensina Arnold Wald13:
"A previsão de cláusulas que limitem ou excluem a responsabilidade contratual constitui, destarte, lídima manifestação do princípio da autonomia da vontade das partes - desde que atendidos determinados requisitos - que rege as relações contratuais, a despeito de não ser recebida com muita simpatia pelo ordenamento jurídico brasileiro, havendo discussões acerca da moralidade da sua instituição."
São comumente qualificadas como cláusulas de limitação da responsabilidade aquelas condições que alteram o efeito indenizatório ordinário, sem, contudo, afastar a responsabilidade em si pelo inadimplemento ou qualquer de suas demais implicações, como o efeito resolutório ou a ação do credor para execução específica da obrigação.
Nesse sentido, a cláusula de limitação de responsabilidade não afasta a responsabilidade em si, mas limita as causas indenizáveis e/ou a extensão dos seus efeitos indenizatórios.
3. Dos requisitos de validade da cláusula de limitação de responsabilidade
A possibilidade de limitação da responsabilidade contratual não é absoluta. Apenas poderão ser afastadas ou modificadas as regras disponíveis às partes, garantindo-se aplicação plena às regras cogentes e de ordem pública. Uma cláusula que desrespeite essas premissas será considerada abusiva e nula de pleno direito.
Ademais, a validade da cláusula de limitação de responsabilidade está ligada à estipulação de um arcabouço condicional de vantagens e desvantagens que represente o interesse da parte renunciante em aceitar a condição ajustada, sem que isso evidencie um abuso de direito de uma das partes e crie um desequilíbrio contratual excessivamente oneroso.
Nessa direção, Arnold Wald14 estabelece elementos de validade caracterizadores da Cláusula de Limitação de Responsabilidade:
"Além da já citada inexistência de violação a preceito de ordem pública, a cláusula de limitação de responsabilidade tem os seguintes fundamentos:
(I) bilateralidade de consentimento - a declaração unilateral é considerada inteiramente inválida;
(II) igualdade de posição das partes - vedada está, como dito, sua inclusão em relações de consumo;
(III) inexistência de exoneração do agente em caso de dolo ou culpa grave - não se admite cláusula de exoneração de responsabilidade em matéria delitual; e
(IV) ausência de isenção do contratante pelo pagamento de indenização relativa ao inadimplemento de obrigação principal - a cláusula de não indenizar não pode ser estipulada para afastar ou transferir obrigações essenciais do contratante."
Nesse escopo, Antonio Junqueira de Azevedo15, elenca as hipóteses nas quais poderá ser caracterizada a nulidade da cláusula, quando:
i) violarem norma de ordem pública;
ii) representarem a limitação de responsabilidade decorrente de conduta dolosa ou gravemente culposa;
iii) isentarem de indenização o inadimplemento da obrigação principal, e
iv) ofenderem a vida ou a integridade física de pessoas.
O autor explica que a violação da primeira hipótese atinge diretamente o requisito de validade do negócio jurídico; na segunda, seria uma autorização para delinquir; na terceira, tornaria o contrato um negócio jurídico abusivo, pois a cláusula conferiria poderes desproporcionais ao contratante que ficaria com a liberalidade de cumprir ou não a obrigação principal; e a nulidade da quarta resulta da própria proteção constitucional à dignidade da pessoa humana.
Nessa linha de coisas, pode-se entender a ordem pública como o conjunto de normas que compõem o ordenamento jurídico, as quais não estão dentro do campo de liberalidade das partes para ajustar cláusula contrária; já o dolo como vontade da parte em descumprir os termos propostos e a culpa grave como resultado de conduta com finalidade diversa, em ambos os casos, a permissão para contratar nesses termos estaria privilegiando a impunidade e a má-fé de uma das partes; igualmente, não se pode pretender eximir da obrigação principal por meio da Cláusula de Limitação de Responsabilidade, o que desfiguraria a própria essência do contrato; a ofensa à vida ou integridade física de pessoas pode ter o mesmo respaldo no primeiro requisito por violar norma de ordem pública, qual seja, a proteção à vida.16
Isso tratado a respeito de contratos paritários, ou seja, firmados por partes equivalentes e em igualdade de condições negociais.
Diante dessas limitações, resta claro que não é possível excluir integralmente a responsabilidade de uma das partes. Implementar essa sistemática culminaria na própria descaracterização da natureza do instrumento, pelo qual a parte afetada pela exclusão seria isenta de qualquer conduta ou omissão que infringisse as condições contratuais.
Assim como não é possível limitar a responsabilidade em si, mas, sim, a extensão do resultado, isso se aplica à pretensa exclusão, embora não haja como se pretender excluir a integral responsabilidade de uma parte oriunda de obrigação contraída contratualmente, é possível excluir os efeitos da responsabilidade para determinados tipos de obrigação.
