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Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

O novo filme do Diretor Guillermo del Toro - uma releitura do clássico Frankenstein - reacende debates essenciais da Bioética sobre autonomia e consentimento do paciente, responsabilidade médica, ética e vulnerabilidade.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Atualizado em 1 de dezembro de 2025 16:11

A relação entre ciência, ética e responsabilidade raramente é tão bem ilustrada quanto nas obras de ficção que tratam da criação da vida e de experimentação com seres humanos. O novo filme Frankenstein, de Guillermo del Toro, que, inclusive, nos faz lembrar também da obra Pobres Criaturas, estrelado por Emma Stone em 2023, oferece uma releitura contemporânea e provocadora acerca do tema. Embora cinematográficos, ambos traduzem questões que acompanham diariamente a Medicina, a pesquisa científica e o Direito Médico e da Saúde - especialmente no campo da Bioética.

A história de Frankenstein ainda é, para muitos, mal compreendida: não é a criatura quem recebe esse nome, mas seu criador, Victor Frankenstein - um médico que ultrapassa fronteiras científicas sem qualquer reflexão moral sobre as consequências do próprio experimento. Esse detalhe é essencial porque desloca o foco do "monstro" para o ato e a responsabilidade do criador, que é justamente o ponto de partida de muitos dos debates bioéticos.

No filme, o médico, após uma tentativa falha de matar seu "experimento" abandona sua criação. E é justamente nesse abandono que reside o principal ponto de intersecção com a Bioética: a ausência absoluta de responsabilidade e de respeito aos Direitos Humanos, a negação da autonomia do "paciente", o dano e o sofrimento causado por um experimento conduzido sem cuidado, sem limites e sem humanidade.

Esse mesmo debate reaparece de forma reinventada em Pobres Criaturas. Bella Baxter, reconstruída a partir de um experimento radical, vive sob tutela masculina, privada inicialmente de autonomia e autodeterminação. A narrativa, se mostra profundamente ligada à Bioética feminista, a qual surgiu justamente para evidenciar que a Bioética, foi construída sob uma perspectiva masculina, abstrata e supostamente neutra - mas que, na prática, ignorava a experiência concreta das mulheres. Essa corrente se volta para temas somo: a autonomia reprodutiva, a violência obstétrica, a sexualidade, a desigualdade de acesso aos serviços de saúde e o modo como o corpo feminino é repetidamente controlado.

A Bioética tradicional permanece essencial como estrutura orientadora. No entanto, não esgota a complexidade dos dilemas marcados por desigualdades históricas e sociais. Muitas vulnerabilidades não surgem apenas de condições biológicas ou circunstanciais, mas são produzidas e perpetuadas por estruturas de poder. É nesse ponto que as correntes feminista e racial da Bioética ampliam o debate.

A Bioética em sua essência constitui um campo interdisciplinar que une especialmente medicina, Direito, filosofia, sociologia e biologia. Trata-se de uma disciplina consolidada como resposta a abusos científicos que marcaram o século XX, tais como: experimentos nazistas em campos de concentração, estudo de Tuskegee realizado em homens negros com sífilis nos Estados Unidos, esterilizações forçadas de mulheres vulneráveis, pesquisas conduzidas sem consentimento do paciente e práticas médicas que vitimizaram, sobretudo, mulheres, negros, pobres e grupos vulneráveis, os quais tendem a ser mais suscetíveis aos abusos e, por isso, são constantemente tratados como meros corpos disponíveis para experimentação, com menor proteção, menor acesso à informação e menor reconhecimento de sua autonomia.

Esses fatos revelaram que a ciência e a medicina, quando dissociadas da ética, podem se transformar em instrumentos muito perigosos de violência. A Bioética nasce precisamente como barreira protetiva, baseada em princípios como autonomia, beneficência, não maleficência e justiça - e posteriormente ampliada por vertentes feministas e raciais, que denunciam desigualdades estruturais no acesso à saúde e na distribuição do risco científico. Seu foco é analisar conflitos que surgem quando o progresso científico toca diretamente a vida, a integridade e a dignidade de seres humanos e animais.

