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Antígona entre o Direito Natural e o constitucionalismo garantista

A tragédia clássica inspira reflexão sobre os limites da lei e a preservação da justiça.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Atualizado em 30 de outubro de 2025 11:29

A tragédia Antígona, imortalizada por Sófocles, encena um dilema perene do Direito: o confronto entre a Justiça ética e a lei do Estado. Na peça, Antígona desafia o édito real que proibia o sepultamento de seu irmão, invocando deveres morais e religiosos superiores às ordens do rei Creonte. Esse choque dramático entre a lei humana, entendida como aquela positiva e promulgada pelo governante, e a lei divina ou natural, que compreende os valores fundamentais de piedade e Justiça, fez de Antígona, ao longo dos séculos, um símbolo da resistência contra leis injustas. Filósofos como Hegel interpretaram essa tensão como a oposição entre a autoridade do Estado e os vínculos da família e da religião, ilustrando a dificuldade em conciliar o poder do soberano com os imperativos da consciência individual.

Nesse mesmo horizonte reflexivo, Luigi Ferrajoli, renomado jurista italiano, analisa que Justiça e Certeza, representadas por Antígona e Creonte, são valores estruturantes do direito que frequentemente colidem. A desobediência de Antígona, nesse contexto, põe em relevo uma pergunta que ressoa com força nas ciências jurídicas contemporâneas: é legítimo cumprir toda norma vigente mesmo quando ela atenta contra os princípios mais elementares de humanidade e equidade?

Ferrajoli argumenta que o constitucionalismo democrático moderno surgiu precisamente para responder a esse tipo de indagação. As Constituições rígidas do pós-guerra incorporaram princípios de Justiça material aos ordenamentos jurídicos, de forma a limitar a atuação do que se poderia chamar de Creonte contemporâneo, isto é, impondo à legalidade ordinária os valores superiores consagrados por vozes semelhantes à de Antígona. Em termos práticos, os textos constitucionais passaram a estabelecer balizas éticas e garantias de direitos fundamentais que nenhuma lei ou autoridade pode violar legitimamente.

Assim, tentou-se reconciliar a previsibilidade e a segurança do direito com sua aderência aos direitos humanos e a critérios racionais de bem comum. No modelo ideal de Estado de Direito, a ordem jurídica deixa de ser expressão do puro comando da autoridade para tornar-se um sistema legitimado pela racionalidade e pela Justiça. O poder punitivo passa a ser submetido a normas superiores e ao controle rigoroso de sua legitimidade. Essa tentativa de harmonizar a força da lei com os princípios éticos e jurídicos universais constitui o núcleo do pensamento garantista.

O garantismo penal, sistematizado por Luigi Ferrajoli, é uma corrente que coloca no centro da teoria e da prática penal a proteção intransigente dos direitos e garantias fundamentais. Em sua obra Direito e Razão, publicada em 1989, Ferrajoli propõe um modelo de Direito Penal mínimo, construído com base na Constituição e guiado pela lógica da racionalidade jurídica. A proposta surge como reação a experiências históricas nas quais a legalidade formal foi utilizada como escudo para práticas autoritárias, semelhantes àquelas encenadas por Creonte na tragédia de Sófocles.

Diante dessas distorções, o garantismo se ergue como barreira crítica contra o arbítrio estatal. Ferrajoli estrutura esse paradigma em três dimensões interligadas: como modelo normativo de Estado de Direito fundado em constituições rígidas e na limitação objetiva do poder de punir; como teoria jurídica que diferencia a validade formal de uma norma de sua efetividade prática e de sua consonância com os direitos fundamentais; e como filosofia política que defende que o Direito, sobretudo o penal, deve justificar racionalmente suas decisões, sem se submeter a dogmas morais religiosos, mas sim à crítica externa pautada pela legitimidade democrática e pela proteção da dignidade humana. Em síntese, no universo do garantismo, a legitimidade da norma jurídica não advém da vontade soberana do legislador, mas de sua conformidade com um patamar ético e racional superior.

No plano concreto, Ferrajoli sintetiza o garantismo penal em dez axiomas ou princípios fundamentais que estruturam um sistema punitivo vinculado a garantias. São eles, em essência, os seguintes: não há pena sem crime; não há crime sem lei; não há lei penal sem necessidade; não há necessidade de lei penal sem lesão a bem jurídico; não há lesão a bem jurídico sem ação; não há ação sem culpa; não há culpa sem processo; não há processo sem acusação; não há acusação sem prova; e não há prova sem defesa. Esses dez preceitos funcionam como cláusulas pétreas de um Direito Penal civilizado, condicionando a validade e a aplicação das penas a uma série de requisitos garantidores. Notemos como eles cobrem, de maneira abrangente, tanto os pressupostos materiais do ius puniendi quanto os procedimentos formais da persecução penal, vinculando o exercício do poder punitivo a uma legalidade estrita e a um devido processo justo.

