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A neutralidade na reforma tributária da EC 132/25: Necessária análise crítica e multidimensional da realidade econômica

A neutralidade tributária está sendo amplamente difundida na reforma da tributação sobre o consumo através do mecanismo de não-cumulatividade. Todavia, a avaliação setorial dos agentes econômicos conduz à uma conclusão distinta com riscos de prejuízos, caso não compreendidas as nuances de cada ramo de atividade e formado corretamente os novos preços de custo.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Atualizado em 30 de outubro de 2025 11:22

No atual estágio de regulamentação da reforma tributária sobre o consumo instituída pela EC 132/25, a qual, indubitavelmente emerge como importante reestruturação do sistema fiscal brasileiro, não mais são cabíveis julgamentos de discordância, impondo-se postura ativa voltada a real compreensão do sistema, para comprovação de sustentabilidade das promessas do Estado e, principalmente, adequação dos negócios, a fim de garantir-lhes a manutenção da atividade empresarial e resultados positivos.

Sob esta ótica, insta analisar a neutralidade e ampla não-cumulatividade instituída pelo sistema do IBS e CBS, os quais forma apresentados como seus pilares e garantidores da não influência da atividade fiscal nas decisões dos agentes econômicos.

Embora o mecanismo seja de fato relevante, são necessárias considerações acerca da forma de construção da neutralidade e não-cumulatividade nesta reforma, à vista de fundadas dúvidas sobre a consideração dos traços complexos da economia quando analisada na realidade.

Assim, este artigo se propõe a tecer construções críticas sobre a desconsideração do fenômeno econômico em aspecto dinâmico, explorando os limites do crédito tributário como mecanismo de neutralidade, os impactos da demanda na formação de preços, as dinâmicas do mercado intermediário (B2B), e os conceitos de equilíbrio geral e teia circular de compra e venda, expondo as fragilidades estruturais da reforma em alcançar seus objetivos declarados.

O crédito tributário: Um mecanismo de mitigação, não de neutralidade.

O crédito tributário foi arquitetado na reforma tributária como instrumento central e tomado como mecanismo para evitar a cumulatividade de tributos ao longo da cadeia produtiva. Deste modo, sua lógica seria aparentemente simples: o contribuinte que paga o tributo em uma etapa anterior pode compensá-lo nas operações subsequentes, garantindo que o imposto incida apenas sobre o valor agregado em cada fase.

Sob estes termos, o governo apresenta essa sistemática como a pedra angular da neutralidade fiscal, sugerindo que, ao eliminar a tributação em cascata, igualmente seriam obliteradas as distorções das decisões econômicas tomadas pelos agentes de mercado.

Entretanto, uma análise mais detida revela que o crédito tributário não se configura como uma devolução direta do imposto pago, mas sim como um direito condicional de compensação, sujeito a uma série de limitações normativas, operacionais e práticas.

A não-cumulatividade é formalmente orientada pela neutralidade, porém não assegura uma restituição imediata do tributo, limitando-se ao crédito da operação anterior,  dependente de operações tributáveis posteriores e a satisfação de obrigações acessórias.

Ou seja, o crédito decorrente da não cumulatividade não é uma garantia absoluta de neutralidade, mas um mecanismo para mitigar a bitributação, cuja eficácia está intimamente ligada à dinâmica operacional de cada contribuinte, bem como às condições específicas de mercado.

Isto posto, na prática, os variados aspectos condicionantes da não-cumulatividade do crédito tributário geram desvirtuamentos do modelo ideal, que comprometem a promessa de neutralidade.

Exemplificam o acima afirmado empresas que não conseguem realizar operações tributáveis subsequentes - tais quais as que operam em setores sazonais, com imunidades ou isenções - e acumulam créditos sem potencial de utilização. Estes créditos, em vez de representarem uma via de desopressão fiscal, transformam-se em um custo efetivo, na medida em que o valor pago a título de tributo não é recuperado, impondo gestão constante para viabilizar a utilização integral do crédito dentro do lapso temporal definito pela normatividade.

Ademais, a complexidade burocrática associada à apuração, validação e compensação desses créditos, já observada nos novos regulamentos, potencialmente agravados por interpretações divergentes da administração tributária, impõe ônus adicionais aos contribuintes, especialmente às pequenas e médias empresas que não dispõem de estruturas robustas de gestão fiscal.

