Recentes contornos sobre a possibilidade de redução (de ofício) da cláusula penal
A cláusula penal, importante mecanismo de gestão de risco contratual, deve ser reduzida equitativamente de ofício, caso preenchidos os requisitos previstos pelo art. 413 do CC?
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado em 18 de novembro de 2025 15:15
A cláusula penal, importante mecanismo de gestão de risco contratual,1 permite que os contratantes estipulem penalidade ou prefixem indenização a ser devida pela parte que incorrer em inadimplemento absoluto ou mora.2
Contudo, a liberdade conferida às partes, no tocante à contratação da pena convencional, não é absoluta. O CC positiva uma regra de proporcionalidade, no art. 413, segundo a qual "a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio".3
Com base nesse artigo, parcela relevante da doutrina encampou o entendimento de que a redução equitativa da cláusula penal deveria ocorrer de ofício, sendo desnecessária a formulação de requerimento expresso da parte que viesse a suportar o encargo da penalidade.4 Há, inclusive, enunciado da IV Jornada de Direito Civil nesse sentido.5
Em julgamento ocorrido ao final de 2024, o STJ analisou precisamente essa questão.6
A controvérsia analisada pela Corte na ocasião originou-se de um compromisso de compra e venda de imóvel não levado a termo pela compradora: por isso, a promitente vendedora ajuizou ação monitória contra a promitente compradora, para exigir o pagamento da multa derivada da desistência do negócio.
A cláusula penal fora fixada no contrato em 5% sobre o valor de aquisição do bem (que, à época do ajuizamento da ação, perfazia o montante de R$ 12.250.000,00).
Diante da sentença que acolheu os pedidos da autora, a promitente compradora/ré interpôs apelação para, dentre outras razões, requerer a redução, de ofício, da cláusula penal. O TJ/SP, ao desprover o recurso, entendeu que: (i) as partes "convencionaram cla'usula penal em 5% sobre o valor de aquisição do bem"; (ii) a apelante/promitente compradora "anuiu expressamente com todas as cláusulas e premissas das contraminutas"; e, por fim, (iii) o pedido de redução da penalidade consistiu em inovação recursal.
Foi esse o cenário que levou a promitente compradora a interpor recurso especial, no qual reiterava o pleito de redução da cláusula penal pela aplicação do art. 413 do CC, como argumento subsidiário para a hipótese de o STJ não afastar totalmente a penalidade.
O relator do recurso, ministro Moura Ribeiro, entendeu que a multa haveria de incidir no caso, tendo em vista o preenchimento dos requisitos previstos no art. 408 do CC (culpa e constituição em mora). Especificamente no que se refere à redução de ofício da cláusula penal, o relator votou pela sua impossibilidade.
Isso porque, a um, a matéria não havia sido prequestionada e discutida nas instâncias inferiores. Entendeu que, "mesmo que considerada como de ordem pública a matéria em debate (...) tal característica não exime a inconformada de demonstrar o prévio debate na Corte de origem".
A dois, o ministro defendeu que a alegada excessividade do valor assumido pela cláusula penal não se evidencia apenas em razão de elevada cifra alcançada, tendo em vista a presunção de que as partes, ao pactuarem a multa, consideraram o montante acordado como um risco inerente ao negócio jurídico que assinavam. Acrescentou, ainda, que o elevado valor foi consequência da própria conduta da parte, que permitiu a concretização dos efeitos deletérios do tempo sobre o débito.
Por outro lado, o ministro Humberto Martins manifestou divergência ao relator do caso especificamente quanto ao ponto ora debatido. O ministro constatou a violação ao art. 413, do CC, entendendo que "a matéria é cogente e de ordem pública, podendo ser decidida de ofício". Apesar do voto divergente, a 3ª turma do STJ negou provimento ao recurso especial.
O julgamento do REsp 2.042.706/SP revela que a redução equitativa da cláusula penal, ainda que de ofício, não comporta análise superficial. A matéria precisa ser interpretada por meio da análise conjunta do art. 413 com os arts. 4217 e 421-A, III8 (incluídos no CC pela lei de liberdade econômica9), os quais estabelecem a excepcionalidade da revisão judicial sobre contratos presumidamente paritários.10
Em que pese a divergência acerca da (in)aplicabilidade da redução da multa de ofício, deve-se, independentemente da forma que o debate venha a surgir no caso concreto (se ex officio ou a requerimento), oportunizar às partes o exercício do contraditório, a evitar decisão surpresa sobre o tema.11
________________________________
1 TEPEDINO, Gustavo. SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 357.
2 Nos termos do art. 408 do Código Civil: "Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora".
3 Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
4 "Assim, não tardou para que a doutrina passasse a defender a possibilidade da redução da cláusula penal pelo julgador ex officio. Em pouco tempo, o entendimento de que a cláusula penal poderia ser reduzida de ofício tornou-se majoritário na doutrina". (SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022, p. 384).
5 Enunciado nº 356, IV Jornada de Direito Civil. "Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício".
6 STJ, REsp nº 2042706/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. em: 03/09/2024. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202201838628&dt_publicacao=13/09/2024. Acesso em: 21/09/2025.
7 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
8 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (...) III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
9 Lei nº 13.874/2019.
10 Nesse sentido: "Apesar de, como já manifestado, defendermos, pela sua natureza cogente, a vedação à convenção de afastamento do art. 413, entendemos que a posição contrária à redução de ofício encontra, agora, amparo na nova redação do parágrafo único do art. 421 ("princípio da intervenção mínima e excepcionalidade revisão contratual") e no artigo 421-A, inciso III, do Código Civil ("a revisão contratual somente oco-rerá de maneira excepcional e limitada"), ambos inseridos pela Lei n. 13.874/2019. Ainda que, como já exposto, tal dispositivo não tenha alterado os pressupostos de incidência da norma do art. 413, o nítido propósito do legislador em restringir as intervenções sobre a autonomia privada encontra concretude na impossibilidade de intervenções sem pedido da parte, respeitando-se o caráter "mínimo" e "excepcional" recentemente positivado de forma expressa na legislação civil brasileira". (SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022, p. 386).
11 "Seja como for, uma coisa é certa: a se admitir a revisão por iniciativa direta do magistrado, há de ser garantido o contraditório". (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: redução equitativa da cláusula penal e aplicação de ofício. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 146, 2025. Disponível em:



