Celeuma em torno do estorno do ICMS nas operações de venda de combustíveis a outro Estado
O texto analisa o estorno de créditos de ICMS e a interpretação do STF sobre a não incidência, destacando o favorecimento aos Estados nas operações interestaduais.
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Atualizado em 3 de novembro de 2025 13:22
Os estados pleiteiam o estorno de créditos do ICMS relativas às operações de saída sem pagamento do imposto, ao abrigo do art. 155, § 2º, inciso II da CF que assim prescreve:
"§ 2º O imposto previsto no inciso II (ICMS) atenderá ao seguinte:
[...]
II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação
[...]
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores"
A não incidência mencionada no texto constitucional refere-se à não incidência expressa, e não à não incidência por ausência do fato gerador da obrigação tributária.
Vale dizer, a não incidência a que alude o preceito constitucional surte idêntico efeito de uma isenção que é uma norma de não incidência juridicamente qualificada.
A redação conferida à letra b do inciso II do § 2º do art. 155 da CF é defeituosa, pois determina o estorno de créditos de todas as operações antecedentes, e não apenas da operação imediatamente anterior.
Quanto mais próximo do ciclo de comercialização de mercadoria for concedida a isenção, maior será o montante do imposto a ser estornado.
Assim, estaremos diante de aumento da carga tributária por via de isenção.
Mas examinemos a norma do § 2º inciso II letra b da CF à luz da jurisprudência do STF.
Interpretando esse preceito constitucional, o STF firmou a tese de que a não incidência não foi estabelecida para favorecer o contribuinte, mas para favorecer o estado de destino, ou seja, o estado consumidor, conforme a ementa abaixo transcrita.
"EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESSADUAIS. IMUNIDADE DO ARTE. 155, § 2º, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidentes, desde a remessa até o consumo. Consequente descabimento das teses de imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que uma empresa consumidora de produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido.
(RE 198088, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 17.05.2000, DJ 05-09-2003).
No entender do STF não se trata de imunidade objetiva para favorecer o contribuinte, mas tão somente de hipótese de não incidência expressa para propiciar margem de arrecadação maior ao Estado de destino.
Entretanto, o STF sob a égide de repercussão geral (Tema 1.258) está julgando pelo plenário virtual sendo que quatro votos já foram proferidos sendo três deles favorável à tese do estorno dos créditos das operações anteriores como se cuidasse a norma objeto de interpretação de uma hipótese de não incidência para alcançar os mesmos efeitos de uma isenção.
O único voto favorável ao contribuinte foi proferido pelo ministro Dias Toffoli para quem o art. 155, parágrafo 2º, inciso X, letra b da CF não permite a anulação de créditos do ICMS cobrado nas operações internas.
O julgamento foi adiado em razão do pedido de vista do ministro André Mendonça.
Infelizmente a votação está caminhando para favorecer os Estados, contrariando a sólida jurisprudência já firmada pelo STF de longa data no sentido de que a norma de não incidência não objetivou favorecer o contribuinte, mas teve por escopo apenas favorecer o Estado de destino.
Esclareça-se que a norma de não incidência do ICMS, no caso, está prevista na letra b do inciso X do § 2º do art. 155 da CF, in verbis:
[...]
"X - não incidirá:
[...]
b) sobre operações que destinem a outros estado petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica".
Esse preceito constitucional foi regulamentado pelo inciso III do art. 3º da LC 87/1996 nos seguintes termos:
Art. 3º O imposto não incide sobre:
[...]
III - operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização;"
O preceito normativo retrotranscrito conflita com o decidido pelo STF, por maioria de votos, sob a égide de repercussão geral, no sentido de que cabe ao estado destinatário o ICMS decorrente de operação interestadual de fornecimento de energia elétrica a consumidor final, para emprego em processo de industrialização (RE 748.543-RS, relator ministro Marco Aurélio e relator para acórdão, ministro Alexandre de Moraes, DJe de 10/9/20).
Patente o conflito dessa decisão com o disposto no inciso III do art. 3º da LC 87/1996.
Tudo indica que o STF confundiu "destinado a consumo" com "destinado a consumidor final" que é coisa bem diferente. Nesta última hipótese finaliza-se a etapa de circulação da mercadoria, ao passo que na destinação para consumo no processo de industrialização, o valor da energia elétrica consumida incorpora-se no preço do produto industrializado que será tributado, desde a fonte produtora até final destinação a consumidor final.
Tudo que foi exposto em relação à energia elétrica aplica-se, igualmente, a petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados.
Para finalizar, a não incidência prevista na letra b do inciso X do § 2º do art. 155 da CF nada tem a ver com a não incidência da letra b do inciso II do § 2º do art. 155 da CF.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.


