Quando o remédio vira veneno: Litigância abusiva, incentivos à judicialização e o risco de colapso do sistema de saúde
Judicialização abusiva no setor de saúde pressiona o sistema, aumenta custos e ameaça sustentabilidade, exigindo equilíbrio entre direito individual e coletivo.
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Atualizado em 10 de novembro de 2025 14:00
O sistema de saúde brasileiro vive sob estresse permanente. Parte dessa tensão decorre de fatores econômicos e demográficos. Mas há uma causa silenciosa, de origem jurídica, que vem minando sua sustentabilidade: o incentivo à judicialização.
O que nasceu como ferramenta de proteção da dignidade humana transformou-se, em muitos casos, em mecanismo de distorção sistêmica, no qual o processo judicial deixa de servir à garantia do direito e passa a funcionar como atalho para benefícios fora da regulação.
O incentivo estrutural à judicialização
O desenho institucional atual estimula o ingresso de ações.
A cultura da tutela imediata, somada à concessão ampla de liminares e à ausência de sanções processuais efetivas contra o abuso, criou um ambiente de recompensa ao litígio.
Em vez de fortalecer canais administrativos de solução, o sistema empurra o cidadão para o Judiciário - e, junto com ele, uma indústria de demandas replicadas, patrocinadas por escritórios ou plataformas digitais que monetizam a vulnerabilidade.
Cada decisão isolada, ao deferir um pedido sem base técnico-atuarial, cria precedentes econômicos que se espalham pelo sistema como metástase.
O novo entendimento do STJ e o efeito dominó
O STJ, ao julgar o Tema 1.082, reconheceu que o rol de procedimentos da ANS é exemplificativo, e não taxativo.
Embora o entendimento tenha buscado um equilíbrio entre regulação e proteção, a aplicação ampliada do precedente transformou-se, na prática, em autorização genérica para custeio de tratamentos fora das regras técnicas e econômicas do setor.
O resultado é um efeito dominó: operadoras obrigadas a custear procedimentos sem previsão orçamentária, aumento de custos, retração de cobertura e risco de insolvência.
ADIn 7.265/STF - O debate constitucional sobre sustentabilidade
A reação institucional veio com a ADIn 7.265, proposta pela Fenasaúde no STF, que questiona a lei 14.454/22, responsável por incorporar ao texto legal o caráter exemplificativo do rol da ANS.
A ação argumenta que a norma viola a separação de poderes e compromete a eficiência administrativa, ao retirar da agência reguladora a competência técnica para definir a cobertura mínima obrigatória.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a relevância do tema, observando que o equilíbrio entre o direito individual e a viabilidade coletiva é condição de efetividade da própria Constituição.
O dilema humano do magistrado
É preciso, contudo, reconhecer a complexidade da posição do juiz. Diante de um pedido urgente de custeio de medicamento ou tratamento - muitas vezes de alto custo e com risco de morte -, o magistrado decide sob o peso da vida alheia.
Entre o frio da norma e o calor da urgência, a compaixão frequentemente se impõe.
Mas o desafio ético e institucional está exatamente aí: como proteger o indivíduo sem colapsar o sistema que garante o direito de todos?
Não se trata de indiferença judicial, mas de responsabilidade compartilhada. O juiz não pode ser o único guardião da saúde; a política pública deve oferecer mecanismos prévios, transparentes e tecnicamente legítimos para evitar que o Judiciário precise decidir entre salvar um e prejudicar milhões.
Quando o privado quebra, o público colapsa
A saúde privada não é concorrente do SUS - é seu amortecedor. Mais de 70% dos atendimentos de alta complexidade dependem de estrutura privada.
Quando o setor suplementar entra em colapso, o sistema público é inevitavelmente sobrecarregado. A falência das operadoras não é um problema de mercado; é um problema de Estado.
A tragédia dos comuns sanitária
O uso ilimitado de um recurso finito leva à tragédia dos comuns - o comportamento racional do indivíduo destrói o bem coletivo. Na saúde, cada decisão que ignora critérios técnicos e regulatórios retira recursos de outro paciente.
A litigância abusiva, ao privilegiar o imediato sobre o planejado, transforma política pública em improviso judicial.
Conclusão - Entre o justo e o sustentável
A judicialização legítima é expressão de cidadania. A litigância abusiva é sua paródia.
O juiz que decide por compaixão cumpre sua missão humana, mas o Estado que o deixa decidir sozinho falha em sua missão institucional.
Como aponta a ADIn 7.265, a efetividade do direito à saúde exige racionalidade, previsibilidade e sustentabilidade. Porque proteger o paciente é garantir que o sistema sobreviva para protegê-lo também amanhã.
E essa talvez seja, hoje, a lição mais dura e mais necessária do nosso tempo: sem equilíbrio, não há justiça que cure.
Viviane Ferreira
Sócia - Diretora jurídica de Excelência e experiência do cliente do Parada Advogados. Mestranda no IDP-Brasília.