Deste modo, o cenário de aparente facilidade veiculado pelo Estado, não necessariamente neutro, sobreavisa como o mecanismo de crédito tributário pode gerar impactos econômicos adversos, especialmente para empresas vulneráveis a flutuações de mercado.

O sistema de crédito tributário, embora bem-intencionado e com nível de efetividade, introduz novas camadas de incerteza e custo que não corroboram plenamente a narrativa de neutralidade, chamando os contribuintes a novos cuidados com a formatação de seu negócio e, especialmente, impondo novos requisitos para a fixação de seus preços.

Formação de preços em um cenário dinâmico: A influência da demanda e os limites do modelo estático.

A segunda narrativa oficial sobre a neutralidade da reforma tributária é a presunção de que os preços de mercado se ajustarão automaticamente à nova estrutura tributária, sem impactos significativos sobre os agentes econômicos.

Essa visão, no entanto, parte de um modelo teórico estático de economia, que desconsidera as complexidades inerentes à formação de preços sob uma realidade dinâmica e interconectada. Como bem reportado pelo portal Contábeis1, a introdução do IBS e da CBS terá impactos diretos na precificação, especialmente em setores de serviços, onde a tributação sobre o valor agregado pode elevar os custos finais de maneira desproporcional, dependendo da elasticidade da demanda.

Embora relevante, esta observação apenas escora a superfície de um problema mais profundo, que envolve a interação entre variáveis econômicas, comportamentais e estruturais dos mercados.

Fundamentando o debate, oportuno recordar que a teoria econômica clássica nos ensina que a formação de preços não é um processo isolado ou linear, mas o resultado de um equilíbrio delicado entre oferta e demanda, mediado por fatores como concorrência, custos de produção, expectativas de mercado e barreiras estruturais.

No cerne dessa realidade se encontra a elasticidade da demanda, entendida como o conceito que mede a sensibilidade dos consumidores a variações de preço. Assim, em mercados com alta elasticidade - como o de bens de consumo não essenciais, onde os compradores têm diversas alternativas disponíveis -, o repasse de um aumento tributário ao preço final é severamente limitado.

Em paralelo, os consumidores, ao perceberem um encarecimento, podem optar por produtos substitutos ou reduzir o consumo, forçando as empresas a absorverem parte significativa do custo tributário para manterem sua competitividade. Essa absorção, longe de ser neutra, compromete as margens de lucro e pode levar a decisões econômicas adversas, como cortes de investimento, redução de pessoal ou até mesmo encerramento de atividades.

Por outro lado, em mercados com baixa elasticidade de demanda - como o de bens essenciais, onde os consumidores têm pouca ou nenhuma alternativa ao produto ou serviço -, o repasse do tributo ao preço final tende a ser mais completo. A despeito disto parecer benéfico para as empresas, haja vista transferirem o ônus tributário ao consumidor, o impacto social é profundamente preocupante. O encarecimento de itens indispensáveis, como alimentos, medicamentos ou serviços de saúde, reduz o poder de compra das camadas mais vulneráveis da população, gerando uma perda de bem-estar social que contraria os princípios de equidade que deveriam orientar qualquer reforma tributária.

Neste sentido Yanis Variufakis alerta que políticas fiscais regressivas ultrapassa a questão do encarecimento de bens essenciais, constituindo mecanismo de transferência estrutural de renda, reforçando o ciclo de dependência e exclusão.2

Adicionalmente à elasticidade, a formação de preços é profundamente influenciada pela estrutura concorrencial de cada mercado. Em setores com alto perfil de competitividade, onde diversas empresas disputam a preferência do consumidor, a pressão para manter preços baixos é intensa. Nesse contexto, a introdução de tributos como o IBS e a CBS, que incidem sobre o valor agregado, pode criar um dilema estratégico: repassar o custo ao consumidor pode significar perda de mercado para concorrentes que optem por absorver o tributo, enquanto internalizar o custo compromete a rentabilidade.

