STJ considera inarbitrável lide sobre aplicação de multas pela CCEE
STJ afasta o competence-competence em acórdão contraditório, que reconhece a natureza contratual das multas aplicadas pela CCEE, mas decide que a discussão envolveria direitos indisponíveis.
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Atualizado às 11:17
Por meio do REsp 1.945.210/RS1, a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica e a CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica se insurgiram contra acórdão do TRF da 4ª região que determinara a anulação de Termos de Notificação por meio dos quais a CCEE havia aplicado penalidades à Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE) por insuficiência de lastro, tendo fixado as multas em valor superior a 2% do faturamento da referida geradora.
O cerne da controvérsia envolvia as seguintes questões: (i) prevalência da convenção de arbitragem prevista na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica instituída pela resolução normativa ANEEL 109/04; e (ii) vinculação da CCEE ao limite percentual previsto no art. 3º, X, da lei 9.427/1996 para arbitrar multas a seus associados.2
A CCEE3 é a entidade privada responsável por promover a contabilização e liquidação de todas as operações de compra e venda de energia elétrica no SIN - Sistema Interligado Nacional, registrando os compromissos contratuais dos diversos agentes atuantes no setor, fiscalizando o seu efetivo desempenho de modo a apurar eventuais diferenças entre os montantes objeto das operações contratadas e aqueles que foram efetivamente disponibilizados ou consumidos e cuidando para que ocorram os devidos acertos financeiros quando há divergência de disponibilização ou de consumo em relação ao que fora contratado.4
Nos termos do art. 4º, § 5º da lei 10.848/045, os litígios entre os agentes integrantes da CCEE deverão ser dirimidos por meio de arbitragem, conforme estabelecido na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica e no estatuto social da CCEE.
Para melhor compreensão da matéria em discussão no acórdão sob exame, vale registrar que no mercado de energia os agentes vendedores de energia têm a obrigação de apresentar lastro suficiente para dar cumprimento à integralidade dos seus contratos, além do seu próprio consumo. O lastro é formado pela soma da garantia física das usinas de propriedade do gerador com o montante de energia adquirido pelo agente no mercado através de contratos de compra celebrados com terceiros.6
A CCEE, por sua vez, tem o papel de aferir o cumprimento das obrigações dos agentes do setor, tendo o poder de aplicar penalidades em caso de descumprimento. Uma das hipóteses em que a CCEE pode aplicar penalidades é quando há venda de energia sem lastro.
Esta introdução é feita apenas para que o leitor compreenda o cenário do acórdão ora comentado, por meio do qual a 2ª turma do STJ deu parcial provimento aos recursos especiais interpostos por ANEEL e CCEE para reformar o acórdão do TRF-4 que havia entendido serem as penalidades aplicadas pela CCEE vinculadas ao limite de 2% do faturamento da empresa nos termos do art. 3º, X, da lei 9.427/1996, tendo sido afastada a convenção de arbitragem por entender o STJ estarem em jogo direitos indisponíveis.
Ao afastar a incidência da cláusula compromissória, o acórdão foi lacônico, tendo se limitado a afirmar que o caso envolveria direitos indisponíveis relativos "ao exercício ou não do poder de polícia pela câmara de comercialização ou se presente excesso de poder regulamentar no valor das penalidades aplicadas," o que deveria ser examinado pelo Poder Judiciário.
Logo de início, não se pode deixar de mencionar o completo silêncio do acórdão acerca do princípio da competência-competência.
Nesse sentido, ao atribuir ao árbitro o poder de decidir sobre a "existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem", a intenção do legislador foi garantir a jurisdição do árbitro para decidir sobre sua própria competência.7
O princípio da competência-competência tem um efeito negativo importante: o de afastar a jurisdição estatal para analisar ab initio os limites de abrangência da convenção de arbitragem, garantindo primazia ao árbitro para realizar esse exame a fim de confirmar, ou não, sua jurisdição fundamentada em tal cláusula.
Com isso, se a parte ré invoca a existência de convenção de arbitragem, nos termos do art. 337, X do CPC8, como fizeram a ANEEL e a CCEE no caso em exame, e essa alegação não pode ser afastada com base em um exame prima facie, como também era o caso, é dever do juiz extinguir o processo, sem julgamento do mérito, na forma do art. 485, VII do CPC9. Justamente o que fez o juiz de primeira instância, tendo, no entanto, o TRF-4 reformado a sentença e o STJ deixado de reconhecer a violação do citado dispositivo do CPC.