Os primeiros princípios enfatizam a legalidade e a limitação material do Direito Penal. "Não há pena sem crime, não há crime sem lei" consagra o princípio da reserva legal, isto é, nenhuma conduta pode ser punida se não estiver definida em lei anterior ao fato. Esse mandamento - inscrito, por exemplo, no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988 (nullum crimen, nulla poena sine lege) - garante previsibilidade e segurança jurídica, impedindo que governantes de turno criminalizem atos conforme conveniências momentâneas ou persigam inimigos políticos por meio de leis penais retroativas ou vagamente definidas.

Em seguida, "não há lei penal sem necessidade, nem necessidade sem ofensa a bem jurídico" explicita o princípio da intervenção mínima (ou princípio da lesividade) no Direito Penal. Significa que o legislador apenas deve criar tipos penais quando houver necessidade real de tutela de um bem jurídico fundamental e quando a conduta proibida represente uma lesão significativa a esse bem. Em outras palavras, o poder punitivo deve ser ultima ratio: somente se recorre à pena se for indispensável para proteger valores essenciais da vida em sociedade (como a vida, a integridade física, a liberdade, o patrimônio etc.). Tudo que for ofensa irrelevante ou mero dissabor, por essa lógica, escapa à seara penal, sob pena de inflacionarmos o sistema com punições desproporcionais e violarmos a liberdade individual sem justificativa legítima. Esse núcleo garantista assegura, pois, um Direito Penal moderado e racional, em contraste com abordagens autoritárias que criminalizam em excesso e banalizam a coerção estatal.

Os axiomas posteriores de Ferrajoli reforçam as garantias processuais e de defesa no âmbito penal. "Não há ação sem culpa" consagra o princípio da culpabilidade, repelindo a responsabilidade objetiva - ninguém deve ser punido por resultado fortuito ou pela simples causalidade física, mas apenas por conduta dolosa ou culposa pessoalmente imputável. "Não há culpa sem processo" e "não há processo sem acusação" estabelecem que a aplicação da pena exige um processo judicial regular, de caráter acusatório, no qual haja uma acusação formal e separação entre as funções de acusar e julgar.

Rechaça-se, assim, o processo inquisitorial em que o julgador é o próprio acusador e onde o acusado não tem possibilidade de se defender adequadamente. Por fim, "não há acusação sem prova, nem prova sem defesa" realça dois corolários centrais: o ônus da prova cabe a quem acusa (e deve haver provas lícitas e robustas para qualquer condenação), ao mesmo tempo em que se garante ao réu o direito de contraditá-las e apresentar defesa plena antes do veredicto. Esse conjunto final de princípios assegura o devido processo legal, a presunção de inocência e a ampla defesa - valores consagrados na maioria das democracias contemporâneas (no Brasil, por exemplo, os incisos LIV, LV e LVII do art. 5º da CF consagram exatamente essas garantias). Sob a ótica garantista, um julgamento penal legítimo é aquele que respeita rigorosamente essas etapas e direitos: não basta que haja uma lei anterior definindo o crime, é preciso também que o procedimento para apurar a responsabilidade seja justo, público, contraditório e conduzido por autoridades imparciais. Em suma, nenhuma pena será justa se imposta sem respeito ao processo justo; forma e substância andam juntas na realização da Justiça penal.

Voltemos agora o olhar para a história de Antígona à luz desses princípios. O decreto de Creonte - que proibia prestar os ritos fúnebres a Polinices, considerado traidor - representa, sob uma perspectiva garantista, tudo aquilo que o Direito Penal não deve ser. Primeiro, tratou-se de uma ordem emanada unilateralmente pelo governante, sem base em lei previamente debatida ou aprovada por qualquer processo legislativo regular. A punição (pena de morte) ameaçada contra quem violasse o édito carecia de fundamento de necessidade ou lesividade: que bem jurídico protegido pelo Estado seria efetivamente lesado pelo ato de sepultar um morto? Ao contrário, negar sepultura afrontava princípios de humanidade e religiosidade profundamente arraigados na cultura - ou seja, a norma real colidia com os valores éticos da comunidade, em vez de protegê-los.