Essa tensão concorrencial é particularmente aguda em setores de serviços, onde, como destaca a Fenacon: "a precificação sob o novo regime enfrenta desafios significativos, uma vez que a carga tributária não é uniformemente distribuída, e a capacidade de repasse depende de variáveis como concorrência, comportamento do consumidor e estrutura de custos de cada setor".3

Outro aspecto frequentemente negligenciado pelo modelo estático adotado pelo governo e não suficientemente esclarecido aos contribuintes é a influência das expectativas de mercado na formação de preços. Em um ambiente de incerteza - como o que acompanha a implementação de uma reforma tributária de grande porte -, os agentes econômicos ajustam seus comportamentos de maneira preventiva.

Com isto, empresas podem optar por aumentar preços de forma antecipada, temendo custos futuros mais elevados ou dificuldades na utilização de créditos tributários. Consumidores, por sua vez, podem reduzir gastos diante da percepção de um encarecimento generalizado, desencadeando uma contração na demanda que amplifica os impactos negativos da tributação. Essa retroalimentação entre expectativas e comportamento econômico é ignorada nas projeções oficiais, que partem de uma visão simplista onde os preços se ajustam instantaneamente e sem atrito às mudanças tributárias.

Por fim, é crucial considerar as disparidades setoriais e regionais que caracterizam a economia brasileira. Os setores com cadeias produtivas longas e complexas, como a indústria manufatureira, enfrentam desafios distintos daqueles de setores com cadeias mais curtas, como o comércio varejista. Outrossim, empresas localizadas em regiões com menor poder de compra enfrentam barreiras adicionais ao repasse de custos, uma vez que os consumidores locais são mais sensíveis a aumentos de preço.

Essas heterogeneidades, que o modelo estático de economia desconsidera, evidenciam que a neutralidade fiscal é um ideal teórico, distante da realidade de um país marcado por profundas desigualdades econômicas e estruturais.

A reforma tributária, ao omitir-se quanto à profunda análise dos aspectos voláteis da economia, arrisca-se a agravar desigualdades em vez de eliminá-las, comprometendo os objetivos de eficiência e justiça declarados como os maiores objetivos da reforma.

Não é demais repisar que a formação de preços, longe de ser um processo mecânico, é uma interação dinâmica entre múltiplas variáveis, que a narrativa de neutralidade pela não-cumulatividade não necessariamente irá abarcar.

Equilíbrio geral e a teia circular de compra e venda: Uma visão sistêmica dos impactos tributários.

Ainda, para compreender plenamente os limites da neutralidade fiscal prometida pela reforma tributária, é imprescindível adotar uma perspectiva sistêmica, fundamentada na teoria do equilíbrio geral. Esta teoria busca compreender como os diferentes setores da economia interagem para alcançar um estado em que a oferta e a demanda se equalizam simultaneamente em todos os mercados.

Essa abordagem contrasta com visões setoriais ou isoladas, evidenciando que uma alteração em qualquer ponto do sistema - tal como a introdução de novos tributos - gerará efeitos que reverberam por toda a economia.

Nesse contexto, emerge a noção de teia circular de compra e venda, a qual descreve a interconexão entre os agentes econômicos, onde cada um atua simultaneamente como comprador e vendedor. Em uma economia estruturada dessa forma, a tributação sobre o valor agregado em cada etapa da cadeia produtiva não se limita a impactar um único agente, mas desencadeia ajustes em preços, custos e receitas ao longo de toda a rede. Um aumento na carga tributária em um elo da cadeia pode reduzir a receita líquida de outros elos, especialmente se os preços não puderem ser integralmente repassados devido a restrições de demanda ou concorrência.

Esta dinâmica precisa ser analisada com maior publicidade e transparência em um sistema como o proposto pela EC 132/25, onde a tributação incide em cada etapa do processo produtivo. Embora o mecanismo de crédito tributário busque mitigar a cumulatividade, ele não elimina os efeitos indiretos da tributação sobre o equilíbrio geral. Assim, a neutralidade fiscal, que pressupõe a ausência de distorções econômicas, não guarda total compatibilidade com a intrincada realidade da teia circular de compra e venda.

O mercado intermediário (B2B) e o peso do valor agregado

À vista de todo o exposto, volta-se o olhar para as empresas que operam no mercado intermediário (Middle Market), ou B2B (business-to-business), as quais provavelmente enfrentarão desafios agudos no contexto da reforma tributária. Essas empresas, que atuam como elos intermediários na cadeia produtiva, estão sujeitas a pressões tanto de fornecedores quanto de compradores, colocando-as em uma posição de vulnerabilidade estrutural.