Diz-se que o árbitro detém primazia para examinar a legalidade, latu sensu, da convenção de arbitragem porque o fato de tal análise competir primeiramente a ele - seja à vista da prévia instauração do procedimento arbitral, seja pela alegação de convenção da arbitragem na contestação, uma vez iniciado o processo judicial, acarretando a extinção do feito sem julgamento do mérito - não afasta possível exame posterior da questão pelo Judiciário, na eventualidade de vir a ser instaurada ação anulatória se estiver presente uma das restritas hipóteses do art. 32 da lei 9.307/1996 (lei de arbitragem).10
Ou seja, quando as partes convencionam submeter os litígios de sua relação jurídica à arbitragem não afastam de todo o papel do Poder Judiciário estatal, mas relegam sua atuação para hipóteses restritas, como ocorre com a anulatória.11
No acórdão analisado, porém, o STJ decidiu que competiria ao Poder Judiciário examinar a incidência da cláusula compromissória no caso concreto, afastando-a por entender que se estaria diante de direitos indisponíveis.
Embora o acórdão mencione que "a questão reside em saber se a CCEE pode ou não aplicar penalidades pelo não cumprimento de obrigações pelos seus associados e se tais penalidades devem estar limitadas ao percentual previsto no art. 3º, X, da lei 9.427/1996", o fato é que a geradora não havia questionado o poder de a CCEE aplicar penalidades, mas apenas sua vinculação aos limites estabelecidos no citado dispositivo, que regula as multas administrativas aplicadas pela ANEEL.
Veja-se como o acórdão estabeleceu a natureza distinta das multas aplicadas pela ANEEL, e que são limitadas pelo art. 3º, X, da lei 9.427/1996, e as multas contratuais aplicáveis pela CCEE, na forma prevista no decreto 5.177/04:
"Nesse contexto, incabível aplicar a limitação prevista no art. 3°, X, da lei 9.427/1996 à CCEE, já que se trata de pessoa jurídica com natureza distinta da ANEEL e no exercício de múnus calcado também em institutos diferentes, pois, enquanto as multas administrativas aplicadas pela ANEEL são decorrentes da prática do seu poder de polícia, as penalidades impostas pela CCEE advêm da pactuação contratual feita com os agentes fornecedores de energia elétrica que a ela se associam.
Além disso, o decreto 5.177/04 é expresso ao destacar que a convenção de comercialização deverá tratar sobre as penalidades e sanções a serem aplicadas aos agentes participantes, na hipótese de descumprimento das normas aplicáveis à comercialização, sem prejuízo da imposição, pela ANEEL, das penalidades administrativas cabíveis (...)."12
A partir desse raciocínio, o STJ concluiu que "as penalidades aplicadas pela CCEE têm natureza contratual, de modo que não podem ser limitadas ao percentual previsto no art. 3º, X, da lei 9.427/1996", razão pela qual deu parcial provimento aos recursos especiais da ANEEL e da CCEE para julgar improcedente a ação, mantendo incólumes as multas aplicadas pela CCEE.
Aqui parece haver uma contradição interna no acórdão, na medida em que apesar de estabelecer a distinção entre as multas administrativas aplicadas pela ANEEL no exercício de seu poder de polícia e aquelas aplicadas pela CCEE, reconhecendo sua natureza contratual, fundada na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica, entendeu que se trataria de direitos indisponíveis, o que afastaria a incidência da cláusula compromissória.
Ora, ou bem o litígio envolve direitos indisponíveis - o que o próprio acórdão reconhece não ser o caso da CCEE, eis que não se trata de poder de polícia delegado a pessoa jurídica de direito privado de capital majoritariamente público que presta serviço público de natureza não concorrencial13 - não podendo ser decidido via arbitragem, ou bem envolve direitos disponíveis calcados em convenção contratual, no caso a Convenção de Comercialização de Energia Elétrica, incidindo a cláusula compromissória estabelecida em tal instrumento.
