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Cota de reserva ambiental - CRA e mercado de biodiversidade

O avanço regulatório da CRA deverá auxiliar o Brasil a se afirmar como uma liderança global em políticas florestais, clima e biodiversidade.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Atualizado às 15:36

Neste momento em que o Brasil está sediando a COP30, o MMMA - Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima anunciou a estruturação jurídica para emissão, registro, negociação e monitoramento de CRA - Cotas de Reserva Ambiental. A iniciativa sinaliza um novo capítulo na consolidação do mercado brasileiro de biodiversidade, reforçando o papel dos instrumentos econômicos de política ambiental na conservação, regularização e promoção de eficiência ecológica.

A gênese está na MP 2.166-67/01, que inseriu no antigo Código Florestal (lei 4.771/1965) a CRF - Cota de Reserva Florestal, que possuía feições semelhantes. Contudo, a maturidade do mecanismo foi atingida somente com a lei 12.651/12 (novo CFlo - Código Florestal), que nos seus arts. 44 a 50 construiu um regime jurídico mais detalhado e apropriado, conferindo assim maior segurança e estabilidade às relações negociais vinculadas à proteção da vegetação nativa.

Inspirada em modelos que preveem a criação de créditos de biodiversidade ou reservas de habitats (habitat banking)1, a CRA revela-se como uma das modalidades brasileiras para o mercado de biodiversidade. Cuida-se de título nominativo, que representa a área com vegetação nativa conservada ou em recuperação, cuja missão é viabilizar a compensação do déficit de RL - Reserva Legal2. Ao ser equiparada à direito real, sendo passível de transmissão inter vivos ou causa mortis e averbada na matrícula do imóvel rural, a CRA desponta como uma espécie de "moeda de troca florestal". De fato, por ter a necessária segurança jurídica, essa "área de lastro" passa a funcionar como uma garantia real do mercado imobiliário e ambiental, assegurando a um só tempo previsibilidade econômica e integridade ecológica.

A competência para a emissão, registro, negociação e monitoramento deste título cabe ao MMA, que o faz por meio do SFB - Serviço Florestal Brasileiro, consoante dispõe o art. 2º do decreto 9.640/18, que regulamentou o instituto. Para garantir a estabilidade das relações e a ampla circulação do ativo, a CRA é registrada em bolsas de mercadorias de âmbito nacional ou em sistemas de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo BACEN - Banco Central3. A condição de ativo financeiro é atestada por esse procedimento, que formaliza a integração da CRA ao sistema econômico-financeiro nacional, confirmando a validade e a existência da RL.

A unidade corresponde ao indexador de 1 hectare de área com vegetação nativa primária ou com vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração ou recomposição, ou de áreas de recomposição mediante reflorestamento com espécies nativas. É de se destacar que o regime jurídico da CRA prevê que a área preservada não precisa necessariamente permanecer intocável, pois o art. 49 do CFlo prevê a possibilidade de exploração econômica da RL e, por extensão das áreas de lastro da CRA, nos termos do PMFS - Plano de Manejo Florestal Sustentável, desde que não descaracterize a cobertura vegetal nativa e não comprometa a conservação do espaço.

De acordo com o art. 44 do CFlo, a CRA pode ser obtida a partir de seguintes situações: (i) área vegetada onde foi constituída servidão ambiental (art. 9º-A da lei 6.938/1981; (ii) área que excede à RL instituída voluntariamente além dos percentuais mínimos de cada imóvel (por exemplo, 20% na região nordeste); (iii) área correspondente à RPPN - Reserva Particular do Patrimônio Natural, unidade de conservação privada prevista no art. 21 da lei do SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza; e (iv) área que integra o perímetro de unidade de conservação de domínio público que ainda não foi objeto de expropriação estatal. Fica evidente a relevância dela para a consolidação do SNUC e a efetivação do inciso III do § 1º do art. 225 da CF/88, segundo o qual cabe ao Poder Público "definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção".

A CRA revela um grande potencial, sobretudo diante das dificuldades enfrentadas por proprietários e empreendedores rurais para identificar áreas aptas à compensação florestal. Ao permitir a compensação em áreas equivalentes no mesmo bioma, ela racionaliza o cumprimento das obrigações ambientais e estimula a lógica da proteção florestal voluntária. Isso não deixa de guardar consonância com a lei 14.119/21, que estabeleceu a PSA - Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais e que a reconhece como um ativo/serviço ambiental passível de remuneração. Esta dupla função de compensação de passivos e de fonte de receita tem tudo para projetar a CRA como um mecanismo fundamental para corrigir as falhas de mercado de forma a viabilizar a regularização de RL em imóveis com passivo florestal.

