Arbitragem e reequilíbrio econômico-financeiro: O ponto de maturidade institucional dos contratos de infraestrutura
A solução extrajudicial se consolida na recomposição de contratos administrativos, equilibrando riscos extraordinários e proteção patrimonial sem comprometer o serviço público.
sexta-feira, 28 de novembro de 2025
Atualizado em 27 de novembro de 2025 15:06
A consolidação da arbitragem como via adequada para resolver disputas sobre recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos marca uma inflexão relevante no ambiente regulatório brasileiro.
O que antes gerava dúvida, sobretudo pela leitura excessivamente restritiva de órgãos de controle, hoje se apresenta como componente estruturante da governança contratual em projetos de infraestrutura e concessões.
A evolução normativa foi determinante para esse deslocamento.
O decreto 10.025/19 expressamente autorizou a arbitragem em matérias relacionadas ao equilíbrio econômico-financeiro nos setores estratégicos da infraestrutura; a lei 14.133/21 reforçou o caráter patrimonial dessas controvérsias ao permitir sua solução por meios adequados.
Esse ambiente normativo, ajustado às práticas internacionais, tornou insustentável a antiga compreensão segundo a qual o equilíbrio econômico-financeiro seria matéria indisponível. Nos contratos de longo prazo, não há indisponibilidade a preservar, mas sim ativos a proteger, fluxos a recompor e investimentos a sustentar, todos eles, elementos tipicamente patrimoniais e, portanto, arbitráveis.
A virada institucional também contou com a prudente revisão do entendimento do Tribunal de Contas da União.
O acórdão 2.573/12, que vedava o tratamento arbitral dessas controvérsias, refletia uma visão que associava equilíbrio econômico-financeiro ao núcleo de interesse público indisponível1.
Nos últimos anos, porém, o TCU passou a reconhecer que a arbitragem especializada reduz assimetrias informacionais, aumenta previsibilidade e contribui para disciplinar comportamentos oportunistas em concessões e PPPs. O acórdão 3.160/20 sintetizou essa mudança e afasta, em definitivo, a presunção de que a arbitragem comprometeria o interesse público.
No Judiciário, o movimento foi ainda mais célere. O STJ, no caso Compagás, reconheceu que a recomposição da equação econômico-financeira envolve direitos patrimoniais disponíveis são, portanto, arbitráveis e que nada impede que concessionárias, sociedades de economia mista ou contratadas solucionem tais litígios por compromissos arbitrais.
O resultado desse amadurecimento institucional é perceptível: os casos de reequilíbrio econômico-financeiro em infraestrutura já migram para a arbitragem, onde critérios técnico-financeiros, perícias complexas e análises de fluxo de caixa encontram ambiente mais adequado do que a volatilidade judicial.
O que significa "equilíbrio econômico-financeiro"?
Durante muito tempo, o debate brasileiro oscilou entre duas leituras excessivamente rígidas: a visão "econômica", típica dos contratos de obra com desembolso direto, centrada na equivalência entre custos e preços; e a visão "financeira", característica das concessões, concentrada na sustentabilidade do fluxo de receitas ao longo do tempo.
Essa dicotomia, embora útil como ferramenta conceitual, tornou-se insuficiente frente à sofisticação dos modelos de infraestrutura atuais.
O equilíbrio econômico-financeiro deixou de ser apenas uma "equação de entrada" e passou a funcionar como: i) proteção ao investimento inicial; ii) instrumento de alocação eficiente de riscos; iii) mecanismo de preservação do serviço público; iv) garantia de viabilidade econômico-financeira no ciclo completo do projeto.
Essas funções se desdobram em três implicações práticas: Em primeiro lugar, o ativo do concessionário é o fluxo futuro de receitas, não a obra construída. Em segundo lugar o equilíbrio se mede pela TIR contratual e pelo VPL zero, não por planilhas de custos isoladas; E, por fim, em terceiro lugar, o reequilíbrio só se justifica quando eventos extraordinários rompem a matriz de riscos previamente definida.
É por isso que a leitura moderna do instituto se aproxima muito mais da engenharia financeira do que da tradicional contabilidade contratual.
A centralidade da matriz de riscos
Em qualquer jurisdição que opere modelos de concessão, a matriz de riscos é o eixo em torno do qual gira todo o sistema de reequilíbrio.
No Brasil, a lei 14.133/21 conferiu a ela densidade jurídica e vinculatividade técnica.