Em outras palavras, a forma como o STJ decidiu o mérito da questão é incompatível com o afastamento da preliminar de existência da convenção de arbitragem, devendo ter aplicado o efeito negativo do princípio da competência-competência, extinguindo o processo sem julgamento do mérito, nos termos do art. 485, VII, do CPC. Caberia, então, ao tribunal arbitral a ser constituído na forma prevista na convenção de arbitragem analisar se estavam em disputa direitos disponíveis e, em caso positivo, julgar o mérito da lide.
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1 STJ, 2ª Turma, REsp nº 1.945.210/RS, Relator Ministro Teodoro Silva Santos, DJe 9/9/2025.
2 Lei nº 9.427/1996, Art. 3º: "Além das atribuições previstas nos incisos II, III, V, VI, VII, X, XI e XII do art. 29 e no art. 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, de outras incumbências expressamente previstas em lei e observado o disposto no § 1o, compete à ANEEL:
(...)
X - fixar as multas administrativas a serem impostas aos concessionários, permissionários e autorizados de instalações e serviços de energia elétrica, observado o limite, por infração, de 2% (dois por cento) do faturamento, ou do valor estimado da energia produzida nos casos de autoprodução e produção independente, correspondente aos últimos doze meses anteriores à lavratura do auto de infração ou estimados para um período de doze meses caso o infrator não esteja em operação ou esteja operando por um período inferior a doze meses."
3 Criada pela Lei nº 10.848/2004, com atribuições definidas pela Resolução Normativa ANEEL nº 957/2021 e regulamentada pelo Decreto nº 5.177/2004.
4 BARBOSA, Joaquim Simões e BESSONE, Daniela. Autoprodução e geração distribuída: semelhanças e distinções e aplicação da Convenção Arbitral da CCEE. In: Revista do Direito da Energia, Edição nº 18, 2025.
5 Lei nº 10.848/2004, Art. 4º, § 5º: "As regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996."
6 Decreto nº 5.163/2004: "Art. 2o Na comercialização de energia elétrica de que trata este Decreto deverão ser obedecidas, dentre outras, as seguintes condições:
I - os agentes vendedores deverão apresentar lastro para a venda de energia para garantir cem por cento de seus contratos;
(...)
§ 1º O lastro para a venda de que trata o inciso I do caput será constituído pela garantia física proporcionada por empreendimento de geração própria ou de terceiros, neste caso, mediante contratos de compra de energia.
(...)
Art. 3o As obrigações de que tratam os incisos do caput do art. 2o serão aferidas mensalmente pela CCEE e, no caso de seu descumprimento, os agentes ficarão sujeitos à aplicação de penalidades, conforme o previsto na convenção, nas regras e nos procedimentos de comercialização. (...)"
7 Lei de Arbitragem, Art. 8º, parágrafo único: "Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória."
8 CPC, Art. 337: "Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar:
(...)
X - convenção de arbitragem;"
9 CPC, Art. 485: "O juiz não resolverá o mérito quando:
(...)
VII - acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência."
10 Lei de Arbitragem, Art. 32: "É nula a sentença arbitral se:
I - for nulo o compromisso;
I - for nula a convenção de arbitragem;
II - emanou de quem não podia ser árbitro;
III - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei;
IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem;
V - revogado
VI - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva;
VII - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta Lei; e
VIII - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei."
[11] Outras hipóteses em que há atuação do juiz togado mesmo à vista de convenção de arbitragem: para a concessão de medida cautelar ou de urgência antes de instituída a arbitragem (art. 22-A da Lei nº 9.307/1996) e para a execução da sentença arbitral (art. 31 da Lei de Arbitragem e art. 515, VII, do CPC).
Lei de Arbitragem, Art. 22-A: "Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência."
Lei de Arbitragem, Art. 31:" A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. "
CPC, Art. 515: "São títulos executivos extrajudiciais:
(...)
VII - a sentença arbitral;"
12 Decreto nº 5.11/2004. Art. 3o : "A convenção de comercialização referida no § 1o do art. 1o do decreto no 5.163, de 30 de julho de 2004, deverá tratar das seguintes disposições, dentre outras:
(...)
III - penalidades e sanções a serem impostas aos agentes participantes, na hipótese de descumprimento das normas aplicáveis à comercialização, sem prejuízo da imposição, pela ANEEL, das penalidades administrativas cabíveis."
13 STF, Tema 532 da repercussão geral: "É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial."



