A substância sobre a forma: Os desafios no aproveitamento do ágio
Aproveitamento do ágio, laudo de mais-valia e a preponderância da substância sobre a forma.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado às 14:52
A evolução do tratamento jurídico-tributário do ágio no Brasil revela uma oscilação entre períodos de maior flexibilidade probatória e fases de maior formalização procedimental.
Neste contexto, temos que a disciplina original do decreto-lei 1.598/77, especialmente em seu art. 20, §§ 2º e 3º, conferia ao contribuinte ampla liberdade na demonstração do fundamento econômico do ágio, limitando-se a exigir que essa demonstração fosse arquivada como comprovante da escrituração e elaborada de modo contemporâneo à aquisição.
Assim, não havia exigência de registro público, tampouco de um formato específico para a demonstração, desde que o lançamento indicasse a motivação econômica - mais-valia, expectativa de rentabilidade futura ou fundo de comércio. Essa moldura normativa tinha como eixo a fidelidade temporal e a aderência material da prova, mais do que a adoção de formas rígidas.
A reforma promovida pela lei 12.973/14 alterou sensivelmente esse cenário ao substituir a noção aberta de "demonstração" por um "laudo elaborado por perito independente", impondo-lhe um rito formal determinado: (i) protocolo na Receita Federal do Brasil ou (ii) registro de seu sumário em Cartório de Registro de Títulos e Documentos, (iii) no prazo fatal de 13 meses contados da aquisição.
O objetivo declarado, segundo a Exposição de Motivos da MP 627/13, foi alinhar a legislação tributária às normas contábeis, em particular ao CPC/151, no que se refere ao período de mensuração e à separação entre mais-valia e goodwill. Essa inspiração contábil, entretanto, não veio acompanhada de justificativa robusta para a rigidez das novas formalidades, que passaram a desempenhar papel central na fruição do benefício fiscal.
Isto porque, na prática, a inovação deslocou o foco do controle da materialidade - isto é, a existência e a mensuração da mais-valia à época da aquisição - para o cumprimento estrito de etapas formais. A demonstração, antes retrato do juízo econômico do adquirente, cedeu lugar a um laudo técnico que, além de reconhecer a mais-valia, passou a mensurá-la com base no valor justo dos ativos líquidos da investida. Não se trata apenas de evolução metodológica, mas da adoção de um requisito cuja inobservância temporal, por si só, tem sido utilizada como fundamento para negar o aproveitamento do ágio, ainda que a substância econômica esteja demonstrada por outros meios probatórios idôneos.
Ocorre que, a regulamentação infralegal, consubstanciada na IN RFB 1.700/17, detalhou o conteúdo mínimo do sumário do laudo e conectou o cumprimento do requisito formal às obrigações acessórias, notadamente ao LALUR. Ao fazê-lo, o Fisco estruturou um sistema no qual as mesmas informações materiais (qualificação das partes, data da aquisição, percentuais adquiridos, descrição da transação, discriminação dos ativos e passivos com seus valores contábeis e justos) aparecem tanto no laudo e seu sumário quanto na escrituração e nas declarações eletrônicas do contribuinte.
Nesta senda, cumpre recordar que o próprio decreto-lei 1.598/77, em seu art. 9º2, consagra o princípio probatório da escrituração regular, atribuindo-lhe força de prova a favor do contribuinte quanto aos fatos nela registrados, desde que lastreados por documentos hábeis. Essa diretriz reitera a centralidade da materialidade e da contemporaneidade dos registros contábeis, impondo à autoridade fiscal o ônus de infirmar sua veracidade, salvo hipóteses específicas de inversão probatória previstas em lei. Em outras palavras, o sistema tributário brasileiro reconhece a escrituração idônea como instrumento de validação dos fatos tributários, inclusive quanto à mensuração e à motivação econômica de operações societárias complexas.
À luz desse arcabouço, a questão fulcral não é a mera existência de um registro cartorial ou protocolo administrativo dentro de 13 meses, mas a comprovação de que, no período de mensuração adequado, havia informações técnicas suficientes para suportar a mensuração da mais-valia e, por consequência, do ágio.
A finalidade teleológica do requisito de laudo é garantir que a avaliação em valor justo foi elaborada com independência, integridade técnica e aderência temporal à operação, não criar um obstáculo formal dissociado da realidade econômica. Se a prova contemporânea da avaliação existe, e pode ser auferida através da escrituração eletrônica idônea, a substância do comando legal está atendida.
A interpretação estritamente formalista, que nega o direito ao aproveitamento do ágio exclusivamente pela intempestividade do registro do laudo, produz uma desproporção incompatível com os princípios da razoabilidade e da segurança jurídica. Trata-se de converter um requisito acessório em condicionante absoluta, esvaziando o conteúdo material da regra-matriz do benefício fiscal.
Ademais, a razoabilidade hermenêutica recomenda, portanto, interpretar o requisito de registro/protocolo como mecanismo de publicidade e de controle, e não como condição ontológica de existência ou validade do laudo. Se a prova material evidencia a elaboração do laudo por perito independente, dentro do período de mensuração e com o conteúdo mínimo exigido, a intempestividade do registro não pode, por si, obstar a dedutibilidade decorrente do ágio ou a realização de seus efeitos fiscais. Em sentido convergente, a jurisprudência administrativa3 construída sob a égide do regime anterior ao de 2014 reconhecia a primazia da demonstração contemporânea sobre a forma, e nada na reforma autoriza a inversão dessa hierarquia em detrimento da substância econômica.
A leitura sistemática do art. 20 do decreto-lei 1.598/77, na redação da lei 12.973/14, com o art. 9º do mesmo diploma e com a IN RFB 1.700/17, reforça que a exigência de laudo visa qualificar e organizar a prova, não transformar o contribuinte em refém de marcos procedimentais dissociados da realidade. A Administração Tributária dispõe de instrumentos amplos de fiscalização para contestar a veracidade ou a adequação técnica da mensuração; quando não o faz, limitando-se a invocar a intempestividade do registro, incorre em excesso de formalismo com efeitos confiscatórios indiretos, o que é vedado pelo ordenamento.
Conclui-se, assim, que o excesso de formalismo não pode suplantar a substância econômica e probatória no tratamento do ágio por mais-valia, principalmente quando a existência do laudo, sua contemporaneidade, autoria independente e conteúdo mínimo puderem ser comprovados por outros meios idôneos (inclusive pela escrituração regular e pela documentação técnica elaborada no período de mensuração) a intempestividade do protocolo ou do registro do sumário não deve impedir o reconhecimento do direito das empresas ao aproveitamento do ágio.
Neste contexto, temos que a função do direito é preservar a verdade material e a proporcionalidade na aplicação das normas, e não converter formalidades em barreiras desarrazoadas ao exercício de posições jurídicas legítimas.
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1 Item 46.
2 Art 9º - A determinação do lucro real pelo contribuinte está sujeita a verificação pela autoridade tributária, com base no exame de livros e documentos da sua escrituração, na escrituração de outros contribuintes, em informação ou esclarecimentos do contribuinte ou de terceiros, ou em qualquer outro elemento de prova.
§ 1º - A escrituração mantida com observância das disposições legais faz prova a favor do contribuinte dos fatos nela registrados e comprovados por documentos hábeis, segundo sua natureza, ou assim definidos em preceitos legais.
§ 2º - Cabe à autoridade administrativa a prova da inveracidade dos fatos registrados com observância do disposto no § 1º.
§ 3º - O disposto no § 2º não se aplica aos casos em que a lei, por disposição especial, atribua ao contribuinte o ônus da prova de fatos registrados na sua escrituração."
(grifado)
3 CARF - Acórdão n° 1201-006.336 - 1ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária.



