O IPTU e o risco de insegurança jurídica
Imunidade de imposto segue em disputa, com municípios mantendo cobranças e ampliando a insegurança jurídica enquanto o STF revisa o alcance da proteção a serviços públicos.
segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Atualizado às 08:52
Há mais de duas décadas debate-se no Poder Judiciário a extensão da imunidade recíproca prevista na Constituição às sociedades de economia mista e empresas privadas que prestam serviço público por meio de concessão ou por arrendamento de área pública, em especial em relação ao recolhimento do IPTU. Infelizmente, entes públicos têm se recusado a reconhecer a dimensão do problema e a necessidade de cautela até uma definição sobre a matéria, o que tem causado profunda insegurança jurídica, prejudicando a prestação de serviços essenciais à população brasileira. Vejamos.
Conforme dispõe o art. 150, VI, 'a', da CF, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios instituir impostos sobre o patrimônio, a renda ou os serviços uns dos outros. A imunidade foi estendida às autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e, com amparo na mesma lógica jurídica, essa proteção alcança as concessionárias e arrendatárias que desempenham atividades vinculadas à prestação de serviço público valendo-se da utilização de um bem imóvel público pertencente à União.
Os municípios desconsideraram tais premissas e mantiveram a cobrança do IPTU de concessionários/arrendatários de áreas públicas. O tema foi objeto de inúmeras judicializações e teve o primeiro julgamento de referência pelo STF no RE 594.015/SP (Tema 385), com a fixação da tese: "a imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da Constituição não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo Município". Na mesma linha, o Tema 437: "incide o IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo".
Porém, havia uma preocupação com a tese e uma evidente necessidade de distinguishing em situações em que empresas se utilizam da área pública por força de um contrato de concessão/arrendamento para a prestação justamente de um serviço públicos, ainda que para aferir lucro. Afinal, com o perdão da redundância, é da essência dos regimes de concessão e igualmente presente em arrendamentos a possibilidade de convivência harmônica e equilibrada entre a percepção do lucro e a prestação de adequada e eficiente de serviços públicos.
Vejamos o exemplo do Porto de Santos, o maior do Brasil e da América Latina, responsável pela viabilidade do fluxo de cargas em operações de importação e exportação, responsável por 30% do comércio exterior brasileiro. A Zona do Porto/o Porto Organizado contempla terrenos públicos geridos e destinados pela SPU destinados à prestação de Serviços Portuários (CF, art. 21, XII, "f" e art. 1º e 2º da lei 12.815/13) administrados pela antiga CODESP, atual Autoridade Portuária de Santos, em atividade intensamente regulada pela ANTAQ.
Operadores portuários e recintos alfandegados que atuam nessa área (em imóveis da União) prestam serviço de armazenagem alfandegada de cargas. Isso significa que todos passaram pelo processo de alfandegamento, que pressupõe que a atuação da empresa no imóvel público é autorizada pela Receita Federal do Brasil para atuar no fluxo de importação e exportação de mercadorias, garantindo assim a fiscalização e cumprimento de normas tributárias e de segurança. A fiscalização ali não é feita apenas pela Receita Federal, mas também, e.g., pela Polícia Federal, Forças Armadas, Ministério da Agricultura / Vigiagro e ANVISA. Logo, a proteção do interesse público é inerente à atividade desempenhada em recintos alfandegados. Tais empresas podem ainda realizar atividades de armazenagem de mercadorias, movimentação de carga, desembaraço aduaneiro, entre outros, todos serviços destinados à viabilização do fluxo nas operações portuárias.
As características dessa prestação de serviços públicos por particulares em terrenos públicos motivaram o STF a uma maior reflexão sobre o tema e sobre a potencial necessidade de distinguishing na aplicação dos Temas 385 e 437. Para isso, reconheceu a existência repercussão geral da questão constitucional controvertida suscitada no RE 1.479.602/MG (Tema 1.297) para discutir "à luz do art. 150, VI, "a", da Constituição Federal, se o arrendamento de bem imóvel da União para concessionária de serviço público de transporte ferroviário afasta a imunidade tributária recíproca, com a consequente incidência de IPTU".
Diante disso, o emin. ministro relator André Mendonça, para garantir a "isonomia e uniformidade do tratamento jurisdicional", determinou a "suspensão nacional dos debates" com "extensão ao todos os processos judiciais e administrativos referentes ao tema" (cf. RE 1.479.602/MG, proferida em 19/12/2024).
Além disso, o STF afetou também o Tema 1398, em que se discute: "à luz dos arts. 150; VI, "a"; e 155; §3º, da Constituição Federal, possibilidade ou não de incidência de IPTU - imposto territorial e predial urbano sobre bem imóvel de Sociedade de Economia Mista afetado à prestação de serviço público, com fundamento na imunidade tributária recíproca".
Porém, a municipalidade insiste em não reconhecer a imunidade recíproca, o distinguishing proposto em relação aos Temas 385 e 437, a extensão dos debates propostos em relação ao Tema 1.297, bem como, e principalmente, a determinação de suspensão de processos que envolvam a cobrança de IPTU de empresas privadas prestadoras de serviços públicos em áreas arrendadas.
Isso tem levado a situações de profunda insegurança jurídica, obrigando as empresas que se enquadram nesse regime a propor ações para discussão da cobrança do IPTU ou defesas contra execuções fiscais de IPTU de elevadíssimo valor, compelidas à apresentação de garantia em pecúnia (prejudicando sobremaneira seu capital de giro) ou mediante oferecimento de seguro-garantia, de elevado custo financeiro e que, ao longo do tempo, compromete a capacidade econômico-financeira e a viabilidade de operações bancárias da empresa executada.
Isso sem considerar que tais judicializações vem assoberbando o Judiciário. Magistrados de primeiro e segundo graus, não raras vezes, prendem-se à vetusta interpretação dos Temas 385 e 437 e se recusam a aplicar a suspensão imposta pela afetação do Tema 1.297 a concessionárias/arrendatárias prestadoras de serviço público em área da União, valendo-se de uma análise casuística imprópria e enviesada proposta por municipalidades.
Já existem precedentes da 1ª e da 2ª turma do STF reconhecendo a inaplicabilidade peremptória dos Temas 385 e 437 a empresas prestadoras de serviços públicos, especialmente em reclamações contra decisões que obstavam o trâmite de recursos extraordinários calcadas em tal nos referidos temas. Porém, como dito, municipalidades seguem propondo execuções de valores de IPTU contra prestadores de serviços públicos e magistrados em primeiro e segundo graus seguem sem aplicar criteriosamente a determinação de suspensão de processos à luz da ordem havida em relação ao Tema 1.297.
É importante que tal situação de insegurança jurídica cesse, permitindo-se o debate republicando e democrático sobre a extensão da imunidade recíproca do IPTU relativa aos imóveis que, embora utilizados por pessoa jurídica de direito privado com fins lucrativos, sejam afetados à prestação de serviços essencialmente públicos, na forma determinada pelo min. André Mendonça nos debates sobre o Tema 1.297.




