O arquivo vivo
A visita da CDADIE ao Arquivo Nacional revelou acervo histórico rico, infraestrutura preservada e profissionais dedicados, reforçando memória e direitos autorais.
terça-feira, 28 de outubro de 2025
Atualizado em 27 de outubro de 2025 11:55
1. Introdução
Por vezes uma ideia é concebida muito tempo antes de sua aplicação. O ser humano "tropeça" em um pensamento, o rumina, fala sobre ele consigo ou com outrem, mas o cotidiano acaba por estimular procrastinação da implementação daquele item mental. O que vale para ideias, também pode incidir para pessoas, projetos, institutos ou instituições.
O Arquivo Nacional é um Órgão da União, hoje vinculado ao MGISP - Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Mencionado, genericamente, como "Archivo Publico" na Constituição do Império1, a ideia que o concebeu era mesmo a de ser uma espécie de banco público de dados cruciais da história brasileira. Como os tempos da política são, por vezes, peculiares, apenas quatorze anos depois é que houve sua "implementação" formal2.
A "missão" do "Archivo Público" paulatinamente se tornou mais vasta, mediante a regulamentação (a implementação da "ideia")3. Segmentou-se sua atuação entre: (a) o arquivamento de originais e cópias autênticas da atuação legislativa, as propostas e interfaces com o Poder Executivo, (b) os atos do Poder Moderador e dos presidentes das Províncias, registo sobre bens nacionais, contratos, letras Apostólicas e bulas4, e (c) a Seção Histórica - versando sobre contratos de casamento do imperador, príncipes e princesas, batismos, óbito, relações estatísticas, minerais, botânicas, atos naturais ou desastres.
Em suma, o Arquivo Nacional foi gerado para ser um dos centros de preservação da História e Memória dos Brasileiros e do Brasil, o que torna tal Órgão um cerne estratégico de resguardo ao domínio público - sob a soberania do Povo.
2. O Arquivo Nacional em 2025
A CDADIE - Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB, Seção do Rio de Janeiro é um centro de estudos, debates e aprendizado, com enfoque profissional e pragmático. Destina-se ao cotejo do "mundo" da Propriedade Intelectual. Muito além de um nicho de organização de eventos ou catarse entre causídicos especializados, a CDADIE realiza parte de suas funções quando labora em cartilhas públicas, suscita debates e quando realiza suas visitas técnicas.
A visita técnica inaugural da CDADIE, em 2025, se deu no Arquivo Nacional, e tal decisão não se pautou por qualquer aleatoriedade. Cuida-se de: (a) centro de excelência localizado (Praça da República, 173 - Centro) na Capital cultural do Brasil, o Rio de Janeiro, com o papel de "Lugar de Memória"5, (b) é impossível compreender os direitos autorais sem conhecer como se realiza a "guarda" dos bens públicos de uso comum (art. 99, I, do CC/02), de cunho imaterial que constituem nossa história6, (c) fato é que os direitos autorais são protegidos, independentemente de registro (art. 18 da lei 9.610/1998), bastando a sua exteriorização (art. 2º, 2, da Convenção União de Berna, decreto 75.699/1975 - com eventual suporte material). Tal facilidade legislativa, entretanto, dificulta a cognição centralizada das criações que antecederam, e maximiza as chances de um "autor" ulterior produzir algo que seja a reprodução de obra alheia incógnita. O Arquivo Nacional, assim, realiza uma função próxima ao que o INPI7 proporciona às criações da propriedade industrial - a aglutinação histórica, burocrática e informacional.
Nesse sentido, um "pequeno Comitê" da CDADIE, então, agendou uma visita técnica ao Arquivo Nacional para o dia 30/9/2025. A proposta era, de fato, ver, aprender e perceber como os Poderes Constituídos estavam a tratar de tal Órgão da República, que foi criado, à época, como Órgão do Império. A Comissão estava pronta, com toda a humildade, para ficar "rouca de tanto ouvir"8.
A experiência foi surpreendente e emocionante.
