Pirataria no futebol: O que está em jogo no futuro dos clubes?
A pirataria gera, todos os anos, R$ 9 bilhões em perdas, desafiando marcas e a sustentável paixão pelo esporte no país.
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
Atualizado em 10 de novembro de 2025 09:39
Desde os tempos em que torcedores costuravam em casa as camisas para torcer nos clássicos, até a era dos direitos de transmissão bilionários, o futebol brasileiro sempre encontrou formas criativas de se reinventar. O Fla-Flu, o Derby Paulista, o Gre-Nal - esses confrontos históricos sobreviveram a crises econômicas, mudanças políticas e transformações sociais.
Hoje, porém, enfrentam um desafio inédito: como manter a paixão acessível em um esporte cada vez mais globalizado e comercializado? A questão da pirataria no futebol transcende julgamentos morais simplistas para revelar tensões estruturais sobre democratização do acesso, sustentabilidade econômica e o futuro de um esporte que é, ao mesmo tempo, negócio milionário e patrimônio cultural de todos os brasileiros.
Os dados disponíveis revelam a dimensão desse dilema: o mercado de produtos não licenciados relacionados ao setor esportivo brasileiro gerou perdas de R$ 9 bilhões em 2021, conforme estudo conduzido pela ÁPICE - Associação pela Indústria e Comércio Esportivo em parceria com o IPEC1. No segmento específico do futebol, o impacto alcançou R$ 2 bilhões em 2020, segundo dados do FNCP - Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade2.
Das 60 milhões de unidades de camisas vendidas em 2021, 22 milhões eram produtos não oficiais, correspondendo a 37% do mercado total3-4. Esse mercado paralelo atende aproximadamente 40 milhões de brasileiros que adquiriram ao menos um produto esportivo alternativo naquele ano, revelando uma demanda que o mercado oficial não consegue - ou não pode - atender nos preços praticados.
Um aspecto que merece análise cuidadosa é a evolução tecnológica desse mercado alternativo. As réplicas atualmente produzidas, majoritariamente importadas através de esquemas complexos de subfaturamento e classificação fiscal irregular, apresentam qualidade visual que dificulta substancialmente sua distinção dos produtos originais, resultado de investimentos em maquinário industrial e da estruturação de redes logísticas que operam através de importadores, distribuidores regionais e, crescentemente, através de marketplaces digitais e redes sociais.
Vale observar que essa dinâmica afeta as receitas de marketing - que englobam patrocínios e licenciamento -, responsáveis por aproximadamente 15% do faturamento dos 20 maiores clubes brasileiros em 2023. Esse percentual constitui um dos três pilares fundamentais do financiamento do futebol profissional, ao lado dos direitos de transmissão e das receitas de matchday (bilheteria, programas de sócio-torcedor e exploração comercial de estádios)5.
O espectro de produtos não licenciados transcende significativamente o universo das camisas, abrangendo uniformes de treino, agasalhos, acessórios diversos, material escolar, brinquedos temáticos e até produtos de higiene pessoal que utilizam as marcas dos clubes. Tal diversificação não apenas amplia o alcance do mercado paralelo, mas também cria confusão quanto à origem e autenticidade dos produtos, especialmente quando comercializados em ambientes que mesclam itens legítimos e alternativos. Cada categoria representa não apenas questões de receita, mas também desafios sobre valor das marcas, estratégias de posicionamento e relação com o consumidor.
Paralelamente, acesso não autorizado a conteúdo audiovisual apresenta números que revelam outra faceta do mesmo fenômeno. Estimativas indicam impacto anual de R$ 15,5 bilhões no segmento de TV por assinatura, com o pay-per-view esportivo deixando de faturar mais de R$ 500 milhões anuais6. A perda de arrecadação tributária decorrente dessa modalidade supera R$ 2 bilhões por ano, afetando também a capacidade de investimento público.
Os dados mostram que entre 36% e 40% dos domicílios brasileiros com acesso à banda larga consumiram conteúdo audiovisual de fontes não oficiais entre 2023 e 2024, sendo que o gênero esportivo representou 27% desse consumo alternativo. Tal comportamento reflete não apenas escolhas individuais, mas questões estruturais sobre acesso e preços dos direitos de transmissão, que historicamente constituem fonte primária de receitas para os clubes brasileiros, com participação média entre 30% e 35% do faturamento total7.
