O novo paternalismo judicial: O Judiciário como órgão de compliance do cidadão
Judiciário amplia proteção ao consumidor, mas arrisca infantilizar decisões financeiras, reduzindo autonomia individual e gerando insegurança contratual.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado em 18 de novembro de 2025 15:09
Nos últimos anos, consolidou-se uma tendência silenciosa, mas reveladora: a de transformar o Judiciário em uma espécie de órgão de compliance do cidadão. Uma instância que, sob o pretexto de proteger o consumidor, passa a avaliar se suas decisões financeiras foram prudentes - e, se não foram, a "corrigi-las", transferindo o ônus do risco para o banco.
A ideia parte de uma boa intenção: proteger o hipossuficiente diante de uma assimetria real de informação. Mas o que se observa é a expansão de um paternalismo judicial que, em nome da proteção, invade o campo da autonomia privada e desestrutura o próprio sentido de responsabilidade individual.
Quando a proteção se transforma em tutela
O papel do juiz é tutelar direitos, não decisões. A função jurisdicional existe para corrigir ilegalidades, não escolhas conscientes. No entanto, em diversas decisões recentes, o Judiciário tem assumido o papel de "avaliador de risco pessoal" - julgando não apenas se houve vício no consentimento, mas se o cidadão "deveria" ou "não deveria" ter assumido determinada obrigação.
Essa postura, além de ultrapassar os limites da jurisdição, deseduca o cidadão e desorganiza o mercado, substituindo a lógica da confiança pela lógica da tutela. Quando o banco é punido por respeitar a autonomia do cliente, a mensagem que se transmite é perigosa: a de que o consumidor não precisa mais compreender o contrato, porque o Estado o fará por ele.
O paradoxo da vulnerabilidade
O consumidor é vulnerável, mas não incapaz. A vulnerabilidade é um conceito jurídico de proteção, não uma categoria de interdição civil. Transformá-la em argumento absoluto gera um efeito colateral perverso: a infantilização jurídica.
Nesse cenário, o Judiciário passa a operar como um guardião moral, avaliando o mérito subjetivo de cada decisão financeira - o que, em última instância, enfraquece a própria credibilidade da Justiça e compromete a previsibilidade das relações econômicas.
A erosão da boa-fé e da confiança
Ao transformar a boa-fé em via de mão única - exigida do banco, mas dispensada do consumidor - cria-se um ambiente de insegurança contratual e estímulo ao oportunismo processual.
Esse novo modelo de "compliance judicial" gera um desequilíbrio estrutural: o risco moral se desloca do mercado para o Estado, que passa a responder por decisões privadas, e os bancos, diante da incerteza, retraem o crédito e elevam custos.
A função social da responsabilidade
A responsabilidade é, também, um instrumento de cidadania. Sem ela, a liberdade se torna apenas decorativa.
O verdadeiro papel do Judiciário não é substituir o discernimento do indivíduo, mas garantir que as relações se deem com transparência, lealdade e previsibilidade.
Proteger não é infantilizar - é capacitar. E a maturidade de uma sociedade jurídica se mede justamente pela sua capacidade de equilibrar proteção e autonomia, vulnerabilidade e responsabilidade.
Viviane Ferreira
Sócia - Diretora jurídica de Excelência e experiência do cliente do Parada Advogados. Mestranda no IDP-Brasília.