Contratualmente é possível que as partes ajustem a exclusão da responsabilidade para eventuais danos materiais - diretos, indiretos - ou morais, estéticos, perda de uma chance, desde que respeitados os requisitos de validade já mencionados.
Assim, embora os princípios da obrigatoriedade (pacta sunt servanda) e da autonomia da vontade componham a essência da cláusula de limitação de responsabilidade, ainda há restrições à sua aplicação, além de não poder afastar-se dos requisitos de validade próprios de todo negócio jurídico - agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei.
Além dessas limitações, importa destacar que o caráter negocial e paritário do ajuste que institua tal cláusula é essencial, o que tende a afastar essa possibilidade nos contratos de adesão ou consumeristas.
4. Do entendimento do STJ
Em decisão da 3ª turma nos autos REsp 1.989.291, publicada em 23/11/2023, o STJ reiterou a normativa legal e consolidou a validade da cláusula que limita responsabilidade contratual.
O colegiado entendeu que o valor máximo para indenização estabelecido previamente pelas partes deve prevalecer, pois não ficou minimamente comprovado o dolo na fixação da cláusula penal nem foi prevista no contrato a possibilidade de o credor demandar indenização suplementar, sendo presumível que as partes avaliaram as vantagens e desvantagens do acordo. Com isso, a indenização por danos materiais e morais por abusos contratuais pretendida pela autora ficou limitada ao valor previsto no contrato.
Contudo, nota-se que a decisão não foi unânime e, também, divergiu de decisão do tribunal de origem, o qual já tinha decidido de modo diverso ao Juízo de primeiro grau, o que demonstra a delicadeza e complexidade do tema.
5. Conclusão
A cláusula de limitação de responsabilidade representa legítima manifestação da autonomia privada, notadamente em contratos empresariais paritários, desde que respeitados os limites impostos pelo ordenamento jurídico. A ausência de vedação legal expressa e o reforço legislativo trazido pela lei da liberdade econômica conferem validade ao mecanismo, cuja eficácia, contudo, depende da observância de requisitos como a bilateralidade, a inexistência de abuso, a ausência de dolo ou culpa grave, e o respeito às obrigações essenciais do contrato.
A busca pelo equilíbrio entre liberdade contratual e tutela de direitos fundamentais permanece como vetor interpretativo central na aplicação dessas cláusulas nas diversas esferas contratuais, sendo imprescindível a análise de viabilidade prévia para cada caso concreto, com a finalidade de distribuir e/ou mitigar riscos ou, ainda, melhorar a previsibilidade de prejuízos que possam ser melhor estruturados.
Se você se interessa pelo assunto, acompanhe os próximos artigos, nos quais abordaremos a (im)possibilidade de aplicação dessa condição contratual em contratos de adesão ou consumeristas, bem como o tratamento que tem sido estudado para esse tema no projeto do novo CC.
_______
1 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: contratos, p. 7.
2 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 4: Contratos, tomo I: Teoria geral. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 38.
3 GOMES, Orlando. Contratos, p. 4; Silvio Rodrigues, Direito civil, v. 3, p. 9.
4 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de direito civil, v.2: direito das obrigações e contratos. São Paulo: Método, 2005. p. 214.
5 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
6 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social do contrato: conceito e critérios de aplicação. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 168 out./dez. 2005. Acessado em https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/168/ril_v42_n168_p197.pdf pag. 197 a 214.
7 FERREIRA, Carolina Raboni. As Cláusulas Exoneratória e Limitativa do Dever de Indenizar e os Princípios Contratuais Contemporâneos: Admissibilidade Numa Perspectiva Franco-Brasileira. Disponível em: < https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/handle/1884/46076> Acesso em: 05 mar. 2024.
8 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.
9 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 3. p. 84.
10 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 3. p. 58.
11 Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.
12 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
13 WALD, Arnold. A cláusula de limitação de responsabilidade no direito brasileiro. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo: RDCC, São Paulo, v.2, n. 4, jul./set. 2015, pág. 133.
14 WALD, Arnold. A cláusula de limitação de responsabilidade no direito brasileiro. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo: RDCC, São Paulo, v. 2, n. 4, jul./set. 2015, pág. 137.
15 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Cláusula cruzada de não indenizar, ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 198.
16 DRUMMOND, Helena Rodrigues. A validade da cláusula de não indenizar nos contratos paritários. Rio de Janeiro: EMERJ, 2019. p. 8.
Filipe Kuss
Advogado no Martinelli Advogados, especialista em Contratos e Direito Imobiliário, atualmente pós-graduando em Direito Societário e Outros Negócios na FAE Business School e Membro do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia da UFPR.