A interseção entre mercado físico e digital encontra explicação em evidências comportamentais que podem orientar políticas mais efetivas. Pesquisas acadêmicas demonstram que normas sociais e mecanismos de racionalização (moral disengagement) influenciam significativamente as escolhas de consumo, especialmente quando o ambiente social normaliza determinadas práticas.8-9.
Estudos conduzidos com jovens europeus indicam que o consumo de produtos alternativos e o acesso a conteúdo de fontes não oficiais não apenas coexistem, mas são mutuamente reforçados pela influência social. Eventos esportivos ao vivo figuram entre os conteúdos mais buscados em plataformas alternativas, sugerindo padrões comportamentais que se estendem entre diferentes modalidades10.
A tecnologia digital amplifica essas dinâmicas. Grupos organizados em aplicativos de mensagens instantâneas oferecem simultaneamente links para transmissões e produtos alternativos, estruturando ecossistemas comerciais paralelos. Influenciadores digitais, frequentemente sem consciência das implicações legais, acabam por normalizar essas práticas ao exibir produtos ou divulgar plataformas alternativas para milhões de seguidores.
O desequilíbrio competitivo imposto por essa realidade afeta toda a cadeia produtiva. Fabricantes licenciados arcam com custos substanciais de pesquisa e desenvolvimento, certificações de qualidade e conformidade regulatória, enquanto produtores do mercado paralelo operam com estrutura de custos radicalmente diferente11.
O impacto no emprego formal merece reflexão: no setor têxtil paulista, estimou-se que os mercados alternativos impediram a criação de 170 mil postos de trabalho formais, enquanto na cadeia esportiva nacional as perdas são quantificadas em "milhares de empregos"12-13.
A disparidade de preços exemplifica o desafio: enquanto produtos alternativos são comercializados por valores em torno de R$ 49,99, os oficiais oscilam entre R$ 218 e R$ 699 - uma diferença que frequentemente supera 70%. Essa dinâmica não apenas revela a questão da acessibilidade, mas também pressiona margens operacionais e sustentabilidade do modelo atual14-15.
O enfrentamento construtivo dessa realidade pode se beneficiar da articulação entre inovação tecnológica e evolução do modelo de negócios. No campo tecnológico, soluções de autenticação através de chips RFID, QR codes únicos e hologramas permitem verificação da legitimidade dos produtos. A tecnologia blockchain oferece possibilidades promissoras para registro de autenticidade.
Para a questão das transmissões, algoritmos de inteligência artificial e machine learning viabilizam a identificação de conteúdo não autorizado. Sistemas de fingerprinting detectam quando conteúdo protegido é distribuído em plataformas não licenciadas, enquanto técnicas de watermarking permitem rastrear origens de distribuição.
O arcabouço normativo brasileiro, estruturado principalmente através da lei de propriedade industrial (lei 9.279/96), da lei de direitos autorais (lei 9.610/98) e da lei Pelé (lei 9.615/98) - que confere proteção automática aos símbolos e denominações dos clubes -, oferece instrumentos jurídicos teoricamente robustos.
A lei Pelé representa avanço ao reconhecer que escudos, distintivos, marcas e denominações das entidades esportivas constituem propriedade exclusiva das agremiações. Contudo, a efetividade prática desses instrumentos encontra desafios de implementação, agravados pela limitação de recursos para fiscalização e pela natureza globalizada das operações contemporâneas.
A especialização jurisdicional apresenta-se como resposta institucional promissora. Varas especializadas em propriedade intelectual, já operantes em algumas unidades federativas, demonstram resultados superiores através da expertise técnica acumulada. A expansão desse modelo poderia representar avanço na busca por soluções equilibradas.
A normalização social dessas práticas produz efeitos que transcendem impactos econômicos imediatos, estabelecendo uma relação complexa com a propriedade intelectual que pode afetar outros setores. Quando determinados comportamentos tornam-se aceitos no contexto esportivo - ambiente de forte carga emocional e identitária -, essa aceitação pode se estender a outras esferas.
No cenário internacional, enquanto clubes europeus operam com modelos de proteção rigorosa de propriedade intelectual e preços elevados, as agremiações brasileiras enfrentam o desafio adicional de operar em contexto socioeconômico distinto. Tal realidade demanda soluções criativas e adaptadas à nossa realidade.