Além disso, ao descobrir a desobediência de Antígona, Creonte não lhe concede nenhuma oportunidade real de defesa ou julgamento imparcial; ele mesmo age  como  acusador, legislador e juiz, decretando  prontamente a condenação da sobrinha por desafiar sua autoridade. Temos, portanto, na narrativa trágica, um exemplo arquetípico de arbítrio: uma pena gravíssima cominada sem crime genuíno (do ponto de vista da lesão a terceiros), derivada de uma "lei" pessoal do tirano, aplicada sem processo e sem contraditório. Antígona, ao reivindicar um dever superior - "as leis não escritas dos deuses", que impõem a piedade familiar e o respeito aos mortos - está, em termos modernos, apelando a princípios suprapositivos, aquilo que hoje identificaríamos como os Direitos Humanos básicos que nenhuma autoridade deveria transgredir. Sua voz insurgente ante a lei injusta antecipa a noção de que há limites éticos inderrogáveis mesmo para o poder público, limites esses que o garantismo busca positivar no ordenamento.

O paralelo entre a heroína tebana e o cidadão contemporâneo perante o Estado é elucidativo. Se Antígona pode ser vista como uma das primeiras figuras da consciência jurídica reivindicando direitos fundamentais contra a tirania, o garantismo penal cumpre o papel de trazer a consciência de Antígona para dentro da própria lei. Os direitos e garantias fundamentais previstos nas Constituições modernas - direito à vida, à dignidade, à defesa, à liberdade de crença, entre outros - funcionam como essas "leis não escritas" (agora escritas na Carta Magna) que delimitam o alcance da legislação ordinária e da atuação dos governantes. Por exemplo, o respeito à dignidade da pessoa humana impediria nos dias de hoje uma pena cruel ou tratamento degradante como o pretendido por Creonte, assim como a liberdade religiosa e cultural salvaguardaria o direito de realizar ritos fúnebres conforme a consciência de cada um. Nenhum decreto estatal poderia validamente proibir um sepultamento movido por amor fraterno, pois tal proibição violaria a própria base moral e constitucional do Direito.

Isso mostra como o constitucionalismo garantista internaliza o apelo de Antígona: o imperativo de que a lei positiva jamais se divorcie dos valores de humanidade. Em vez de deixar o indivíduo na trágica posição de escolher entre obedecer à lei injusta ou seguir a Justiça contra a lei, o ordenamento garantista busca evitar que leis manifestamente injustas cheguem a existir ou prevalecer. A meta é que Creonte não possa legislar contra Antígona, ou seja, que o Estado de Direito impeça o surgimento de normas tão contrárias à ética e aos direitos fundamentais a ponto de convocar a desobediência civil.

É importante sublinhar que o garantismo penal não equivale a leniência com o crime ou impunidade, como alguns críticos desavisados poderiam pensar. Pelo contrário, trata-se de dotar o sistema punitivo de máxima legitimidade e eficácia racional, de modo que somente os verdadeiros culpados sejam punidos, e o sejam na medida estritamente necessária e justa. Ferrajoli enfatiza a defesa firme dos direitos fundamentais dos indivíduos frente ao poder estatal, precisamente para evitar abusos e erros judiciários. Um processo penal garantista, ao assegurar ampla defesa e exigência de prova cabal, não é inimigo da segurança pública - ele visa, isto sim, prevenir condenações indevidas de inocentes e assegurar que nenhuma sanção seja aplicada de forma arbitrária ou desproporcional.

A experiência histórica demonstra que sistemas penais carentes de garantias produzem muita violência institucional sem reduzir verdadeiramente a criminalidade; já um sistema garantista busca equilibrar a necessidade de punir comportamentos lesivos com a obrigação de respeitar a dignidade e os direitos do acusado, alcançando assim uma Justiça efetiva e confiável. Em outras palavras, o garantismo almeja um Direito Penal racional, em que a punição legítima do culpado ande de mãos dadas com a proteção do inocente e com o tratamento humano de todos os envolvidos. Essa perspectiva, que Ferrajoli também denomina direito penal do cidadão, contrapõe-se tanto ao punitivismo cego (que arrisca castigar sem critério nem equidade) quanto ao abolicionismo irrestrito; trata-se de um caminho do meio, apoiado na legalidade, na ciência e nos direitos, para fazer valer a Justiça em sua máxima potência, porém domada pelo respeito à pessoa.

Apesar dos avanços institucionais desde a era de Antígona, Ferrajoli adverte que novas crises ameaçam o equilíbrio entre a certeza do direito e a Justiça que as Constituições buscaram forjar. Vivemos, segundo ele, uma dupla derrota contemporânea de Creonte e Antígona: de um lado, a certeza jurídica vem sendo minada por uma inflação legislativa e por uma proliferação caótica de normas, gerando um cenário em que até o próprio legislador se perde - leis contraditórias, lacunas e instabilidade normativa enfraquecem a autoridade do direito (um Creonte confuso diante de um turbilhão normativo).

