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Sociedades digitais e o vazio normativo da dissolução

A revolução digital criou sociedades sem presença física, expondo a insuficiência das regras atuais de dissolução e exigindo nova regulação para ativos virtuais e smart contracts.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Atualizado às 16:38

A sociedade, em um contexto geral, passa por períodos de grande evolução, e o que antes era reservado apenas à Revolução Industrial ou ao período posterior à Segunda-Guerra Mundial, passa a ser preenchido pela revolução digital.

Ao contrário do que era observado em períodos anteriores, onde empresas possuíam endereço físico, os contratos eram assinados em papel e os sócios eram facilmente localizáveis, a atualidade demonstra que o modelo societário até então presente no ordenamento jurídico brasileiro já não consegue abarcar a realidade empresarial contemporânea.

Nos últimos anos, começaram a surgir as chamadas sociedades digitais, criadas e geridas quase que integralmente em ambiente virtual, muitas vezes reunindo sócios que nunca se encontraram pessoalmente e cujos bens são, em sua maioria, intangíveis.

Neste contexto racionaliza AMATO ao dizer que: hoje vivenciamos transformação de igual radicalidade, com a digitalização exponencial dos diversos setores sociais - automatização da produção material; desmaterialização e virtualização de processos educacionais, sanitários, jurídicos, governamentais, empresariais, financeiros; programação algorítmica do consumo de informação, da produção de excedentes e da busca de apoio político.1

Essas sociedades podem assumir diferentes formas: startups constituídas remotamente, com sócios espalhados em diversos países; empresas que administram exclusivamente softwares, aplicativos e plataformas digitais; estruturas organizadas em blockchain, reguladas por smart contracts; e até holdings digitais que concentram ativos virtuais como criptomoedas, tokens ou domínios de internet.

Ainda que não tenham previsão expressa no ordenamento brasileiro, elas existem na prática e já movimentam valores significativos, e a ausência de regulação específica coloca em xeque conceitos clássicos como a affectio societatis e a própria noção de estabelecimento empresarial.

Neste sentido, é louvável a proposta de inclusão do Livro de Direito Civil Digital no PL 4/25, também conhecido como o Projeto de Reforma do Código Civil, regulamentando-se "Situações Jurídicas no Ambiente Digital". A redação proposta vai de encontro à tentativa de modernização das relações jurídicas-negociais, preservando-se a autonomia privada e a regularidade das atividades desenvolvidas no ambiente digital:

Art. O direito civil digital, conforme regulado neste Código, visa fortalecer o exercício da autonomia privada, a preservar a dignidade das pessoas e a segurança de seu patrimônio, bem como apontar critérios para definir a licitude e a regularidade dos atos e das atividades que se desenvolvem no ambiente digital."

Art. São fundamentos da disciplina denominada direito civil digital: V - a livre iniciativa e a livre concorrência;

Art. Nos termos previstos neste Código, o direito civil digital preservará o pleno exercício da liberdade de informação, da liberdade de contratar, da liberdade contratual e do respeito à privacidade e à liberdade das pessoas, em harmoniosa relação com a regulação desses serviços.

Assim, diante desta conjuntura, a tese central que se apresenta é clara: o modelo clássico de dissolução societária previsto no CC não fornece instrumentos adequados para lidar com as sociedades digitais, especialmente quando seus ativos são virtuais e sua estrutura operacional é inteiramente desmaterializada.

A pergunta que remanesce, e que não foi devidamente explorada, é: como dissolver uma sociedade que só existe no espaço virtual?

Sobre o tema, pontua LÉVY que "a emergência do ciberespaço acompanha, traduz e favorece uma evolução geral da civilização. Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade se encontra condicionada por suas técnicas" 2.

Atualmente, as sociedades em comum, regulamentadas pelos arts. 986 a 990 e seguintes do CC, possuem um patrimônio especial de qual os sócios são titulares em comum (art. 988 do CC), aplicando-se subsidiariamente as regras da sociedade simples.

Esse panorama normativo, no que tange à resolução da sociedade, demanda a verificação da situação patrimonial na data da resolução (art. 1.031 do CC).

A partilha do patrimônio, assim, poderá apresentar grandes dificuldades, pois criptoativos podem perder ou dobrar de valor em poucas horas, e sua movimentação depende de chaves privadas que, em muitos casos, estão sob controle exclusivo de um dos sócios.

Já softwares e plataformas digitais, por sua vez, carecem de critérios objetivos de avaliação, e a apuração de haveres, que nas sociedades tradicionais é um exercício contábil, passa a exigir também conhecimento tecnológico e mecanismos de controle mais sofisticados.

