Conselho de Estado do Brasil: O 15 de novembro que a República esqueceu!
O Conselho de Estado evidencia raízes históricas da deliberação qualificada e da motivação pública, bases que ainda estruturam a Administração e o Direito no Brasil.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado em 18 de novembro de 2025 15:27
Todo 15 de novembro costuma ser narrado como uma travessia abrupta entre mundos: a queda da monarquia, a irrupção do presidencialismo, a Constituição de 1891, dentre outros eventos históricos. Nesse roteiro comemorativo, tende a desaparecer um vértice do constitucionalismo imperial: o Conselho de Estado. O tema não é curiosidade de antiquário. Ele atravessa teoria do Estado, Direito Constitucional e Direito Administrativo, porque expõe como o Brasil, já no século XIX, experimentou mecanismos institucionais de aconselhamento obrigatório e como a República - sem replicá-los - reconfigurou, em chave democrática, a ideia de deliberação qualificada prévia a decisões de altíssimo custo público. Tal reconstrução dialoga com a noção contemporânea de Estado de Direito, com a centralidade do processo, a exigência de motivação, a ponderação de princípios e a proteção da confiança legítima, hoje indissociáveis de um direito público comprometido com a integridade e a segurança jurídica.
I. Aconselhamento institucional como técnica de juridicidade
À luz da Constituição de 1824, o Conselho de Estado ocupava o papel de instância de racionalização do poder pessoal do chefe de Estado. A consulta prévia não era ornamento protocolar; representava um rito de juridicidade: decisões imperiais sobre dissolução da Câmara, nomeação de senadores, intervenções provinciais, guerra e paz, grandes reformas legislativas e administrativas eram antecedidas por debate colegiado, com responsabilização dos conselheiros por pareceres que violassem a Constituição e o interesse do Estado.
Do ponto de vista do Direito Administrativo, esse "freio" procedimental produzia efeitos jurídicos relevantes: impunha deveres de justificação pública; densificava motivação e proporcionalidade; e tutelava confiança legítima e segurança jurídica ao ordenar expectativas sobre como se decide no ápice do Estado. Essa lógica é hoje reconhecível na centralidade do processo, na exigência de motivação e de proporcionalidade e no dever de coerência do agir administrativo, pilares do regime jurídico-administrativo.
A teoria contemporânea fornece linguagem precisa a esse arranjo. A decisão pública válida não é mero produto de competência formal; ela deve emergir de um "processo de razões", passível de cobrança institucional - ideia cara ao princípio da integridade no direito e à distinção entre argumentos de princípio e de política. O aconselhamento obrigatório, nesse sentido, funciona como elemento de integridade: antecede a decisão, ancora-a em padrões e a expõe à crítica qualificada, o que se harmoniza com a leitura procedimental do Estado de Direito e com a compreensão da norma como comunicação vinculante que constrói expectativas legítimas.
Por isso, a história do Conselho de Estado ilumina instrumentos atuais de boa regulação e boa administração: análise de impacto regulatório, consultas e audiências públicas - hoje positivadas no regime das agências (lei 13.848/19), no processo administrativo Federal (lei 9.784/1999) e reiteradas, sob diferentes técnicas, no regime de contratações públicas (lei 14.133/21). O fio condutor é o mesmo: decidir bem exige ouvir, motivar e medir consequências, sob parâmetros de proporcionalidade e de publicidade, além de observância aos deveres de coerência e proteção da confiança legítima.
II. O desenho imperial em duas fases e sua lógica de contenção
O Conselho de Estado viveu duas fases: a primeira, sob D. Pedro I e a Regência, interrompida pelo Ato Adicional de 1834; a segunda, de 1842 em diante, no Segundo Reinado, quando se consolidou como "cérebro colegiado" do poder moderador. A composição vitalícia, recrutada entre figuras centrais da vida política e jurídica, não o transformou em "quarto poder", tampouco o confundiu com gabinete. Era técnica de governança constitucional destinada a condicionar a forma de decidir: submetia o monarca a escrutínio de pares qualificados, dotados de peso político-jurídico e responsabilização possível. A decisão era do Imperador, mas a forma de decidir era institucionalmente condicionada - forma que, juridicizando o exercício de poderes, revela a função de contenção do regime jurídico-administrativo, que busca simultaneamente habilitar e controlar o agir estatal por meio de princípios e procedimentos que se tornam parâmetros de validade.
Vista por essa lente, a consulta imperial de ontem é irmã da motivação qualificada e da proporcionalidade de hoje (estrutura de princípios enquanto mandamentos de otimização e máxima da proporcionalidade). A racionalidade decisória, exigível em atos discricionários, é aferível por padrões de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito - categorias que moldam o controle judicial e a atuação administrativa contemporânea.
III. A comparação que esclarece: Europa continental e a escolha brasileira
A referência imediata, para quem estuda Direito Público, são o Conseil d'État francês e o Consiglio di Stato italiano. Ambos acumulam consultoria normativa com cúpula jurisdicional administrativa: exercem contencioso, impõem deveres de refazimento e uniformizam jurisprudência. Trata-se do modelo de "peça dupla": entidade de aconselhamento e jurisdicional das demandas do Estado. O Brasil optou por outra via. O Conselho de Estado do Império não tinha função jurisdicional, e a República preservou a jurisdição una, remetendo ao Judiciário comum o contencioso contra a Administração. Esse desenho demanda cortes capazes de lidar com a especificidade do regime jurídico-administrativo sem um vértice especializado; e exige da Administração procedimentos decisórios mais densos, já que a revisão judicial incidirá sobre racionalidade, motivação e proporcionalidade.
