4º Congresso CESA: IA - Inteligência Artificial e os deveres fundamentais da advocacia e da prestação jurisdicional
Ouça-se e aprecie-se o canto da sereia - sem se perder de vista o leme, as cartas e a bússola da profissão.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
Atualizado às 15:32
I - As necessárias reflexões do recente Congresso do CESA
1.1. Em 27 e 28 de novembro de 2025, em São Paulo, realizou-se o 4º Congresso CESA das Sociedades de Advogados, sagrando-se um fórum qualificado para discutir a "Transformação Tecnológica na Advocacia" a partir de temas concretos e urgentes.
1.2. A programação do evento, que reuniu estudantes, advogados, magistrados, membros do Ministério Público e executivos jurídicos, percorreu a interseção entre tecnologia e devido processo, tratando de temas relevantíssimos como a regulamentação de mídias digitais e IA, a prova digital e a cadeia de custódia sob a ótica dos tribunais, a discriminação algorítmica em seleção de currículos, as aplicações práticas de IA na advocacia e os efeitos da automação na estrutura organizacional dos escritórios e na precificação dos serviços jurídicos.
1.3. A pertinência dessas discussões é inegável no atual estágio de adoção de IA por toda a cadeia de justiça - de escritórios e departamentos jurídicos a tribunais e órgãos públicos que já operam com plataformas digitais e sistemas de análise automatizada.
1.4. Em um ecossistema no qual julgadores passam a apoiar-se em ferramentas de triagem, priorização e pesquisa, e advogados ampliam produtividade com sistemas generativos e analíticos, o Congresso do CESA acentuou que o verdadeiro diferencial está em conformidade regulatória, governança de dados, mitigação de vieses, cadeia de custódia robusta e revisão humana qualificada.
1.5. A tônica foi clara: a IA aumenta eficiência, transparência e qualidade decisória, mas não substitui a autoria e a responsabilidade humanas.
II. Princípios estruturantes: eficiência tecnológica sem abdicar dos deveres funcionais
2.1. A difusão de ferramentas de inteligência artificial no sistema jurídico brasileiro abriu uma frente promissora de eficiência. Pesquisa acelerada, síntese de informações, organização de documentos e levantamento de precedentes tornaram-se atividades sensivelmente mais ágeis. Nada disso, porém, altera o núcleo do ofício na advocacia e no exercício da jurisdição: perante o cliente e perante o jurisdicionado, vigem deveres fundamentais de cuidado, lealdade, independência, diligência e motivação que não podem ser mitigados nem terceirizados.
2.2. Desenvolver cautelas e protocolos tecnológicos é, sem dúvida, de extrema importância nesse debate, mas não se pode perder o verdadeiro foco da questão: preservar os princípios que sustentam e legitimam a atuação profissional. Nessa linha, a metáfora do "canto da sereia" é pedagógica, pois a promessa de facilitação e padronização não pode desviar o timoneiro de sua rota constitucional, ética e contratual.
2.3. Este breve artigo, portanto, discute, em perspectiva prática, por que os deveres fiduciários do advogado e os deveres de fundamentação e independência do julgador devem sempre ocupar o primeiro plano do debate. Examina, ainda, implicações específicas nos litígios e arbitragens complexas e medidas de gestão para enfrentar abusos como o "document dump", sem sacrificar o contraditório, a igualdade de armas e a racionalidade das decisões.
III. O eixo da relação cliente-advogado: a fidúcia não é delegável
3.1. A relação entre cliente e advogado é marcada por fidúcia, atuação personalíssima e expectativa de conduta profissional técnica e competente do advogado. O cliente não contrata uma máquina; elege um profissional pela sua reputação, experiência, sensibilidade estratégica e compromisso ético. Ferramentas de IA podem, quando bem governadas, ampliar a capacidade de análise do advogado. Mas esse ganho instrumental jamais pode comprometer a essência fiduciária do vínculo.
3.2. O dever de lealdade reclama que as decisões estratégicas, como escolha de teses, seleção de fatos relevantes, prioridades probatórias e desenho de negociações, sejam concebidas e validadas pelo advogado, que responde por elas. A externalização dessa responsabilidade para um sistema algorítmico, ainda que eficiente, vulnera a confiança depositada pela parte e contraria o padrão de diligência esperado. A competência profissional não é apenas domínio de normas; envolve juízo prudencial, leitura do contexto, avaliação de riscos, empatia com o cliente e capacidade de calibrar custos e benefícios ao longo do tempo. Nenhuma dessas dimensões é redutível a um atalho estatístico.