É importante lembrar que, ao julgar as ADIns 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937, o STF reconheceu a constitucionalidade da CRA e dos mecanismos de compensação de RL. Dessa forma, não existem mais dúvidas quanto à constitucionalidade ou à legalidade do instituto, que apenas procurou imprimir um novo paradigma à política florestal e ambiental brasileira, indo além do tradicional sistema de "comando-e-controle". Os instrumentos econômicos de devem ser trabalhados em harmonia com os mecanismos de educação ambiental, informação e poder de polícia, pois a política ambiental deve ser considerada de forma integrada e sistêmica.

Embora haja quem aponte o risco de "mercantilização da natureza" e de comoditização de patrimônio biológico e ambiental4, cumpre dizer que mercado regulado não significa mercantilização irresponsável, do contrário a norma não teria nenhum sentido. No caso da CRA há um robusto arcabouço regulatório a mitigar tais riscos, isso para não falar que o uso de mercado regulado por instrumentos desse tipo deve ser compreendido como uma evolução natural do Direito Ambiental, sendo uma tendência no Brasil e no mundo5. Por outro lado, a CRA deve se reger pela cientificidade e pelos princípios gerais do Direito Ambiental, não podendo deixar de observar os seguintes critérios: (i) governança clara; (ii) transparência fundiária; (iii) rastreabilidade; (iv) audibilidade e verificação independente; (v) integração com o CAR - Cadastro Ambiental Rural6; e (vi) o PRA - Programa de Regularização Ambiental. Nesse contexto, é preciso promover fiscalização digital e monitoramento satelital contínuo, combate ao greenwashing e às "fazendas de papel".

Realmente, o grande desafio do MMA e do SFB é garantir a credibilidade do sistema, uma vez que a falta de transparência ou mesmo uma eventual fraude geraria insegurança jurídica e afetaria a confiança do mercado. Mas existem outros problemas, como a validação do CAR, cuja demora certamente comprometerá a identificação e a certificação das áreas de excedente de RL aptas, colocando em xeque o potencial de ativos ambientais que poderiam dinamizar o mercado de compensação da biodiversidade. Como o êxito da CRA depende da consolidação do CAR, o caminho pela frente não será nada fácil, mormente porque em regra este obteve poucos avanços desde a edição do CFlo. No mais, a exigência de averbação na matrícula do imóvel gerador e o registro em sistemas financeiros pode representar um obstáculo de burocracia e elevar os custos de transação, o que desestimularia a participação de pequenos e médios produtores rurais. Por serem atores vitais ao sucesso dessa política, há que se criar mecanismos de fomento ou procedimentos simplificados e menos custosos.

A despeito desses óbices, o avanço regulatório da CRA é um momento histórico, e deverá auxiliar o Brasil a se afirmar como uma liderança global em políticas florestais, clima e biodiversidade. Trata-se de uma evolução institucional da política ambiental brasileira que, para alcançar a necessária efetividade, vai exigir governança eficaz, participação social e transparência. Não obstante a biodiversidade seja um bem de uso comum do povo, isso não impede que se atribua valor econômico às funções ecológicas, internalizando custos e protegendo a cobertura florestal do país. Merecem os parabéns o MMA e o SFB pela iniciativa de tentar tirar do papel a CRA a fim de transformar em realidade o CFlo.

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1 Clean Water Act, Seção 404. Clean Water Act of 1972 (CWA), as amended. Public Law 92-500, 33 U.S.C. § 1251 et seq.. Disponível em: www.epa.gov/laws-regulation/history-clean-water-act. Acesso em: 3 nov 2025.

2 Segundo o III do art. 3º do CFlo, RL é uma "área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa".

3 Vide os arts. 3º, X, 14, 17, § 1º, II, § 3º, 19, § 8º e 22, § 8º do Decreto 9.640/2018.

4 MARTIN, Gilles J. Le marché d'unités de biodiversité: questions de mise en oeuvre. Revue Juridique de l'Environnement. Biodiversité et évolution du droit de la protection de la nature, 2008. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/rjenv_0397-0299_2008_hos_33_1_4706. Acesso em: 3 nov. 2025, p. 96.

5 Prova disso é que a partir do final do ano passadoBrasil passou a poder contar com o mercado regulado de carbono, pois a Lei 15.042/2024 instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).

6 O caput do seu art. 29 do CFlo dispõe que "É criado o Cadastro Ambiental Rural - CAR, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente - SINIMA, registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento".

Talden Farias

VIP Talden Farias

Advogado e professor UFPB e UFPE. Pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela UERJ com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1-Pantheón-Sorbonne. Membro do IAB e vice-presidente da UBAA.

José Marcelo Costa

José Marcelo Costa

Doutor em Direito Público pela Universidade de Coimbra/Portugal e mestre em Direito de Estado pela PUC/SP. Advogado e Procurador do Estado do Rio Grande do Norte. Autor de

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