O CC do futuro: IA, neurodireitos e o novo Direito Digital
A reforma propõe um livro dedicado ao mundo digital, reconhecendo direitos sobre identidade virtual, mente humana, bens e contratos tecnológicos.
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
Atualizado em 28 de outubro de 2025 11:50
O Direito Civil brasileiro está prestes a dar um salto, buscando se alinhar com uma realidade que há muito já se impôs: a vida digital. O anteprojeto de reforma do CC (PL 4/25), tramitando no Senado, propõe não apenas atualizações pontuais, mas a criação de um Livro inteiro, o Livro VI, dedicado ao "Direito Civil Digital".
Antes de tudo, uma ressalva: trata-se de um anteprojeto (que tramita como PL), não de uma lei em vigor. É um texto robusto para estudo e debate, ainda passível de modificações. No entanto, ele é o mais claro indicador que temos sobre o futuro da legislação privada no país, e ignorá-lo é perder a chance de se antecipar.
Embora o Livro Digital seja vasto, cinco eixos se destacam por seu potencial transformador nas relações cotidianas, muito além do mundo jurídico. O presente artigo tem como objetivo trazer esses pontos específicos para dicussão.
1. Identidade digital: A proteção do eu virtual
Iniciando as proteções (Art. 2.027-K), o projeto formaliza o conceito de Identidade Digital. Ela é definida como o conjunto de atributos e registros (perfis, logins, chaves criptográficas) que identificam uma pessoa no ambiente digital.
A grande inovação é estender a essa identidade a mesma proteção dos direitos da personalidade (honra, nome, imagem). Na prática, isso cria um escudo legal mais robusto contra o uso não autorizado, apropriação indevida de perfis e práticas discriminatórias baseadas em nossa persona digital.
2. Neurodireitos: A vanguarda da proteção da personalidade
Avançando na proteção (Art. 2.027-O), encontramos a inovação talvez mais vanguardista: a inclusão dos Neurodireitos como uma nova faceta dos direitos da personalidade.
Com base no Art. 2.027-O da proposta, os Neurodireitos são uma nova categoria de direitos da personalidade, criados para proteger a mente humana contra o uso indevido de neurotecnologias (tecnologias capazes de interagir com o cérebro). O objetivo é garantir que a integridade mental, a privacidade dos pensamentos e a liberdade de decisão de cada indivíduo sejam preservadas diante dos avanços científicos.
2.1 Os 6 pilares da proteção mental
A lei estabelece seis neurodireitos fundamentais para proteger a mente de cada cidadão. São eles:
- Direito à integridade e privacidade mental: Isso significa que seus pensamentos e dados cerebrais são invioláveis. Ninguém pode acessá-los, monitorá-los ou alterá-los sem o seu consentimento explícito. Sua mente é um espaço privado.
- Direito à autodeterminação e ao livre-arbítrio: Garante que suas decisões sejam tomadas por você, sem manipulação ou influência de tecnologias externas. Protege sua capacidade de pensar e agir livremente.
- Direito ao aprimoramento mental justo e equitativo: Assegura que qualquer pessoa tenha o direito de buscar melhorias em suas capacidades cognitivas sem sofrer discriminação. Ou seja, as próprias tecnologias de aprimoramento não podem ser inerentemente discriminatórias.
- Direito à proteção de dados cerebrais: Trata os dados gerados pela sua atividade cerebral como informações extremamente sensíveis, exigindo o mais alto nível de proteção e confidencialidade.
- Direito ao acesso justo e equitativo a neurotecnologias: Busca impedir que as tecnologias de aprimoramento mental criem uma "divisão cognitiva" na sociedade, garantindo que sua distribuição e disponibilidade sejam justas e não criem novas formas de desigualdade.
- Direito à proteção contra práticas discriminatórias: Proíbe que qualquer pessoa seja discriminada com base em seus dados cerebrais, seja em processos seletivos de emprego, na contratação de seguros ou em qualquer outra situação.
Por que isso é importante para você?