Sua função não é meramente listar eventos possíveis, mas definir, ex ante, quem arca com o quê e em que condições.
Riscos ordinários (oscilações moderadas de demanda, custos operacionais, variações cambiais dentro de um intervalo razoável) permanecem com o concessionário.
Riscos extraordinários (choques macroeconômicos severos, alterações unilaterais de escopo, atrasos imputáveis à Administração, variações normativas graves) podem justificar recomposição.
Essa distinção entre "alea ordinária" e "alea extraordinária" é precisamente o que os tribunais arbitrais vêm aplicando de maneira consistente.
A matriz de riscos, porém, não é infalível. Estudos internacionais mostram que, quando mal elaboradas, elas podem produzir classificações inconsistentes, induzir decisões inferiores ao padrão aleatório e carregar vieses cognitivos dos próprios modeladores.
Por isso, toda decisão de reequilíbrio passa por uma etapa prévia de reconstrução da lógica alocativa originalmente pactuada, quase como um exercício de engenharia reversa contratual.
O que o caso CMA 668/21 revela sobre o modelo brasileiro de reequilíbrio em arbitragens.
A maturidade institucional alcançada nos últimos anos indica que o equilíbrio econômico-financeiro, longe de ser um dogma abstrato, opera como instrumento prático de estabilidade econômica e continuidade do serviço público. E a arbitragem, por sua vez, consolidou-se como o espaço onde esse instrumento funciona com maior precisão.
O mais recente exemplo dessa evolução foi o desfecho, em setembro de 2025, do caso CMA 668/21, que reafirmou a natureza patrimonial das controvérsias de reequilíbrio e a plena compatibilidade dessas disputas com a via arbitral.
O conflito envolveu a Maubertec Engenharia e Projetos Ltda., Sener-Setepla Tecnomecânica e o Estado de São Paulo (na condição de sucessor da DERSA), o debate sobre equilíbrio econômico-financeiro foi enquadrado em chave tipicamente brasileira, distinta da lógica contratualista que marca arbitragens internacionais fundadas em modelos FIDIC.
Partindo de contratos de engenharia celebrados sob a modalidade de preço global para elaboração de projetos do Rodoanel Norte, o Tribunal deixou claro que, embora o preço fixo pressuponha assunção de riscos ordinários pelo contratado, essa assunção não é absoluta.
Conforme se depreende da decisão, os árbitros entenderam que a Administração tem o dever de fornecer informações suficientes para a formulação das propostas e que o preço global só remunera aquilo que estava efetivamente contido no projeto e nos dados disponibilizados na licitação.
Alterações supervenientes de escopo, imprevisíveis ao tempo da proposta e imputáveis ao poder público não se consideram absorvidas pelo preço global.
Nessa linha, o Tribunal concluiu que negar recomposição violaria a vedação ao enriquecimento sem causa e, por maioria, determinou o reequilíbrio econômico-financeiro limitado aos serviços adicionais comprovados pela perícia, diretamente vinculados à nova exigência normativa.
O mesmo raciocínio, porém, não foi estendido aos pedidos de indenização por custos indiretos decorrentes de atrasos no cronograma.
As requerentes alegavam perda de produtividade e necessidade de manter equipes mobilizadas por mais tempo em razão de trabalhos extras atribuídos ao Estado, enquanto este sustentava que o preço global já englobava custos administrativos e que se pretendia, na prática, transferir à Administração a conta de ineficiências próprias, sem prova de dano efetivamente suportado.
Ao examinar o acervo probatório e precedentes judiciais que já abordaram o tema, o Tribunal, por unanimidade, rejeitou o pleito: considerou inviável atribuir exclusivamente à DERSA a responsabilidade pelos atrasos, que decorreram de um conjunto de fatores, incluindo dificuldades de mobilização das próprias contratadas e notificações por descumprimento de prazos.
A sentença fixou, assim, uma diretriz importante: a modalidade preço global não cobre riscos extraordinários decorrentes de alterações imprevisíveis de escopo impostas pelo poder público, que geram direito ao reequilíbrio; mas também não transforma a Administração em garantidora geral de todos os atrasos e sobrecustos indiretos, quando não demonstrados nexo causal e responsabilidade estatal exclusiva.
Alberto Jonathas Maia
Professor de Arbitragem da Graduação e Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre e Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogado especialista do núcleo de Arbitragem e Contencioso Estratégico de Martorelli Advogados.


