Sucessão do cônjuge: Do Direito romano ao PL 4/25
O projeto de reforma representa um retorno à Codificação de 1916 em matéria de sucessão do cônjuge, que deixa de ser herdeiro necessário e passa - mais uma vez - à 3ª ordem de vocação hereditária.
terça-feira, 28 de outubro de 2025
Atualizado em 27 de outubro de 2025 11:56
Do Direito romano à codificação civil ora em vigência, a posição do cônjuge na ordem de vocação hereditária tem sido objeto de sucessiva valorização, tendência respaldada pelo CC de 2002, que alçou o cônjuge à primeira ordem de vocação hereditária - a depender do regime de bens adotado ao longo do casamento (art. 1829, inc. I) - e à condição de herdeiro necessário (art. 1.845). Contudo, o PL 4/25 promete romper com essa tendência.
De acordo com a lei das XII tábuas, no ius civile antiquum, herdavam os suus heredes, os agnados e os gentiles. Nesse contexto, o cônjuge teria alguma participação na sucessão desde que se enquadrasse na classe dos suus heredes - isto é, dentre aqueles submetidos ao pátrio poder. Tal condição excluía da sucessão o cônjuge casado sine manu, sem submissão à autoridade do pater famílias, bem como quaisquer familiares que não os agnados, isto é, aqueles com parentesco baseado na linha masculina.
A valorização da posição do cônjuge na sucessão legítima deu-se em paralelo ao enaltecimento do parentesco congatício, que não se restringia à linha masculina, o que se atribui ao jurisconsulto clássico Gaio. Nesse contexto, passou-se, no direito pretoriano, a ser deferida a bonorum possessio unde vir et uxor em favor do cônjuge - uma forma de adjudicação dos bens deixados pelo de cujus, desde que o cônjuge se casasse sob justas núpcias.
Tal matéria foi consolidada de forma definitiva sob Justiniano, a partir da Novella 118, segundo a qual a ordem de vocação hereditária era deferida da seguinte forma: em 1ª classe, aos descendentes; em 2ª classe, aos ascendentes e aos irmãos germanos, isto é, aos que possuíam genitores comuns; em 3ª classe, aos irmãos consanguinei ou uterini, com apenas um genitor comum; em uma 4ª classe, aos congados, sem limite de grau; e, finalmente, por último, em uma 5ª classe, ao cônjuge, que herdava através da mencionada bonorum possessio unde vir et uxor.
Assim, no direito romano, o cônjuge possuía posição limitada na ordem de vocação hereditária e só herdaria após os cognados - sem limitação de grau de parentesco quanto a estes últimos. Já nas Ordenações Filipinas, das quais descende o ordenamento jurídico pátrio, o cônjuge passou a ser herdeiro de 4ª classe, após os descendentes, ascendentes e colaterais até o 10º grau - parentesco inclusive mais extenso do que o 4º grau, atualmente reconhecido no ordenamento para fins de sucessão (art. 1839 do CC de 2002).
A modificação mais expressiva veio sob a chamada lei Feliciano Pena (lei 1.839/1907), a partir da qual o cônjuge não desquitado passou a figurar na terceira ordem de vocação hereditária, em posição superior à dos colaterais, que passaram a herdar apenas havendo parentesco até o 6º grau. Referida ordem foi mantida pelo CC de 1916 (art. 1.603), o qual, por outro lado, tratava apenas os descendentes e ascendentes como herdeiros necessários (art. 1.721) e estipulava a comunhão universal como o regime legal de bens.
Entre o CC de 1916 e o CC de 2002, atualmente em vigor, houve uma série de legislações que explicam a mudança substancial para alçar o cônjuge à condição de herdeiro necessário e à primeira ordem de vocação, a depender do regime de bens.
Nesse contexto, são dignos de nota a lei 883/1949, que permitiu o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento após a dissolução da sociedade conjugal com a morte do genitor, os quais herdavam em concorrência com o cônjuge; o Estatuto da Mulher Casada (lei 4.121/1962), que criou o instituto do usufruto vidual para cônjuges não casados sob a comunhão universal de bens (à época o regime supletivo); e, finalmente, a lei do divórcio (lei 6.515/1977), que estabeleceu a comunhão parcial de bens como regime legal. A mudança brasileira também veio inspirada pelo Direito Português, que, com o decreto lei 496/1977, alçou o cônjuge à primeira ordem de vocação hereditária, em concorrência com os descendentes.