Com o avanço de tecnologias como interfaces cérebro-computador (BCIs), que permitem controlar dispositivos com o pensamento, ou o neuromarketing, que mede reações cerebrais a produtos, essas leis servem como um escudo para proteger a essência do indivíduo: seus pensamentos, suas decisões e sua identidade pessoal. Os neurodireitos garantem que, mesmo em um futuro altamente tecnológico, a autonomia e a privacidade da mente humana continuarão a ser um direito fundamental.
É a lei protegendo o livre-arbítrio em um nível inédito.
3. Patrimônio digital: O fim do limbo da herança
Seguindo para os bens (Art. 2.027-AA), o projeto resolve um problema que aflige advogados e famílias: o que acontece com nossos ativos digitais quando morremos?
O texto reconhece formalmente o Patrimônio Digital, classificando-o da seguinte forma:
- Bens patrimoniais: Ativos com valor econômico claro (criptomoedas, NFTs, milhas). Estes integram a herança e são transmitidos aos herdeiros.
- Bens existenciais: Conteúdos ligados à personalidade (perfis de redes sociais, e-mails, fotos na nuvem). A regra geral é a não transmissão, protegendo a privacidade póstuma. Os herdeiros podem, contudo, pedir a exclusão ou conversão em memorial, salvo se o falecido tiver deixado disposição em contrário (via testamento, por exemplo).
- Bem digital híbrido: Bens que combinam características patrimoniais e existenciais. É o exemplo de um canal em uma plataforma de vídeos com muitos seguidores, que gera renda mas também reflete a personalidade do criador.
4. Inteligência artificial: O princípio da responsabilidade
Na sequência (Art. 2.027-AL a 2.027-AN), o projeto aborda a IA. Enquanto o PL específico de regulação da IA (PL 2338/23) trata da governança e dos "riscos", o CC foca em algo mais basilar: a responsabilidade civil e os princípios de seu uso.
As diretrizes são claras:
- Supervisão humana: A lei crava a necessidade de supervisão humana efetiva.
- Atribuição de responsabilidade: O sistema de IA deve permitir a "atribuição de responsabilidade civil a uma pessoa natural ou jurídica". Isso é fundamental para a reparação de danos; a tecnologia não pode ser uma caixa-preta que blinda o responsável.
- Uso de imagem e "deepfakes": A criação de imagens de pessoas (vivas ou falecidas) por IA exigirá consentimento prévio e expresso e, crucialmente, a menção clara e precisa de que o conteúdo foi gerado artificialmente.
5. Contratos inteligentes (Smart Contracts): A segurança jurídica para o blockchain
Para o mundo dos negócios (Art. 2.027-AU), a regulamentação dos Contratos Inteligentes é um marco. Ao definir que esses acordos digitais autoexecutáveis (comuns em blockchain) devem ter robustez, auditabilidade e segurança, o Código confere a segurança jurídica que faltava para impulsionar a adoção dessa tecnologia em transações complexas, conferindo-lhes equivalência funcional aos contratos tradicionais.
Um ponto de debate: A responsabilidade das plataformas
O anteprojeto também propõe revogar o famoso Art. 19 do Marco Civil da Internet. Em seu lugar (Art. 2.027-Z), sugere novas bases para a responsabilidade de plataformas por conteúdo de terceiros, como em casos de "descumprimento sistemático" de deveres.
Esse, sem dúvida, será um dos pontos de maior atrito e debate técnico durante a tramitação, em especial, após o STF, ao julgar os Temas 987 e 533 (RE 1.037.396 e RE 1.057.258), decidir pela inconstitucionalidade parcial e progressiva do Art. 19 do MCI.
O STF considerou que a regra geral do Art. 19 não oferecia proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância, como os direitos fundamentais e a democracia, configurando um estado de omissão parcial. Assim, o STF estabeleceu um regime temporário de interpretação conforme a Constituição (aplicável prospectivamente, ou seja, para casos futuros, ressalvadas decisões já transitadas em julgado).
Este projeto não é apenas uma reforma; é uma refundação. Ele nos dá o roteiro do futuro do Direito Civil e lança as bases para a advocacia da próxima década.
Manoel Duarte Pinto
Sócio de Trigueiro Fontes Advogados, desde 2011. Especialização em Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior de Advocacia do Ceará - FESAC e Universidade Estadual do Ceará - UECE.