Ao revisitar essas obras pelo olhar jurídico e biomédico, percebemos pontos de intersecção valiosos para a prática profissional:

  • Consentimento livre e esclarecido e autonomia: Tanto a Criatura de Frankenstein quanto Bella Baxter são concebidas e manipuladas em experimentos sem qualquer possibilidade de decisão sobre a própria existência ou sobre suas integridades física, socioambiental, moral e psicológica. Ambas são submetidas ao poder absoluto de seus criadores, privadas de autonomia e impedidas de exercer qualquer forma de autodeterminação sobre a própria vida e saúde.
  • Responsabilidade: inovação é necessária, sem dúvida, mas exige cuidado continuado.  Nesse sentido, inclusive, a lei nacional brasileira sobre pesquisa com seres humanos 14.874/24 proíbe expressamente a previsão de isenção de responsabilidade por danos decorrentes da pesquisa. Outrossim, prevê responsabilidade e obrigação de indenização tanto do patrocinador quanto do pesquisador ao participante que tenha sofrido danos diretos da pesquisa que restarem comprovados e garantir assistência à saúde. Entusiasmo tecnológico/científico não pode superar dignidade e proteção dos sujeitos envolvidos.
  • Justiça e privação de uma vida digna: embora a Criatura não tenha raça, está fadada à exclusão e encarna o símbolo do sujeito considerado "outro", "menos que humano", alguém cuja dignidade é negada porque sua aparência ou sua origem foge do padrão. Ciência sem crítica tende a reproduzir desigualdades já existentes e acentuar vulnerabilidades. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 já reconhecia a dignidade humana e o direito à saúde como valores universais. No Brasil, a Constituição de 1988 reforça essa proteção ao elevar a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado e garantir um sistema de saúde gratuito, integral e universal. Nesse cenário, debates sobre escassez de recursos e judicialização da saúde tornam-se centrais para a Bioética, especialmente em relação ao princípio da justiça.

A amplitude dos dilemas apresentados por Frankenstein e Pobres Criaturas dialoga diretamente com os grandes eixos que estruturam a Bioética contemporânea: desde os debates sobre o início da vida - como reprodução assistida, clonagem, aborto, edição genética e gestação por substituição - até os complexos questionamentos do fim da vida, relacionados a cuidados paliativos, diretivas antecipadas, eutanásia, ortotanásia e distanásia. Soma-se a isso toda a discussão sobre autonomia, consentimento e vulnerabilidade, recusa de tratamento, especialmente relevante em pesquisas envolvendo seres humanos, manipulação genética e o uso de tecnologias emergentes, como inteligência artificial e neurotecnologias.

Ao final, tanto Frankenstein quanto Pobres Criaturas funcionam como exercícios de reflexão moral. Eles nos lembram que não basta a técnica, é preciso ter ética. E que, sem ética, a ciência deixa de ser instrumento de progresso para se tornar mecanismo de opressão. Para quem atua com medicina, Direito da Saúde e Bioética, essas obras não são apenas entretenimento: são oportunidades de refletir sobre os desafios contemporâneos que atravessam nossa prática. Depois de assistir, vale a pergunta: qual dilema bioético mais te provocou?

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SOUZA, Wendell Lops Barbosa de. O erro médico nos tribunais. 2. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2025. p. 45 e seguintes; p. 180 e seguintes.

KOENIGSTEIN, Livia Maria Amentano. Bioética: o que é isso? Migalhas, 2017. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/269708/bioetica--o-que-e-isso. Acesso em: 28 nov. 2025.

KEID, Fernanda Borges. A bioética como instrumento mediador de conflitos em saúde. Migalhas, 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/355305/a-bioetica-como-instrumento-mediador-de-conflitos-em-saude. Acesso em: 28 nov. 2025.

Lyana Oliveira Breda

Lyana Oliveira Breda

Advogada associada ao escritório Lemos Advocacia para Negócios desde 2016. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) em 2014. Pós-graduanda em Direito Médico pela Damásio Educacional.

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