Aplicabilidade da cláusula de limitação de responsabilidade nos contratos de adesão e nas relações de consumo
A busca pelo equilíbrio entre autonomia contratual privada e a proteção da parte vulnerável diante dos princípios de ordem pública nas relações contemporâneas.
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
Atualizado em 6 de novembro de 2025 14:15
1. Introdução
Existe no Direito Contratual o desafio de conciliar a autonomia privada com a necessidade de proteção da parte mais vulnerável. Nesse contexto, a cláusula de limitação de responsabilidade - instrumento que busca mitigar os efeitos patrimoniais do inadimplemento contratual - assume relevância especial.
Embora amplamente aceita nos contratos empresariais paritários, sua aplicação em contratos de adesão e nas relações consumeristas (comumente também de adesão) suscita dificuldades quanto aos critérios de validade e à compatibilidade com normas de ordem pública e princípios protetivos, como a boa-fé e a função social do contrato.
O presente artigo tem por objetivo examinar os contornos jurídicos da cláusula de limitação de responsabilidade nesses tipos contratuais, analisando os fundamentos legais, a orientação doutrinária e os parâmetros de validade à luz do CC e do CDC.
2. A cláusula de limitação de responsabilidade: Conceito e fundamentos
A cláusula de limitação de responsabilidade, também denominada cláusula de exclusão ou exoneração de responsabilidade, constitui disposição contratual pela qual as partes, no exercício da autonomia da vontade, delimitam previamente o alcance de sua responsabilidade civil em caso de inadimplemento.
A função da cláusula é, portanto, alocar e quantificar o risco econômico da obrigação, permitindo que as partes ajustem previamente o alcance do dever de indenizar - seja pela fixação de um teto máximo, pela restrição a determinados tipos de danos (diretos/indiretos), ou pela definição de hipóteses em que a responsabilidade se excluirá.
Embora não haja legislação específica para tratar diretamente da matéria, a lei 13.874/19 (lei da liberdade econômica) consolidou o entendimento de que, nos contratos civis e empresariais paritários e simétricos, a alocação de riscos pactuada entre as partes deve ser respeitada (art. 421-A, II, do CC). Assim, a cláusula é expressão legítima da autonomia privada, desde que não afronte normas cogentes, princípios de boa-fé e a função social do contrato (arts. 421 e 422 do CC).
Contudo, tal liberdade não é absoluta. Conforme a doutrina de Arnold Wald e Antonio Junqueira de Azevedo, amplamente aceita e utilizada pelos Tribunais pátrios, são nulas as cláusulas que violem normas de ordem pública, impliquem exoneração por dolo ou culpa grave, afastem obrigações essenciais ou atentem contra a integridade física e moral das pessoas.
Essas restrições ganham relevo e se mostram ainda mais necessárias quando a negociação não ocorre entre partes simétricas - como nos contratos de adesão e nas relações de consumo - onde o equilíbrio contratual e a proteção da parte hipossuficiente ou vulnerável tornam-se imperativos.
3. A limitação da responsabilidade nos contratos de adesão
O contrato de adesão, nos termos do art. 423 do CC, caracteriza-se pela inexistência de liberdade negocial, uma vez que suas cláusulas são unilateralmente elaboradas por uma das partes, cabendo à outra apenas aderir ou recusar.
No entender de Carlos Roberto Gonçalves, o contrato de adesão pode ser definido como aquele em que não há liberdade negocial entre partes em situação de igualdade:
(...) "devido à preponderância da vontade de um dos contratantes, que elabora todas as cláusulas. O outro adere ao modelo de contrato previamente confeccionado, não podendo modificá-las: aceita-as ou rejeita-as, de forma pura e simples, e em bloco, afastada qualquer alternativa de discussão."
Nessa hipótese, a inserção de cláusula que limite a responsabilidade deve ser vista com reserva. O art. 423 do CC declara nulas as disposições que representem renúncia antecipada a direitos decorrentes da natureza do negócio, e determina que as cláusulas ambíguas sejam interpretadas em favor do aderente.
A doutrina de Carlos Roberto Gonçalves e Francesco Messineo reforça que a ausência de negociação efetiva gera um desequilíbrio estrutural entre as partes, afastando a aplicação plena do princípio da autonomia da vontade. Por isso, cláusulas que restrinjam o direito de indenização do aderente tendem a ser consideradas abusivas ou inexistentes, sobretudo se ausentes transparência e proporcionalidade.
Na prática, mesmo que a limitação de responsabilidade seja redigida de forma clara e ostensiva, a validade dependerá da demonstração de uma contraprestação equivalente - isto é, de um benefício concreto que justifique a renúncia parcial do aderente a direitos. Do contrário, o desequilíbrio configurará abuso de direito e nulidade da cláusula.
4. A cláusula de limitação de responsabilidade nas relações de consumo
No âmbito das relações de consumo, a restrição é ainda mais acentuada. Para além de comumente tratar-se de contratos de adesão, assim reforçados pelo art. 54 do CDC como aquele em que as cláusulas são definidas unilateralmente por uma das partes, o art. 25 do CDC ainda estabelece de modo categórico que é vedada a cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar do fornecedor. Trata-se de norma de ordem pública, voltada à tutela da parte hipossuficiente - o consumidor.
A vulnerabilidade do consumidor, reconhecida nos arts. 4º, I, e 6º, VIII, do CDC, é premissa central para a interpretação contratual. Por isso, qualquer limitação de responsabilidade deve observar requisitos rigorosos: transparência, destaque gráfico e justificativa objetiva (art. 54, §4º).
