Impeachment de ministro do STF e separação de poderes
Processo contra magistrados superiores exige que o Legislativo atue como juiz final, enquanto o Judiciário verifica apenas a conformidade legal.
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Atualizado em 3 de novembro de 2025 13:27
O título, em letras garrafais, da notícia publicada no Estadão, a pág. A14, em 27/9/25, dá conta de afirmação que teria sido feita pelo ministro aposentado do STF, Luis Roberto Barroso, de que "qualquer processo de impeachment é passível de controle, inclusive os que atingem integrantes da Corte". Informa a notícia que "Para Barroso, além dos votos, o impeachment precisa ter uma razão fundamentada e que processos de crime de responsabilidade têm tipificação constitucional, qualquer processo de impeachment é passível de controle". Com o respeito devido a Sua Excelência, entendemos necessárias algumas ponderações em torno dessa assertiva.
Em primeiro lugar, essa alegada "tipificação constitucional" não existe. Na verdade, a tipificação dos crimes de responsabilidade, que podem levar ao impeachment, é feita pela lei 1.079/50, nos incisos 1 a 5 do art. 39, sendo certo que, no tocante a determinadas autoridades superiores, entre elas os ministros do STF, a CF, no art. 52, inciso II, reserva ao Senado Federal competência privativa para os respectivos processo e julgamento.
Assim, de duas, uma: ou as jornalistas não entenderam o que o ministro disse, ou este afirmou algo inadequado do ponto vista jurídico. Parece mais provável a primeira alternativa. Seja como for, pensamos ser importante deixar clara a natureza jurídica do impeachment e seu funcionamento, na tentativa de evitar confusões em relação ao tema.
No que diz respeito ao "controle do processo de impeachment", a competência do STF pode vir a ser exercida, mas essa afirmação precisa ser bem entendida. Circunscreve-se tal controle específica e exclusivamente, à verificação de do enquadramento da acusação, em tese, em um dos tipos de crime de responsabilidade capitulados no art. 39 da lei 1.079/50, ou seja, o reconhecimento da presença de "justa causa" para o processo.
Com efeito, esse exame pelo STF, contudo, só pode ser feito em abstrato ou, na terminologia do direito processual, "in statu assertionis", cabendo-lhe, apenas e tão somente, escrutinar se os fatos que justificaram a instauração do processo se enquadram, em tese, em uma das capitulações legais e se houve demonstração, pelo Senado, de tal enquadramento ter sido feito com coerência lógico-jurídica. Não se insere na competência do STF, nessas hipóteses, proceder ao reexame das provas, sendo-lhe vedado substituir-se ao juizo de valor, "in statu veritatis", que cabe exclusivamente ao Senado quanto à idoneidade, à veracidade e à convencibilidade dos elementos probatórios dos fatos alegados. Em outras palavras, é vedado ao STF controlar o mérito da condenação nos processos de impeachment", não lhe cabendo,, portanto, adentrar na análise aprofundada das alegações nem na perquirição do poder de convencimento das provas produzidas. No processo de impeachment, o Senado é o juiz supremo da causa e sua decisão é final. E por ser o juiz supremo assiste-lhe a prerrogativa de "errar por último". Essa, a linha vermelha que o STF não pode ultrapassar, sob pena de patente violação do princípio da separação de poderes, devidamente adotado pela Constituição Federal.
Convém, ainda, fazer referência a alguns outros pontos relevantes atinentes ao tema. Recentemente, o Partido Solidariedade e a Associação dos Magistrados Brasileiros promoveram, em sequência ininterrupta, duas ADPFs 1.259 e 1.260, conexas entre si, pleiteando fossem ambas distribuídas por prevenção à ADPF 1017, a qual, no entanto, trata de matéria eleitoral, nada tendo a ver com o tema de impeachment.
No tocante a esse aspecto, é de se por em relevo o fato de que o procedimento de distribuição das mencionadas ações não se coaduna com a disciplina disposta no art. 77-B do regimento interno do STF, uma vez que, por força desta norma, no caso de ADPF, como, de resto, das demais ações de natureza constitucional, "aplica-se a regra de distribuição por prevenção quando haja coincidência total ou parcial de objetos". A Secretaria competente, ao proceder à distribuição da ADPF 1259, informou que a prevenção, no caso, decorreria da prévia distribuição da ADPF 1017 ao ministro Gilmar Mendes. Sucede, no entanto, como dito acima, que o objeto desta última consiste exclusivamente em matéria de natureza eleitoral, não havendo nenhuma coincidência com os objetos das ADPF's, que dizem respeito exclusivamente à matéria de impeachment de ministro do STF.
Não fossem a ilibada reputação dos autores das ações, a honorabilidade e notável saber jurídico de seus patronos, a cumulação, numa mesma petição inicial, de matérias tão desconexas, poderia até suscitar suspeita de emprego de um artifício com a finalidade de escolha do juíz da causa. Assim sendo, com o propósito de evitar-se possível arguição de nulidade à frente, parece irrecusável a necessidade de redistribuição dos processos por sorteio.
Há, ainda, outro ponto relevante a abordar no que tange às alegações feitas nas ADPFs, no sentido de que apenas o procurador-geral da República detém legitimidade para oferecer denúncia em processo de impeachment contra ministro do STF, seja de ofício ou a partir de notitia criminis por qualquer cidadão. O art. 41 da lei 1.079/1950 enseja o controle social do exercício do poder, seja este exercido por ocupantes de cargos eletivos, seja por ocupantes de cargos não eletivos, como nos casos da Magistratura e do Ministério Público, sendo desnecessário conhecimento técnico-jurídico para a tarefa. Cabe lembrar, além disso, que o próprio procurador-geral da República pode ser denunciado por crimes de responsabilidade e, em consequência, sofrer o impeachment.
O controle do exercício do poder pela cidadania numa república constitui exercício legítimo dos direitos políticos constitucionalmente assegurados. Esse cenário faz parte da tradição constitucional brasileira e integra sistema de freios e contrapesos assegurados, certo, contudo, que a iniciativa por parte do cidadão se submete ao juízo de admissibilidade político-jurídico por parte do Senado, a cujo presidente cabe negar a admissibilidade da denúncia, caso tenha a acusação por infundada, de modo a evitar sua conversão em processo de impeachment.
Este artigo não poderia ser concluído sem que se fizesse referência ao excelente trabalho da Advocacia do Senado Federal, consubstanciado nas Informações prestadas nos autos por determinação do atual ministro relator, e que respondem adequadamente às alegações deduzidas nas ADPF's, A notável manifestação dos advogados Victor Galvão Fraga (advogado do Senado), Mateus Lima (coordenador) e Gabrielle Tatith Pereira (advogada-geral do Senado Federal) é fator que honra a advocacia brasileira. Salvo melhor juízo, configura verdadeira aula magna, em que se analisam, com profundidade e percuciência, além dos pontos acima referidos, todos os demais suscitados nas ADPF's em causa, de modo a não deixar sombra de dúvida em relação a nenhum deles.
Lionel Zaclis
Advogado do escritório Azevedo Sette Advogados.



