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Quando o céu vira campo de caça: Litigância abusiva e os "sites abutres" da aviação civil

O setor aéreo enfrenta excesso de ações judiciais, impulsionadas por sites que exploram consumidores, transformando direitos em lucro e saturando tribunais.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Atualizado em 29 de outubro de 2025 11:54

O setor aéreo brasileiro enfrenta uma turbulência que não está nas nuvens, mas nos tribunais.

O que antes era uma relação contratual de alta previsibilidade se transformou em terreno de judicialização em massa, impulsionada por plataformas digitais que prometem indenizações automáticas.

Esses sites - verdadeiros "abutres jurídicos" - captam consumidores por meio de campanhas online, oferecendo ressarcimentos por qualquer atraso, cancelamento ou alteração de voo.

O discurso da "justiça fácil" mascara um modelo de negócio que depende do volume de ações e não da legitimidade das demandas.

O paradoxo da litigância aérea: um sistema eficiente, mas judicializado

Os dados mostram que o transporte aéreo brasileiro é um dos mais regulares do mundo - o que torna o volume de ações absolutamente desproporcional.

  • Chegadas pontuais: 90% dos voos chegam no horário previsto, contra 88% nos Estados Unidos.
  • Execução de voos: 97 a cada 100 voos programados são efetivamente realizados - nível praticamente idêntico ao norte-americano.
  • Atrasos: apenas 7% dos voos sofrem atrasos, e só 0,6% ultrapassam duas horas.

Mesmo assim, o Brasil é o epicentro global da litigância aérea.

Uma pesquisa conduzida em 20 mil operações na América Latina, com as mesmas condições de voo, tripulação e meteorologia, revelou uma discrepância impressionante:

  • Brasileiros: 1 processo a cada 362 passageiros.
  • Estrangeiros: 1 processo a cada 7.432 passageiros.

Ou seja, a taxa de litigância brasileira é 20 vezes maior que a média dos demais países da região.

Esses números desmentem o argumento de que o setor é disfuncional. O problema não está no voo, mas na indústria de ações que se formou ao seu redor.

O acesso à justiça que virou produto

São centenas de plataformas atuando na intermediação de causas, muitas vezes sem advogados identificados, com petições padronizadas e uso automatizado de dados.

O resultado é a transformação do processo judicial em mercadoria - e do consumidor em instrumento de captação.

O que antes era o exercício de um direito passa a ser explorado como oportunidade de lucro por quem enxerga na vulnerabilidade um ativo. As ações se repetem, as provas se fragilizam e a credibilidade do sistema entra em queda livre.

O fatiamento de ações: quando o abuso ganha sofisticação

Entre as estratégias mais comuns desses sites está o fatiamento artificial de demandas.

Um mesmo passageiro ajuíza duas ou mais ações sobre o mesmo voo - por exemplo, uma alegando extravio de bagagem e outra por atraso de embarque.

Em vez de concentrar os pedidos em uma única ação, o caso é fragmentado para multiplicar indenizações e honorários, além de gerar artificialmente volume processual.

Esse expediente, já identificado em notas técnicas de Centros de Inteligência e pelo CNJ, representa uma fraude estrutural que sobrecarrega o Judiciário, eleva custos e distorce as estatísticas de litigância.

Quando o abuso se disfarça de proteção

As teses apresentadas são sensíveis: "meu voo atrasou", "não fui informado", "não recebi reembolso".

Mas o que se observa é a reprodução industrial de narrativas idênticas, sem prova individualizada do dano.

Essa litigância em série cria desconfiança estrutural - o juiz não sabe mais distinguir o caso legítimo do fabricado, e o setor inteiro passa a ser tratado com presunção de culpa.

O paradoxo é claro: a judicialização excessiva, nascida sob o manto da proteção, termina prejudicando o verdadeiro consumidor vulnerável.

Judicialização no Brasil e no mundo

O problema não está restrito à aviação: o Brasil é hoje o país mais judicializado do planeta.

  • Taxa recorde. Estudo da ENAJUS mostra que o Brasil possui 7,04 processos para cada 100 habitantes, superando todos os países europeus monitorados pela CEPEJ/Conselho da Europa.
  • O estudo também aponta que a média de litigiosidade europeia é inferior a 2 processos por 100 habitantes.
  • Na segunda instância, diferença é ainda mais elevada. No Brasil, a taxa de 1,4 casos a cada 100 habitantes. Em contraste, a média europeia é de apenas 0,4 processos ajuizados a cada 100 habitantes na segunda instância
  • Sistema saturado. Segundo o Justiça em Números 2024 do CNJ, mesmo com leve melhora, a taxa de congestionamento ainda é de 64,3%.

Painel do CNJ: a escalada da litigância aérea

O Painel de Demandas Aéreas do CNJ confirma o cenário de explosão judicial.

Entre 2020 e 2024, o número de novos processos saltou de 123 mil para 356 mil - um crescimento de 190% em apenas quatro anos.

E o ritmo segue acelerado: somente até maio de 2025, já foram registrados 182 mil novos processos, superando o total anual de 2020.

A curva de crescimento é incompatível com os índices de pontualidade e execução de voos, o que reforça a conclusão de que o aumento não decorre de piora operacional, mas de um ambiente de incentivo ao litígio e captação predatória.

O impacto coletivo da fraude

O aumento artificial de demandas eleva custos operacionais, desvia recursos de segurança e qualidade e, em última instância, encarece a passagem aérea para todos.

A litigância abusiva, nesse contexto, não é apenas um problema jurídico - é um problema econômico e democrático.

Conclusão - Entre o direito e o abuso

O acesso à Justiça é conquista civilizatória, mas o abuso processual corrói sua legitimidade.

O combate à litigância abusiva na aviação exige resposta institucional firme: OAB, ANAC e CNJ precisam enfrentar os "sites abutres" com o mesmo rigor aplicado à captação irregular de clientela e à fraude processual em massa.

Em um país já saturado de processos, é preciso recuperar o equilíbrio: proteger o consumidor não é incentivar o oportunismo - é preservar a integridade do sistema de Justiça.

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Fontes

ENAJUS - "Judicialização no Brasil e na Europa: uma comparação com base em números": https://www.enajus.org.br/anais/assets/papers/2023/sessao-23/judicializacao-no-brasil-e-na-europa-uma-comparacao-com-base-em-numeros.pdf

Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - relatório Justiça em Números 2024: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/justica-em-numeros-2024.pdf

Viviane Ferreira

Viviane Ferreira

Sócia - Diretora jurídica de Excelência e experiência do cliente do Parada Advogados. Mestranda no IDP-Brasília.

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