Sob o novo regime tributário, o valor agregado em cada etapa de produção é tributado, e a lógica da não cumulatividade pressupõe que esse custo será repassado ao longo da cadeia até o consumidor final. Contudo, a realidade do mercado não valida a suposição.

A multiplicidade de empresas neste setor transforma a absorção do imposto em um elemento concorrencial. Deste modo, empresas incapazes de repassar integralmente o tributo - seja por resistência dos compradores ou por estratégias de precificação para manter participação de mercado - veem suas margens de lucro comprimidas. Essa dinâmica pode ser agravada pela circunstância de que a demanda no mercado intermediário não é ilimitada ou insensível a preços. Como os compradores situados em outras etapas da cadeia também operam sob restrições orçamentárias e pressões concorrenciais, a compra de insumos ou serviços não ocorre a qualquer preço, mas conforme a percepção de valor e as condições de mercado.

Esse cenário reforça que a neutralidade fiscal, não se concretizará por vias simples e automáticas. Especificidades operacionais e concorrenciais do mercado intermediário acabarão por constituir eixos de revisão do novo regime, sob risco de sério comprometimento social e impacto no crescimento do país.

Conclusão.

A reforma tributária da EC 132/25, embora seja inequívoco avanço no sentido de simplificação do sistema tributário brasileiro, falha em apresentar o instrumento neutralidade fiscal como mecanismo de ampla e irrestrita eficiência.

Isto porque, o crédito tributário, apresentado como um instrumento de equilíbrio, não é suficiente para garantir a ausência de distorções econômicas, funcionando apenas como um mecanismo parcial de mitigação da bitributação, condicionado a variáveis operacionais e burocráticas.

A formação de preços não ocorre em um espelho meramente teórico, mas é moldada por forças dinâmicas como demanda, concorrência, expectativas de mercado e disparidades regionais, que limitam o repasse do tributo e impõem custos desiguais aos agentes de mercado.

A análise sob a ótica do equilíbrio geral e da teia circular de compra e venda demonstra que os impactos da tributação reverberam por toda a economia, gerando efeitos em cascata que comprometem a receita líquida de diversos setores. No mercado intermediário (B2B), a pressão concorrencial e a tributação sobre o valor agregado exacerbam essas distorções, transformando o imposto em si considerado em um fator de desequilíbrio econômico. Ante tais assertivas, destaca-se que a neutralidade fiscal, vista sob as condições atuais é um estado ideal, impondo-se políticas complementares que mitiguem os impactos desproporcionais sobre os diferentes setores da economia.

Somente por meio de uma abordagem crítica, que reconheça as limitações estruturais do sistema proposto, será possível construir um modelo tributário verdadeiramente equitativo, capaz de promover o desenvolvimento econômico sem sacrificar a competitividade ou o bem-estar social.

De outro lado, os contribuintes, imediatamente, precisam reconstruir seus preços, considerando não apenas a nova formulação de carga tributária, mas os efeitos disto em seus reais cenários mercadológicos, enfatizando a possível postura de seus pares comerciais.

_______

1 https://www.contabeis.com.br/noticias/73274/como-a-reforma-tributaria-vai-transformar-a-formacao-de-precos-no-brasil/

2 VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia mundial. Tradução de André Telles. São Paulo: Autonomia Literária, 2016.

3 https://fenacon.org.br/reforma-tributaria/ibs-e-cbs-na-reforma-desafios-para-a-precificacao-dos-servicos/

Roberta Vieira Gemente de Carvalho

Roberta Vieira Gemente de Carvalho

Mestre em Direito Constitucional e Processo Tributário pela PUC-SP, Pós-Graduada em Direito Tributário pela FADITU e MBA em Gestão de Tributos pela Trevisan Escola de Negócios. Advogada

Maria Danielle Rezende de Toledo

Maria Danielle Rezende de Toledo

Mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC SP. Pós-Graduada em Gestão de Tributos pela UNICAMP. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Jurisprudencial PUC/SP. Advogada.

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