Deepfake, lucro e identidade: Até quando sua imagem será de graça?
A Dinamarca quer conceder direitos autorais sobre rosto e voz para enfrentar o avanço de deepfakes. No Brasil, mesmo com proteções legais, falta uma resposta clara à manipulação e exploração da imagem no ambiente digital.
quinta-feira, 27 de novembro de 2025
Atualizado em 26 de novembro de 2025 14:50
A Dinamarca recentemente apresentou proposta legislativa que visa garantir aos indivíduos direitos autorais sobre sua própria identidade, incluindo rosto, voz, imagem e demais elementos que compõem a individualidade de uma pessoa.
A medida, embora inusitada à primeira vista, representa uma resposta concreta a um dos maiores desafios contemporâneos: o uso indiscriminado de deepfakes e a dificuldade jurídica em coibi-los de forma eficaz.
De acordo com reportagem da Fast Company Brasil1, a proposta dinamarquesa cria uma proteção legal que permitiria a qualquer pessoa ser detentora dos direitos autorais sobre si mesma, estabelecendo barreiras mais claras ao uso não autorizado de sua imagem, especialmente em ambientes digitais manipuláveis por inteligência artificial.
O jornal The Guardian2 destacou que essa nova legislação é uma forma de combater a crescente ameaça dos deepfakes, atribuindo às pessoas o poder legal de reivindicar, controlar e monetizar o uso de suas próprias características.
Mas, afinal, o que são deepfakes? Trata-se de uma tecnologia baseada em inteligência artificial capaz de criar vídeos, áudios ou imagens realistas de pessoas, sem que estas tenham participado ou consentido, com poucos cliques e uma base mínima de dados (voz, rosto, gestos), softwares conseguem simular falas e comportamentos de maneira quase indistinguível da realidade.
No Brasil, o uso de deepfakes já acende alertas no campo jurídico e, embora não exista uma tipificação penal específica, práticas envolvendo deepfakes podem ser enquadradas em delitos como falsidade ideológica, ou crimes contra a honra. Há, inclusive, um PL de 2023 (PL 1.272/233) em trâmite no Senado que propõe acrescentar o art. 308-A ao CP, tipificando como crime a adulteração de arquivos de vídeo ou áudio com intenção de enganar ou prejudicar alguém, sobretudo por meio de IA.
A proposta dinamarquesa avança justamente nesse ponto: cria uma via de responsabilização autônoma, de natureza autoral, para além das medidas penais ou civis hoje possíveis. A lógica é clara, se a própria imagem e voz de alguém podem ser captadas, manipuladas e monetizadas, nada mais justo que essa pessoa tenha controle e titularidade jurídica sobre tais atributos, nos moldes dos direitos autorais clássicos.
Essa proteção ganha ainda mais relevância em tempos nos quais a biometria facial, a voz, a íris e até as digitais são utilizadas como senhas de autenticação e assinaturas. A identidade física e vocal deixou de ser apenas uma característica pessoal e passou a ter valor patrimonial.
Artistas, modelos, apresentadores e outras figuras públicas já comercializam sua imagem e voz como ativos econômicos. Mas, mesmo anônimos estão expostos a usos indevidos e virais, potencialmente lesivos.
Na internet, diversas plataformas permitem a monetização rápida de conteúdo, inclusive falsificado. Nesse contexto, qualquer pessoa pode se tornar, sem consentimento, protagonista de um vídeo, propaganda ou paródia, gerando lucro a terceiros.
No Brasil, a proteção à imagem já é prevista na CF/88, em seu art. 5º, inciso X que dispõe serem "invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."
Além disso, o CC consagra os direitos da personalidade como intransmissíveis e irrenunciáveis (art. 11) e estabelece limites expressos à divulgação da imagem sem consentimento (art. 20). Também há, desde 1998, a lei de direitos autorais (lei 9.610/98), que protege obras intelectuais, mas não prevê, por ora, a tutela da imagem ou da voz como expressões criativas autônomas do próprio indivíduo.
Por sua vez, a LGPD (lei 13.709/18) dispõe sobre a proteção de dados pessoais sensíveis, incluindo biometria, mas não contempla expressamente a criação ou manipulação de representações digitais não autorizadas, tampouco regula mecanismos de reparação específicos para tais práticas.
A proposta dinamarquesa é, portanto, inovadora ao propor uma equivalência legal entre o uso da imagem/voz de alguém e uma obra protegida por direitos autorais.
No Brasil, a imagem possui natureza personalíssima, vinculada à dignidade da pessoa humana e à autonomia individual. É um direito absoluto, extrapatrimonial e intransmissível que, diferentemente de uma obra intelectual, não é passível de licenciamento, herança ou cessão.
A adoção de um modelo que reconheça, ao mesmo tempo, aspectos personalíssimos e patrimoniais da identidade exigiria mudanças legislativas específicas e debate jurídico sobre os pontos acima citados, como a possibilidade de cessão, transmissibilidade após a morte, titularidade em retratos coletivos e impactos sobre a liberdade de expressão, entre outros.
Contudo, a propagação de conteúdos manipulados e a velocidade com que se espalham online colocam em xeque a eficácia dos mecanismos legais hoje existentes. A resposta normativa brasileira, dispersa entre CF, CC, legislação autoral e proteção de dados, muitas vezes não é capaz de oferecer tutela efetiva.
A proposta dinamarquesa sinaliza que os ordenamentos jurídicos precisarão se reinventar diante das novas realidades tecnológicas, de modo que os legisladores brasileiros deverão estar atentos à possibilidade de reconhecer a imagem como um bem jurídico digno de proteção não apenas moral, mas também econômica.
________________________________
1 https://fastcompanybrasil.com/tech/por-que-a-dinamarca-quer-que-voce-tenha-direitos-autorais-sobre-si-mesmo/
2 https://www.theguardian.com/technology/2025/jun/27/deepfakes-denmark-copyright-law-artificial-intelligence
3 https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9292780&disposition=inline
Fernanda Regina Negro de Oliveira Maluf
Sócia especialista no Escritório Ernesto Borges, atua no contencioso estratégico e consultivo. LLM em Direito Empresarial pela FGV e em Direito Societário pelo Insper. Professora universitária.


