Para onde vai a colegialidade? Cada voto é relevante - O julgador tem o dever de escutar os demais magistrados
A importância do diálogo entre magistrados nos julgamentos colegiados garante decisões mais justas, refletidas e fiéis à do procedimento em colegiado.
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Atualizado às 14:08
Sabe-se que a principal vantagem dos julgamentos colegiados reside, fundamentalmente, na possibilidade de um dos seus integrantes convencer o outro sobre qual seria a melhor solução no caso concreto. Ou ainda, de todos perceberem aliviados que têm a mesma opinião, e votarem com mais segurança. Isto só ocorre, todavia, se houver discussões e troca de ideias. É conveniente que haja um período de discussões a respeito do caso antes que cada um dos julgadores manifeste seu voto. Se isso não ocorrer, é pelo menos desejável que cada um dos magistrados votantes ouça os votos dos demais.1
Tribunais usualmente adotam dois métodos para decidir: um, per curiam, em que os julgadores participam de sessões secretas, normalmente não há voto vencido e, afinal, proclama-se o julgamento consubstanciado numa decisão única em que não se sabe quem votou em qual sentido. Outro, per seriatim, em que as sessões são públicas e cada julgador profere seu voto de maneira separada, aferindo-se quem ganhou ou perdeu em função do critério da maioria. Neste último sistema, usualmente há declaração de votos vencidos e todo mundo sabe em que sentido votou cada um dos magistrados.
Independentemente do método que o tribunal adote para decidir - per curiam ou seriatim - nada impede que haja diálogo entre os membros do colegiado.2 É saudável, desejável, possível. Isso acontece em sistemas que não são puros, como, por exemplo, ocorre na Suprema Corte dos Estados Unidos, que adotam um seriatim mitigado: apesar de cada magistrado redigir seu voto, antes que isso aconteça, há várias reuniões em que acontecem debates entre os julgadores, tudo isso com o objetivo de que se chegue à unanimidade. Se isso não ocorrer, parte-se para a votação. Mas... num ambiente em que um já terá sabido como o outro vai votar e já terá ouvido, e sopesado, os argumentos que pareceram mais corretos aos demais julgadores.
Não se trata, portanto, de uma simples "votação".
Recente decisão do STJ (REsp 1.815.664-SP, relator ministro João Otávio de Noronha, j. de 21 a 27/10/25) analisou a existência de nulidade quando ausente o 5º voto no caso de julgamento estendido (art. 942 do CPC), entendendo que não haveria qualquer mácula, já que estaria presente uma "maioria irreversível" de 3 a 1, in verbis: "Com o voto do quarto desembargador convocado, formou-se maioria irreversível de 3 a 1 sobre o quantum, tornando desnecessária a convocação de um quinto julgador, pois seu voto não teria o condão de alterar o resultado."
Maioria irreversível? Do resultado? Que resultado?
De rigor, resultado ainda não havia. Isto porque, como é sabido, antes de ser anunciado o resultado do julgamento, os magistrados podem alterar os seus votos.
Entende-se hoje em dia que decisões colegiadas tendem a ser melhores que as monocráticas. Decisões de órgãos colegiados são prestação de tutela jurídica, em tese, mais aprimorada. Afinal, julgadores de 2º grau possuem maior experiência (idade, tempo na magistratura).
Dito de outro modo, a atuação em um colegiado não se resume a "votar" sem escutar e compreender os votos anteriores e também os posteriores, pois, como se disse há pouco, nada impede que o juiz que votou por último se manifeste de forma tão densa e convincente, que chegue mesmo a fazer com que aqueles que já votaram venham a alterar os seus votos.
Se, por um lado, o julgamento per seriatim não se caracteriza por gerar uma decisão "da corte", como se o acórdão tivesse sido proferido por magistrados que pensam da mesma forma, de modo uno e coeso, por outro lado, deve haver uma interação prévia entre todos aqueles que devem votar: se essa interação não é prévia, pelo menos que durante a sessão do julgamento uns prestem atenção nos votos dos outros, justamente porque o recurso estará decidido apenas depois que for proclamado o resultado.
Só um sistema que privilegia, de maneira quase patológica, a necessidade de celeridade é que pode permitir que a decisão de um recurso seja feita pura e simplesmente através de uma "votação", dispensando-se o voto dos demais julgadores, porque não teriam o condão de mudar "o que já estava decidido", principalmente porque "nada estava decidido"!
No caso julgado pelo STJ, o entendimento foi no sentido de que: "Com o voto do quarto desembargador convocado, formou-se maioria irreversível de 3 a 1 sobre o quantum, tornando desnecessária a convocação de um quinto julgador, pois seu voto não teria o condão de alterar o resultado". (g.n.)
Não há como aplaudir o que se fez nesse caso. Primeiro, por que se ignorou o teor do § 1º do art. 941 e do § 2º do art. 942 do CPC: até a proclamação do resultado, os votos podem ser alterados. Segundo, deixou-se de lado completamente a finalidade dos julgamentos colegiados: a inteiração dos integrantes do órgão, ainda que haja discordância entre eles. Terceiro, há regra legal que exige a presença de cinco julgadores (art. 942 do CPC). Quarto, ignora-se a relevância do voto vencido.3
Se essa conduta fosse admissível, uma vez tendo votado seis ministros do STF, nos julgamentos pelo plenário, deveria haver o encerramento!...