Segundo entende Wanderley Fernandes, a cláusula que limite a responsabilidade do fornecedor perante o consumidor é nula, seja em contrato de adesão ou não:
"nas relações de consumo, a renúncia de direitos, sejam eles de natureza do negócio ou não, e as cláusulas de limitação ou de exoneração de responsabilidade serão nulas, tanto em contrato por adesão quanto em contratos negociados livremente. Nas relações fora do universo consumerista, as partes terão a liberdade de pactuação; porém, em se tratando de contratos por adesão, referida liberdade não poderá comprometer os direitos próprios à natureza do negócio."
Apesar dessa vedação geral, o art. 51, I, do CDC admite, de forma excepcional, a possibilidade de limitação da indenização em relações entre fornecedor e consumidor pessoa jurídica, desde que existam situações justificáveis. A expressão é aberta, mas a doutrina oferece critérios relevantes.
Fábio Henrique Peres entende que as situações justificáveis exigem negociação prévia efetiva, equilíbrio econômico e contrapartida proporcional:
"relação entre os contratantes deverá ser de natureza paritária, na qual as partes efetivamente negociaram a inclusão da limitação do dever de indenizar e, por conseguinte, houve uma contraprestação pela sua anuência, mantendo o equilíbrio econômico da relação contratual."
Já Rizzato Nunes sustenta que a limitação seria admissível apenas em operações de natureza especial ou quando o consumidor pessoa jurídica detenha expertise técnica e estrutura equivalente à do fornecedor:
- que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo;
- que a qualidade do consumidor pessoa jurídica, de sua parte, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora.
Cláudia Lima Marques, por sua vez, defende que a vulnerabilidade do consumidor pessoa jurídica não é presumida, e que, em certas hipóteses, a negociação equilibrada pode afastar a aplicação rígida do art. 25 do CDC:
"(...) a vulnerabilidade, no sistema do CDC, é presumida para o consumidor não profissional e para o consumidor pessoa física. Quanto aos profissionais e às pessoas jurídicas vale a presunção em contrário, isto é, devem possuir conhecimentos jurídicos mínimos sobre a economia para poderem exercer a profissão, ou devem poder consultar advogados e profissionais especializados antes de obrigar-se."
Assim, há espaço restrito, mas existente, para a limitação de responsabilidade, desde que o consumidor não se encontre em posição de desvantagem substancial.
Em qualquer caso, a cláusula deve ser redigida com destaque e linguagem acessível, na forma do do art. 54, §4º do CDC, sob pena de nulidade. Além disso, deve evitar afronta às hipóteses de nulidade do art. 51 do CDC, notadamente aquelas que envolvem renúncia de direitos essenciais, desequilíbrio exagerado ou violação da boa-fé objetiva.
Portanto, constata-se que, embora haja uma possibilidade de inclusão da cláusula de limitação de responsabilidade em contratos consumeristas, é muito restrita e sua utilização deve ponderar os riscos a ela inerentes.
5. Conclusão
A inserção de cláusula de limitação de responsabilidade em contratos de adesão ou consumeristas demanda análise prévia de proporcionalidade e transparência. A liberdade contratual deve ser compatibilizada com a proteção da parte mais fraca, de modo que a cláusula limitativa só é válida quando não compromete o equilíbrio contratual nem reduz o núcleo essencial do direito de reparação, desde que, por óbvio, estejam superadas as expressas vedações legais.
A cautela em seu uso não apenas aumenta a probabilidade de validade jurídica, como reforça a conformidade com os princípios da boa-fé objetiva e função social do contrato.
Portanto, a cláusula de limitação de responsabilidade é instrumento legítimo de gestão de riscos, mas sua aplicação encontra limites claros quando inserida em contratos de adesão ou relações de consumo. A ausência de liberdade negocial irrestrita, o dever de proteção à parte mais vulnerável e as normas de ordem pública impõem um controle rigoroso de validade.
Nos contratos de adesão, a limitação só se sustenta se houver contraprestação equilibrada e transparência na formulação. Nas relações consumeristas, a regra é a nulidade, salvo hipóteses excepcionais envolvendo consumidores pessoa jurídica e situações justificáveis, devidamente comprovadas.
Assim, na busca pelo ponto de convergência entre autonomia da vontade e tutela dos direitos do mais vulnerável, o uso dessa cláusula deve ser prudente, transparente e proporcional, servindo à finalidade de equilibrar riscos e não de restringir direitos.
_______________
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Cláusula cruzada de não indenizar, ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004.
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de direito civil, v.2: direito das obrigações e contratos. São Paulo: Método, 2005
FERNANDES, Wanderley. Cláusulas de exoneração e de limitação de responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 2013.
FERREIRA, Carolina Raboni. As Cláusulas Exoneratória e Limitativa do Dever de Indenizar e os Princípios Contratuais Contemporâneos: Admissibilidade Numa Perspectiva Franco-Brasileira. Disponível em: < https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/handle/1884/46076>
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. 9. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012.
MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do "diálogo das fontes" no combate às cláusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor, 45/71, jan./mar. de 2003.
MESSINEO, Francesco. Doctrina General del Contrato, t. I.
RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
PERES, Fábio Henrique. Cláusulas contratuais excludente e limitativas do dever de indenizar. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 3. p. 58
WALD, Arnold. A cláusula de limitação de responsabilidade no direito brasileiro. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo: RDCC, São Paulo, v.2, n. 4, jul./set. 2015
Filipe Kuss
Advogado no Martinelli Advogados, especialista em Contratos e Direito Imobiliário, atualmente pós-graduando em Direito Societário e Outros Negócios na FAE Business School e Membro do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia da UFPR.