A ausência de justiça administrativa dual conserva leitura unitária da jurisdição e reforça a coerência sistêmica, desde que o Judiciário desenvolva padrões de deferência calibrada e técnicas de controle adequadas à complexidade regulatória.
No plano regulatório, a escolha brasileira enfatizou a supremacia constitucional, a legalidade e o controle judicial, ao mesmo tempo em que construiu, especialmente a partir de 1995, um direito administrativo da infraestrutura e da regulação que articula planejamento, fomento, ordenação e participação, sempre sob o crivo da Constituição. A regulação - como intervenção administrativa na atividade econômica por direção, indução ou participação, para equidade, eficiência e tutela de bens jurídicos - tem lastro constitucional e não pode ser importada mimeticamente de modelos estrangeiros.
IV. A República desmonta o edifício; a Constituição de 1988 recompõe a intuição
A Proclamação da República, em 15/11/1889, não apenas derruba a monarquia: desmonta o arcabouço que sustentava o poder moderador e, com ele, o Conselho de Estado. A Constituição de 1891, inspirada no desenho norte-americano, rejeita o conselho de notáveis. Dissipa-se a memória do aconselhamento obrigatório; persiste, porém, a intuição de que decisões críticas devem ser precedidas de deliberação colegiada.
A CF/88 recupera essa intuição sob vestes republicanas: o Conselho da República (arts. 89 e 90, CF) e o Conselho de Defesa Nacional (art. 91, CF) configuram instâncias de consulta do presidente em hipóteses de crise e matérias de soberania e segurança. Em temas de excepcional gravidade, a própria Constituição impõe a oitiva desses órgãos, reinstalando um rito de ponderação interorgânica compatível com o Estado Democrático de Direito. A diferença é decisiva: não se reintroduz um "tribunal administrativo", mas se institucionaliza aconselhamento republicano, plural na composição e vocacionado à publicidade e ao controle político - coerente com a centralidade do procedimento, da motivação e da publicidade como garantias constitucionais da Administração Pública.
Esse reaparecimento funcional dialoga com transformações estruturais do direito público brasileiro. O processo administrativo Federal (lei 9.784/1999) densifica motivação, razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica; a lei geral das agências (lei 13.848/19) cristaliza consulta e audiência públicas como condições de racionalidade regulatória; a lei 14.133/21 desloca o foco para planejamento, gestão de riscos e governança nas contratações, realçando o ciclo decisório e a accountability - tudo à luz do princípio da boa administração, do regime jurídico-administrativo e da proteção da confiança legítima.
V. Por que essa história importa para o Direito Público de hoje
A memória do Conselho de Estado projeta luz sobre três desafios contemporâneos.
Primeiro, revela que boa administração não é slogan, mas desenho institucional que obriga governantes a justificar previamente escolhas de alto impacto. O Brasil conheceu, no século XIX, uma forma de conter arbitrariedades por meio de aconselhamento obrigatório; a República redesenhou o mecanismo em linguagem democrática, exigindo participação qualificada, transparência e controle social. Essa exigência conecta-se à integridade do direito (decidir com base no melhor ajuste entre prática institucional e princípios) e à teoria dos direitos fundamentais como princípios e mandamentos de otimização - o que exige motivação e sopesamento explícitos, sobretudo quando direitos e políticas públicas colidem.
Segundo, a opção nacional pela jurisdição una reclama um Judiciário apto a dialogar com a Administração em parâmetros de integridade e ponderação, evitando tanto a substituição indevida de escolhas técnico-políticas quanto a abdicação de controle sobre racionalidade e juridicidade do agir estatal. Isso supõe domínio das técnicas de motivação e dos standards de deferência e controle, inclusive sobre atos discricionários, vinculando-os aos princípios da legalidade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação e segurança jurídica.
Terceiro, a proteção da confiança legítima e da segurança jurídica - vitais para estabilidade de políticas públicas e investimentos em infraestrutura - depende de decisões previsíveis, motivadas e precedidas de oitiva aberta e tecnicamente informada. Não é possível viabilizar políticas setoriais sem coerência procedimental, estabilidade regulatória e responsabilidade por mudanças bruscas, como mostra a literatura contemporânea sobre infraestrutura e confiança legítima. A defraudação da confiança pela Administração, em contextos de concessões, PMIs, reequilíbrios ou paralisações imotivadas, compromete a credibilidade estatal e enseja responsabilização, na linha da doutrina e da jurisprudência recentes.
A conclusão é simples e exigente. Não copiamos o modelo europeu do conselho-tribunal; tampouco renunciamos ao aconselhamento institucional. Recriamos, em linguagem republicana e constitucional, fóruns e procedimentos de justificação pública. Celebrar o 15 de novembro sem lembrar o Conselho de Estado é perder a oportunidade de ler a República como categoria jurídico-institucional: um modo de organizar o poder para produzir bens públicos, com distribuição racional de funções, controles recíprocos e deliberação qualificada. A res publica não vive de promessas, mas de processos, razões e responsabilidades - como sublinham o regime jurídico-administrativo e a hermenêutica constitucional contemporânea.
Augusto Neves Dal Pozzo
Professor de Direito Administrativo e Fundamentos de Direito Público da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (IBEJI). Vice-Presidente da Comissão de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo. Advogado e Parecerista. Sócio-fundador do Dal Pozzo Advogados.