Já na Corte Especial do STJ, com oito votos o julgamento também deveria ser finalizado. Mas não é o que acontece, e jamais se cogitou adotar tal caminho, justamente pela relevância de cada voto na construção da decisão colegiada.
O respeito a esses princípios e regras que antes mencionamos é absolutamente imprescindível. Tanto é assim que, em um caso em que um dos autores atuou no Tribunal Regional da 3ª Região, a votação no julgamento da apelação foi inicialmente de 2 a 1 pelo seu provimento. O quarto julgador acompanhou a maioria (3 a 1), sendo que, se tivesse sido seguida a diretriz do STJ, o julgamento poderia ser encerrado, já que o quinto juiz estava de licença médica.
Mas houve a suspensão do julgamento e, quando da sua continuidade, o quinto juiz acompanhou a divergência (3 a 2). A segunda julgadora, ao ouvir os argumentos então apresentados, pediu a palavra e seguiu a divergência, com a votação sendo finalizada em 2 a 3, negando-se provimento ao recurso de apelação.
Percebe-se, portanto, que o que aqui se sustenta não decorre exclusivamente do amor ao debate, mas da compreensão profunda do sentido e da finalidade que tem um julgamento colegiado, e da importância que se deve dar a cada um dos votos! Afinal, se não fosse pelos outros argumentos de ordem dogmática...todos os votos importam!
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1 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado. Revista de Processo, São Paulo, v. 19, n. 75, jul./set. 1994.
2 ARRUDA ALVIM, Teresa. Fundamentação das sentenças e dos acórdãos. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2023, item 8.3.1, pg 166 e seguintes
3 Apesar da recente (e equivocada) decisão, o tema já havia sido enfrentado pelo STJ, em outras oportunidades. Vide: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. APELAÇÃO. JULGAMENTO NÃO UNÂNIME. TÉCNICA DE AMPLIAÇÃO DO COLEGIADO. ART. 942, CAPUT, DO CPC. CONVOCAÇÃO DE NOVOS JULGADORES EM NÚMERO SUFICIENTE QUE POSSIBILITE A EVENTUAL INVERSÃO DO RESULTADO DO JULGAMENTO INICIAL. NÃO OBSERVÂNCIA. NULIDADE. 1. Caso concreto em que, presente a hipótese do art. 942 do CPC (julgamento recursal ampliado), o Tribunal de origem entendeu desnecessária a tomada de voto de um segundo julgador, ao argumento de que, com o voto do primeiro magistrado adicional, atingiu-se o suficiente placar de 3x1 (três votos a um) pelo provimento da apelação; por isso, o voto de um segundo juiz seria despiciendo, pois não teria o condão de alterar a maioria já formada, chegando-se, no máximo, a 3x2. 2. A participação de julgadores extras em número inferior ao necessário para, em tese, possibilitar inversão do julgamento inicial, como ocorrido no caso concreto, implica afronta ao art. 942 do CPC/2015 e, via de consequência, a nulidade do respectivo acórdão. Nesse sentido: REsp 1.762.236/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, DJe 15/3/2019. 3. Revela-se desinfluente o fato de que, a certa altura, já tenham sido contabilizados votos suficientes para o acolhimento ou desacolhimento do recurso, fazendo-se de rigor, ainda assim, a continuidade do julgamento, com a obrigatória tomada dos votos de todos os julgadores integrantes do Colegiado ampliado. 4. Cuidando-se de julgamento estendido de apelação, intuitiva se revela a necessidade da efetiva participação de ao menos dois novos juízes. No ponto, como explica MARCELO ABELHA, "O que se imagina que venha a acontecer na prática é que os tribunais revejam os seus órgãos fracionários mínimos com 3 membros e neles coloquem mais dois, justamente para que em casos como o presente possam, presentes à sessão, ser imediatamente convocados para prosseguir no julgamento não unânime proferido pelos três membros, evitando-se assim a marcação de nova data e, neste exemplo, com a convocação de pelo menos dois novos membros para prosseguir o julgamento" (Manual de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1304). 5. Recurso especial conhecido e provido, ao efeito de anular o acórdão recorrido e, via de consequência, determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que retome o julgamento do recurso ampliado de apelação, em harmonia com o art. 942 do CPC/2015. (REsp n. 1.631.328/MS, 1ª T., rel. Min. Sérgio Kukina, j. em 3/11/2020, DJe de 20/11/2020). No mesmo sentido: REsp n. 1.890.473/MS, 3ª T., rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 17/8/2021, DJe de 20/8/2021.
Teresa Arruda Alvim
Sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão & Lins Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
Luiz Manoel Gomes Jr.
Pós-Doutorando em Direito pela USP (FDRP). Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP. Atuou como Consultor da Organização das Nações Unidas. Relator da Comissão Especial do Ministério da Justiça para elaboração do anteprojeto da nova Lei da Ação Civil Pública (2009/2010) e como Pesquisador do CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Advogado e Parecerista.