O caminho construtivo requer abordagem integrada que reconheça a complementaridade entre diferentes aspectos do fenômeno. A conscientização surge como elemento importante, estabelecendo diálogo sobre as conexões entre modelos de consumo e sustentabilidade do esporte nacional.
O desenvolvimento de modelos de negócio inovadores pode fazer diferença significativa. Programas de produtos populares com preços acessíveis, sistemas de fidelização que ofereçam experiências diferenciadas, e estratégias de precificação adaptadas à realidade brasileira podem criar alternativas viáveis.
A articulação de um diálogo nacional sobre acessibilidade no esporte, reunindo clubes, federações, fabricantes, broadcasters, autoridades públicas e representantes de torcedores, permitiria desenvolvimento de soluções criativas. Tal iniciativa viabilizaria estratégias que equilibrem sustentabilidade e democratização.
O fenômeno do mercado paralelo no futebol brasileiro, portanto, não é apenas questão jurídica ou econômica - é um desafio à nossa capacidade histórica de adaptação. Em suas múltiplas manifestações, convoca o mesmo espírito criativo que transformou o futebol em patrimônio nacional.
O enfrentamento dessa realidade requer reconhecimento de sua complexidade e busca por soluções equilibradas. Os desafios apresentados demandam respostas criativas e adaptadas do sistema de Justiça, que considerem tanto aspectos legais quanto sociais.
É fundamental que magistrados, promotores, advogados e acadêmicos compreendam que estão diante de mais um momento de transformação na rica história do nosso futebol. A experiência de varas especializadas já aponta caminhos promissores, demonstrando que expertise técnica aliada à sensibilidade social pode gerar resultados equilibrados.
O futuro dos nossos clássicos - esses monumentos vivos da cultura brasileira - depende da capacidade de honrar o passado enquanto constrói o amanhã. Assim como gerações anteriores encontraram formas de manter viva a chama do futebol através de crises e transformações, cabe a esta geração descobrir como preservar a paixão em tempos de globalização e digitalização.
O momento é de transformação, não de ruptura. Com a mesma inventividade que sempre caracterizou o futebol brasileiro - das camisas costuradas em casa aos estádios inteligentes -, é possível escrever um novo capítulo que preserve tanto a sustentabilidade dos clubes quanto o direito sagrado de cada brasileiro torcer, vibrar e se conectar com as cores do coração. Afinal, se nossos clássicos sobreviveram a tantas tempestades, certamente encontrarão seu caminho através desta.
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1 ESTADÃO. Falsificações de camisas de futebol causam prejuízo bilionário e desafiam times e marcas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 set. 2022. Disponível em: https://www.estadao.com.br/esportes/futebol/falsificacoes-de-camisas-de-futebol-causam-prejuizo-bilionario-e-desafiam-times-e-marcas/. Acesso em: 17 out. 2025.
2 BRASIL, Filipe. Empresas esportivas perderam R$ 9 bilhões por causa de pirataria em 2021, diz pesquisa. CNN Brasil, 30 abr. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/empresas-esportivas-perderam-r-9-bilhoes-por-causa-de-pirataria-em-2021-diz-pesquisa/. Acesso em: 17 out. 2025.
3 ÁPICE - Associação pela Indústria e Comércio Esportivo. ÁPICE divulga dados exclusivos do mercado de produtos esportivos piratas no Brasil. S.l.: ÁPICE, s.d.. Disponível em: https://www.apicebrasil.org.br/apice-lanca-estudo-sobre-o-consumo-de-artigos-esportivos-piratas-no-brasil. Acesso em: 17 out. 2025.
4 ÁPICE - Associação pela Indústria e Comércio Esportivo. Pirataria causa prejuízo bilionário no futebol brasileiro. S.l.: ÁPICE, s.d.. Disponível em: https://www.apicebrasil.org.br/pirataria-causa-prejuizo-bilionario-no-futebol-brasileiro. Acesso em: 17 out. 2025.
5 SPORTS VALUE. Finanças top 20 clubes brasileiros em 2023: diversificação de receitas: o grande desafio. S.l.: Sports Value, s.d.. Disponível em: https://www.sportsvalue.com.br/case-studies/financas-top-20-clubes-brasileiros-em-2023-diversificacao-de-receitas-o-grande-desafio/. Acesso em: 17 out. 2025.