3. A estrutura e as pessoas
O prédio que sedia o Arquivo Nacional foi edificado em 1853, sob o estilo arquitetônico neoclássico, e já foi sede da Casa da Moeda (a partir de 1868). Sua beleza é harmônica9 com aquela encontrada no Campo de Santana e na edificação da Faculdade Nacional do Direito, os imóveis "lindeiros". Sem dúvida se trata mesmo de um dos polos mais ricos de arquitetura e de História da Cidade Maravilhosa.
Por dentro o prédio do Arquivo Nacional cintilava em limpeza. O imóvel estava restaurado e a estrutura de segurança era impecável. Cada pedacinho do gigantesco imóvel (que se aproxima do segundo século) estava bem cuidado, inclusive a estrutura do ar-condicionado, o paisagismo e as modificações necessárias ao século XXI. O MGISP, sob o pálio da ministra e professora doutora (UFRJ) de economia Esther Dweck, está a dedicar ao Arquivo Nacional a atenção que o Órgão merece.
Recebidos com entusiasmo pelos servidores públicos10 do Arquivo Nacional, os membros da CDADIE foram tratados com enorme generosidade. Fomos agraciados com palestras por seus pesquisadores sobre os registros históricos de criações estéticas, distintivas e utilitárias que ficaram armazenadas no Arquivo Nacional ao longo do século XIX. Ver, entender e vivenciar aqueles marcos históricos foi transformador e revelador: é um banho cultural.
Tivemos notícia de que além dos mais dedicados mestrandos e doutorandos que realizam pesquisa de campo, educadores e produtores televisivos costumam passar pelo Arquivo Nacional em busca de precisão histórica, "revelações" e confirmação de fontes. Tudo isso é possível, pois seu serviço público é engajado e apaixonado.
4. Conclusões: Mesmo o que funciona bem, pode funcionar melhor
O Arquivo Nacional é um dos guardiões da memória nacional, e boa parte disso é feito sem que a completude do seu acervo esteja digitalizada. Muito além de ser um imperativo de acesso, cuida-se de providência que pode precatar que bens infungíveis e antigos virem "pó", tal como o infeliz incidente do Museu Nacional11. Museus como o British Museum12 (Londres) e o Metropolitan Museum13 (Nova Iorque) contam com milhões de peças de seu acervo digitalizadas, o que facilita a pesquisa de todos, e no que pode servir de um bom modelo de plataforma virtual para nosso Arquivo Nacional.
Um segundo ponto pertinente é o do funcionamento do SIAN - Sistema de Informações do Arquivo Nacional. Cuida-se da plataforma pública de acesso que permite à cidadania consultar os dados. É útil, funcional, mas por vezes é um pouco lento e não é particularmente amigável. Investimentos em informática poderão ampliar a boa utência e compreensão do SIAN.
O terceiro ponto é o das pessoas que compõem a alma do Arquivo Nacional. Tão rico quanto ter uma "palhinha" sobre seu acervo, foram os virtuosos resultados dos processos seletivos de seleção de pessoal. Mestres, Doutores, pequisadores, recepcionistas, terceirzados, funcionários da limpeza - gente com brio e talento para o serviço público. O Arquivo Nacional está bem servido qualitativamente. Sem prejuízo, é necessário aumentar o quantitativo de servidores. Com a passagem do tempo, é natural que haja a aposentadoria ou exoneração. Evitar que concursos só sejam abertos quando um percentual elevado dos cargos esteja em aberto facilita o processo de transição, e de transmissão informacional do funcionário que sai para aquele que entra.
Factualmente, a OAB (1930*) é uma autarquia especial bem mais jovem do que o Arquivo Nacional, e cada um desses centros de imputação exerce múnus público. Novas colaborações entre cada uma dessas entidades poderá propiciar aprendizado e simbiose, em especial quando os investimentos estruturais puderem permitir maior e melhor acesso à história e memória. Que os causídicos dos direitos intelectuais façam bom uso do serviço público de excelência fornecido pelo Arquivo Nacional; para sempre o Arquivo Vivo do Brasil.
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1 Constituição Política do Império do Brazil de 25.03.1824: "Art. 70. Assignada a Lei pelo Imperador, referendada pelo Secretario de Estado competente, e sellada com o Sello do Imperio, se guardará o original no Archivo Publico, e se remetterão os Exemplares della impressos a todas as Camaras do Imperio, Tribunaes, e mais Logares, aonde convenha fazer-se publica"
2 Regulamento nº 2, de 2 de janeiro de 1838: "Art. 1.º O Archivo Publico fica provisoriamente estabelecido na Secretaria d`Estado dos Negocios do Imperio, debaixo da inspecção do Ministro e Secretario d`Estado da mesma Repartição".
3 CARBONI, Guilherme. Direito de Autor e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) Em Bibliotecas e Arquivos Públicos. In BARBOSA, Pedro Marcos Nunes & CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Propriedade Intelectual Contemporânea. Homenagem ao Professor Doutor Newton Silveira. São Paulo: IASP, 2025, p. 279
4 Sobre como ricas pesquisas historiográficas podem ter como fontes seguras arquivos públicos como o Arquivo da Ajuda em Lisboa, vide HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político Portugal - séc. XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 45.
5 "Mais uma vez, é necessário um deslocamento do olhar pois, com recuo: percebi a fecundidade desse questionamento dos esquemas globais que era preciso desconstruir já que todos postulavam um sentido pré-existente da história, que dava respostas antes' de fazer perguntas à experiência histórica. Por outro lado, o próprio Pierre Nora, depois de saudar e participar desse esfacelamento da história, lançou-se do imenso trabalho de Les lieux de mémoire (Os lugares da memória), que pode ser percebido como uma retomada de sentido, um sentido que vem depois da desconstrução e que reinsere a perspectiva de apropriação em uma dimensão pluralizada." DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Tradução Fernanda Abreu. Bauru: Ed. Universidade Sagrado Coração, 2004, p. 15 e seguintes.
6 "Deste modo, a tarefa do historiador é mais complexa que a do cientista. Sob outro aspecto, ela é mais simples: o historiador não precisa, nem pode (sem deixar de ser historiador) competir com o cientista na busca das causas ou das leis dos acontecimentos. Para a ciência, o evento descobre-se, percebendo-o, e a busca ulterior das suas causas é orientada pela sua referência à classe a que pertence e pela determinação de relação entre essa e outras classes. Para a história, o objeto a ser descoberto é, não o mero evento, mas o pensamento nele expresso. Descobrir esse pensamento é já compreendê-lo. Uma vez que o historiador tenha verificado os fatos, não há qualquer processo ulterior para a investigação das suas causas. Quando ele sabe o que aconteceu, sabe já também por que aconteceu." GARDINER, Patrícck. Teorias da História. 5ª Edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, p. 306.
7 O Arquivo Nacional, inclusive, guarda parte do acero histórico do INPI.
8 Frase atribuída ao político mineiro Benedito Valadares que, recentemente, foi ventilada pelo inteligente Prof. Dr. Gustavo Martins, Vice-Presidente da CDADIE.
9 A foto é de Genilson Araújo, repórter aéreo da TV Globo e foi retirada do link: https://www.instagram.com/p/DQJbD2GDUT6/, última visualização em 23/10/2024.
10 Alexandra Werneck da Silva, Christiano de Carvalho Cantarino, Edilson da Silva Gomes, Maria do Carmo Rainho, Rodrigo Cavaliere Mourelle e Valeria Morse.
11 "No mare Magnum da memória pessoal e social, o homem de hoje parece sentir-se protegido do esquecimento: dados reais desconfortantes, porém significativos são cancelados, removidos ou escondidos com a finalidade de não abalarem as convicções de base. No entanto, nas videotecas, algumas fitas e alguns filmes, por desgaste ou por acidente, têm os seus conteúdos apagados." COLOMBO, Fausto. Os Arquivos Imperfeitos. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 20.
12 https://www.britishmuseum.org/collection/
13 https://www.metmuseum.org/pt/art/collection
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.
Lívia Barboza Maia
Professora IDP e Mackenzie Rio. Coordenadora Curso de Extensão Fashion Law PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Civil (UERJ). Especialista em Direito da Propriedade Intelectual (PUC-Rio). Sócia DBBA.