De outro lado, assiste-se à erosão de muitos princípios de Justiça conquistados: a Constituição e os direitos fundamentais muitas vezes são postos de lado no debate político e nas políticas públicas, especialmente frente a pressões econômicas globais e ao clamor populista punitivo, resultando no enfraquecimento de garantias cidadãs e na redução de proteções sociais (uma Antígona afastada do centro das decisões). Em síntese, há um risco de regressão, em que nem a legalidade estrita (certeza) nem a Justiça material são plenamente realizadas nos sistemas atuais - seja pela produção desordenada de leis, seja pela flexibilização indevida de direitos sob pretextos de emergência ou eficiência. Essa análise ferrajoliana mostra que o projeto garantista está sempre em construção e é constantemente desafiado pelas circunstâncias históricas.

Oual seria, então, a resposta para essa crise? De acordo com Ferrajoli, é preciso aprofundar ainda mais o constitucionalismo garantista, expandindo seus efeitos a todas as esferas em que o poder possa ameaçar os direitos. Ele propõe, por exemplo, o desenvolvimento de um "constitucionalismo do direito privado" que submeta até mesmo os poderes econômicos e os mercados globais a limites jurídicos em prol dos direitos humanos.

Em termos gerais, trata-se de renovar o compromisso de subordinar todos os exercícios de poder - seja do Estado, seja de atores privados - a um arcabouço rigoroso de freios e contrapesos legais, de maneira a assegurar "a rígida sujeição às leis como garantia dos direitos e bens vitais de todos". No contexto penal, isso significa reforçar cada vez mais as instituições que atuam como guardiãs das garantias (por exemplo, a independência judicial, o Ministério Público imparcial, a defesa técnica efetiva, o juiz de garantias etc.) e repudiar atalhos que prometem eficiência à custa de direitos. Em última análise, o equilíbrio entre Antígona e Creonte demanda vigilância constante: sempre que a sede de ordem tentar sacrificar a Justiça, ou quando em nome de pretensa Justiça se quiser corroer a legalidade, cabe ao jurista garantista lembrar dos pilares constitucionais e recolocar nos eixos o sistema.

Ao revisitar criticamente o mito de Antígona, encontramos uma poderosa metáfora para os desafios do Direito contemporâneo. Antígona e o garantismo penal convergem na afirmação de que a legitimidade de uma ordem jurídica depende de sua consonância com valores éticos superiores. A tragédia grega termina em luto e ruína porque Creonte, obcecado pela autoridade da lei positiva divorciada da compaixão, aprende tarde demais que uma Justiça divorciada da humanidade implode a si mesma. No mundo atual, não precisamos chegar a tal catástrofe se soubermos internalizar a voz de Antígona dentro das próprias leis.

O garantismo penal é, em essência, esse esforço de reconciliação: ao mesmo tempo em que reafirma a força da lei (ningúem acima do direito, regras claras e estáveis), ele exige que essa lei seja justa e racional, limitada pelos direitos fundamentais e pelos fatos provados. É um convite para que Creonte e Antígona caminhem juntos - a lei provendo ordem e segurança, mas sempre temperada pela Justiça e pela humanidade, de modo que nunca mais uma irmã tenha de escolher entre violar a lei ou violar sua consciência.

Em conclusão, um Direito Penal garantista realiza, na medida do possível, a união entre a autoridade e a Justiça. Ele reflete a maturidade de um sistema jurídico que aprendeu com tragédias passadas e se recusa a repetir os erros de criminalizar sem necessidade, punir sem prova ou legislar sem respeito à dignidade. Para os juízes, advogados, promotores e estudantes de Direito - os operadores e pensadores do sistema jurídico -, a lição de Antígona reforça a responsabilidade de zelar para que a balança entre o império da lei e a Justiça dos valores nunca penda de forma unilateral.

O garantismo de Ferrajoli oferece um horizonte teórico e prático para essa tarefa, lembrando-nos, com rigor filosófico-jurídico, que a verdadeira força do Direito reside tanto em sua certeza quanto em sua retidão. Somente sob a vigília incansável das garantias é que poderemos ter um Direito Penal simultaneamente eficaz contra o crime e fiel aos direitos humanos - um Direito Penal que não precise de Antígonas trágicas, porque incorporou em si mesmo o respeito pelos limites éticos que nos fazem civilização.

Mário Goulart Maia

Mário Goulart Maia

Advogado, Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, autor de livros, parecista, consultor jurídico, palestrante e sócio do Kohl & Maia Advogados.

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