Além disso, a responsabilidade dos sócios nessas sociedades digitais, que em muitos casos carece de formalização clara dos vínculos societários, faz com que não se saiba exatamente quem responde por dívidas ou obrigações. A informalidade, que parece conveniente no início, pode se transformar em um verdadeiro pesadelo no momento da dissolução, quando credores e terceiros buscam identificar responsáveis e esbarram em estruturas frágeis e mal definidas.

O problema se agrava quando entram em cena os smart contracts, que, diferente dos contratos tradicionais que dependem de vontade humana para serem executados, funcionam de forma automática, sem margem de escolha. São programas de computador que controlam diretamente a transferência de ativos digitais entre as partes quando determinadas condições são atendidas, eliminando a fase de intermediação humana.

Mesmo diante de uma ordem judicial de dissolução, tais contratos continuarão a produzir efeitos automaticamente, salvo se o protocolo ou a arquitetura do sistema preverem mecanismos de interrupção, que, na prática, são raros e insuficientes. Isso expõe um campo de grande vulnerabilidade jurídica.

Também não se pode ignorar o impacto tributário da dissolução, uma vez que a apuração de haveres pode ser desafiadora, e a definição da base de cálculo de tributos sobre ativos digitais é ainda nebulosa.

Faltam parâmetros claros da Receita Federal sobre a avaliação, transmissão ou liquidação de criptoativos em contexto de dissolução, o que abre margem para autuações e litígios fiscais. Na ausência de legislação que dialogue com a realidade digital, dissolver sociedades desse tipo significa também expor os sócios a uma insegurança tributária que paralisa negócios.

Como já se apontou em estudos sobre a sociedade digital, a internet inaugurou um cenário de grande insegurança jurídica, em que o Direito "não poderia se calar diante de tantas transformações".3

A dissolução parcial é amplamente reconhecida pela doutrina e pela prática societária como um instrumento legítimo para preservar a continuidade da empresa, especialmente quando ocorre a quebra da affectio societatis, ainda que não exista conflito patrimonial evidente. Ocorre que essa concepção foi construída para sociedades tradicionais e não dialoga com a desmaterialização das relações próprias do ambiente digital, de modo que os instrumentos disponíveis se revelam insuficientes diante da ausência de bens palpáveis e da volatilidade dos ativos virtuais.

Uma solução que independe do contexto normativo é a possibilidade de contratos sociais preverem cláusulas específicas sobre dissolução digital, prevendo mecanismos de partilha de ativos virtuais e regras automáticas de saída de sócios. Da mesma forma, canais oficiais de comunicação eletrônica seriam um instrumento útil para evitar que sócios virtuais se tornem inalcançáveis. O reconhecimento da sociedade digital como categoria própria representaria não apenas um avanço técnico, mas também um caminho estratégico para atrair investimentos e dar maior estabilidade às relações empresariais na economia digital.

Há, no entanto, uma preconcepção de que empreendedores que ingressam no universo digital acreditam que as regras tradicionais do Direito Societário não lhes dizem respeito, como se o ambiente virtual fosse imune à intervenção jurídica. Essa percepção equivocada decorre das próprias transformações do meio digital: a expansão das tecnologias e das redes telemáticas reorganiza rotinas e inaugura novas sociabilidades, alterando hábitos e formas de interação. Nesse patamar acelerado, muitos confundem inovação com ausência de normas, quando a evolução digital, na verdade, reforça a necessidade de compreender como o direito se adapta a essas novas práticas.

Essa percepção precisa ser desconstruída. As sociedades digitais não estão fora do alcance da lei, mas demandam atualização normativa para que as regras acompanhem o tempo em que vivemos. Do contrário, o que se terá é uma economia pulsante, mas juridicamente desprotegida, onde dissolver uma sociedade se torna tão complexo que beira a inviabilidade.

Se o Direito nasceu para acompanhar a vida, precisa assumir de vez essa transformação, oferecendo respostas compatíveis com as formas atuais de empreender, sob pena de ele próprio se tornar uma peça de museu diante de uma sociedade em constante reinvenção.

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1 AMATO, Lucas Fucci. O direito da sociedade digital recurso eletrônico : tecnologia, inovação jurídica e aprendizagem regulatória / Lucas Fucci Amato. -- São Paulo : Faculdade de Direito, 2024, p. 79.

2 LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 25

3 SANTOS, Gilberto Batista. Revista de Direito, Inovação, Propriedade Intelectual e Concorrência. v. 7., n. 2, p. 60, Jul/Dez. 2021

Juarez Arnaldo Fernandes

VIP Juarez Arnaldo Fernandes

Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

Adriano Henrique Baptista

Adriano Henrique Baptista

Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Ex-assessor de juiz no TJPR. Advogado e administrador judicial.

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