Nesse contexto, surgiu o sistema vigente, em que o cônjuge passou a ser herdeiro necessário (art. 1.845), conjuntamente com descendentes e ascendentes; e a figurar na primeira, segunda ou terceira classe de vocação hereditária, a depender do regime de bens adotado e da existência de descendentes e ascendentes (art. 1.829, inc. I, II e III).
O art. 1.829, inc. I, foi fruto de grande discussão doutrinária e jurisprudencial desde a entrada em vigor do CC de 2002, visto que, diferentemente da legislação portuguesa, o sistema brasileiro difere a posição do cônjuge de acordo com o regime de bens adotado ao longo do casamento.
A primeira divergência substancial deu-se em relação ao regime da comunhão parcial de bens, quanto aos bens a serem submetidos à herança - se haveria restrição para abranger apenas os bens particulares ou se também seriam incluídos os bens comuns.
A primeira interpretação, a majoritária, respaldada pela maior parte da doutrina, pelo enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil e por jurisprudência recente do STJ (REsp 1.368.123/SP, rel. min. Sidnei Beneti, j. 8/6/15), sustenta que o cônjuge herda apenas bens particulares, visto que os bens comuns seriam previamente submetidos à meação (art. 1.658).
A segunda interpretação, minoritária, defendida pelos professores Maria Helena Diniz e Inácio de Carvalho Neto, dá-se no sentido de que o cônjuge herdaria tanto bens comuns quanto particulares, sendo a existência destes - muito recorrente - condição para a herança incidir sobre aqueles. Finalmente, há a interpretação invertida, defendida pela professora Maria Berenice Dias, no sentido de que o cônjuge herdaria apenas bens comuns, posição também defendida por jurisprudência anterior do STJ (REsp 1.377.084/MG, rel. min Nancy Andrighi, j. 17/12/09).
Quanto aos regimes de separação de bens houve divergência também digna de nota, quanto à extensão da exclusão operada pelo art. 1.829, inc. I em relação à separação convencional (art. 1.687) para abrangê-la em conjunto com a separação legal, ou obrigatória (art. 1.641). Referida posição fora defendida pelo professor Miguel Reale, bem como por jurisprudência superada do STJ (REsp 992.749/MS, rel. min. Nancy Andrighi, j. 1/12/09), mas hoje se entende que há concorrência do cônjuge com os descendentes quando casado no regime da separação convencional.
Assim, na prática, de acordo com a posição majoritária e atual, os cônjuges concorrem com os descendentes, em uma intepretação a contrario sensu do art. 1.829, inc. I, nos regimes de separação convencional e da participação final nos aquestos, além da comunhão parcial, quando houver bens particulares, restando excluídos da primeira ordem os regimes da comunhão universal e da separação legal. Quanto à concorrência com os ascendentes (inc. II) não há distinção quanto aos regimes de bens e, na ausência de ascendentes e descendentes, a herança é deferida por inteiro ao cônjuge supérstite (art. 1.838).
Passados mais de 20 anos da entrada em vigência da nova codificação civil, o PL 4/25 promete remediar tais divergências reposicionando o cônjuge na 3ª ordem de vocação hereditária, isto é, reposicioná-lo, dando preferência aos descendentes e aos ascendentes, nessa ordem, de modo análogo ao que vigeu por mais de 80 anos no ordenamento pátrio através do sistema do CC de 1916.
Outrossim, o PL 4/25 também propõe a remoção do cônjuge da classe dos herdeiros necessários, também de forma análoga ao que ocorria no sistema do Código de 1916, remanescendo apenas descendentes e ascendentes como herdeiros de tal ordem.
Em síntese, observa-se que o PL 4/25, por meio do retorno ao sistema da codificação anterior, representa um rompimento com a constante tendência de valorização do cônjuge na ordem de vocação hereditária, que é observada desde as origens do ordenamento pátrio até a entrada em vigor do CC de 2002, fomentando a liberdade testamentária.
_______
Referências bibliográficas
DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 10. ed. São Paulo: JusPodivm, 2025
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 6
GOMES, Orlando. Sucessões. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008
JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Institutas do Imperador Justiniano. Tradução de Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2001
MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. Rio de Janeiro: Forense, 2019
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013
MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano, vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito das sucessões. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, v. 6
REALE, Miguel. Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito das Sucessões. 12. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012
Ottavio Augusto Cilento Morsello
Advogado e sócio do escritório Huck Otranto Camargo Advogados. Mestrando e Bacharel pela Universidade de São Paulo. Licenciado em direito pela Université Jean-Moulin Lyon III. Intercâmbio acadêmico pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata.