6 MENDES, Diego; CHAVES, Karla; SANTORO, Tiê. Pirataria digital: só as TVs por assinatura perdem mais de R$ 15 bilhões por ano. CNN Brasil, São Paulo, 2 jun. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/pirataria-digital-so-as-tvs-por-assinatura-perdem-mais-de-r-15-bilhoes-por-ano/. Acesso em: 17 out. 2025.
7 LAVIERI, Danilo. Não é só com a Globo: pirataria causa rombo no futebol pelo mundo. InfoMoney, 25 abr. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/esportes/nao-e-so-com-a-globo-pirataria-causa-rombo-no-futebol-pelo-mundo/. Acesso em: 17 out. 2025.
8 CHO, Hichang; CHUNG, Siyoung; FILIPPOVA, Anna. Perceptions of social norms surrounding digital piracy: the effect of social projection and communication exposure on injunctive and descriptive norms. Computers in Human Behavior, v. 48, p. 506-515, 2015. DOI: 10.1016/j.chb.2015.02.018. Disponível em: https://ink.library.smu.edu.sg/lkcsb_research/5123/. Acesso em: 7 out. 2025.
9 POPHAM, James F.; VOLPE, Claudia. Predicting moral disengagement from the harms associated with digital music piracy: an exploratory, integrative test of digital drift and the criminal interaction order. International Journal of Cyber Criminology, v. 12, n. 1, p. 133-150, jan./jun. 2018. DOI: 10.5281/zenodo.1467884. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/328772153_Predicting_Moral_Disengagement_from_the_Harms_associated_with_Digital_Music_Piracy_An_Exploratory_Integrative_Test_of_Digital_Drift_and_the_Criminal_Interaction_Order. Acesso em: 7 out. 2025.
10 EUROPEAN UNION INTELLECTUAL PROPERTY OFFICE (EUIPO). Intellectual property and youth scoreboard 2022. Alicante: EUIPO, jun. 2022. DOI: 10.2814/249204. Disponível em: https://www.sistemaproprietaintellettuale.it/pdf/news/IP_youth_scoreboard_study_2022_en.pdf. Acesso em: 17 out. 2025.
11 ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). The economic impact of counterfeiting and piracy. Paris: OECD Publishing, 2008. ISBN 978-92-64-04551-4. DOI: 10.1787/9789264045521-en. Disponível em: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2008/06/the-economic-impact-of-counterfeiting-and-piracy_g1gh906c/9789264045521-en.pdf. Acesso em: 17 out. 2025.
12 ABIT - Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção. Mercados ilícitos movimentam mais de R$ 23 bilhões em SP e deixam de gerar 170 mil empregos. Abit - Notícias, 14 set. 2023. Disponível em: https://www.abit.org.br/noticias/mercados-ilicitos-movimentam-mais-de-r-23-bilhoes-em-sp-e-deixam-de-gerar-170-mil-empregos. Acesso em: 17 out. 2025.
13 ÁPICE - Associação pela Indústria e Comércio Esportivo. Pirataria: descubra quem perde com o comércio ilegal. S.l.: ÁPICE, s.d.. Disponível em: https://www.apicebrasil.org.br/pirataria-descubra-quem-perde-com-o-comercio-ilegal. Acesso em: 17 out. 2025.
14 PROCON-MT. Polícia Civil e Procon apreendem 170 camisetas de time falsificadas em loja em Várzea Grande. Cuiabá: Procon-MT, 28 jun. 2024. Disponível em: https://www.procon.mt.gov.br/-/pol%C3%ADcia-civil-e-procon-apreendem-170-camisetas-de-time-falsificadas-em-loja-em-v%C3%A1rzea-grande. Acesso em: 17 out. 2025.
15 TERRA. De R$ 218 a R$ 699: veja quanto custam as camisas dos principais clubes brasileiros. Terra, 25 out. 2024. Disponível em: https://www.terra.com.br/economia/de-r-218-a-r-699-veja-quanto-custam-as-camisas-dos-principais-clubes-rasileiros,593c6d5827c126f5dd4d69d286b9c469ijnmh4y5.html. Acesso em: 17 out. 2025.