3.3. Do ponto de vista prático, isso impõe balizas claras. É legítimo utilizar IA para auxiliar na organização de informações, na redação preliminar de minutas ou na identificação de precedentes, desde que o controle humano seja material, linha a linha, e que a autoria personalíssima da estratégia permaneça inequívoca. O advogado precisa assegurar que nenhum conteúdo sensível seja exposto de modo incompatível com a confidencialidade contratual e regulatória; que nenhuma recomendação não auditada se imponha sobre a realidade probatória do caso; e que a comunicação com o cliente seja honesta sobre limites e incertezas.
3.4. É dever do advogado transformar informação em aconselhamento, o que inclui dizer "não" à tentação de terceirizar o seu ofício para ferramentas que, por natureza, não assumem responsabilidade. Essa primazia da fidúcia vale tanto em assessoria extrajudicial quanto em contencioso judicial, administrativo ou arbitral. Em qualquer dessas arenas, o cliente tem direito a uma atuação direta do advogado, construída com base nas peculiaridades e histórico do caso do cliente, nos seus objetivos e na sua tolerância a risco, que, no mais das vezes, são fatores que não se deduzem de avaliações impessoais nem de padrões médios.
3.5. Em suma, o uso acrítico de IA na advocacia, além de comprometer a confidencialidade e a precisão técnica, tende a produzir aconselhamento deficiente, sem o diálogo analítico que dá substância à confiança que é a marca indelével da relação cliente-advogado.
IV. O eixo da relação juiz-jurisdicionado: motivação, contraditório e independência
4.1. Do lado do exercício da jurisdição, a Constituição e a processualística brasileira consagram o direito do jurisdicionado a um provimento motivado, com enfrentamento dos argumentos relevantes, calcado nas provas dos autos e proferido por juiz natural (no caso da arbitragem, árbitro livremente escolhido) que formou seu convencimento de modo independente e responsável. A função da motivação é dupla: legitima a decisão perante as partes e a sociedade e permite o controle, inclusive recursal ou anulatório, de sua legalidade.
4.2. A sedução da IA está em oferecer atalhos: triagem de peças, síntese de alegações, ranqueamento de precedentes "semelhantes", sugestões de enquadramento jurídico. Esses instrumentos podem ser úteis, desde que o julgador os trate como apoio e não como substituto do juízo decisório. Quando a motivação se reduz a um texto estereotipado, com citações que não dialogam com o caso, ou quando oculta as premissas reais, sobretudo se influenciadas por processos algorítmicos opacos, a decisão perde substância. O contraditório é esvaziado se as partes não podem conhecer e confrontar os motivos decisivos, e a independência é ferida se o magistrado, no limite, apenas ratifica uma saída automatizada.
4.3. O risco não é teórico. Sistemas de busca e recomendação podem ancorar o raciocínio em padrões históricos, replicando vieses e afastando a necessária distinção de contextos. Sumarizadores podem eclipsar argumentos que, embora minoritários na média dos casos análogos, são centrais no caso concreto. Ferramentas baseadas em prognósticos podem induzir atalhos probabilísticos tomados como justificações normativas.
4.4. Contra essa possível desvio, o dever do julgador é reafirmar o protagonismo do método: partir dos fatos provados, enfrentar as teses das partes, valorar a prova de modo transparente, distinguir e justificar a aderência de precedentes e expor, com clareza, o caminho do convencimento.
4.5. Em suma, a tecnologia pode organizar o terreno; não pode escrever, por si, a razão determinante do julgado, sob pena de violação do dever de todo jurisdicionado à publicidade e à motivação das decisões.
V. Arbitragem: justiça privada com deveres públicos fundamentais
5.1. A arbitragem agrega particularidades que intensificam a responsabilidade no uso de IA. Embora se trate de justiça privada, nela se decidem direitos e deveres com eficácia executiva e a legitimidade da sentença arbitral repousa na combinação de consentimento das partes e observância de garantias de devido processo.
5.2. Árbitros são escolhidos por competência, independência, imparcialidade e disponibilidade. E, acima de tudo, por confiança das partes. Isso não autoriza terceirizações invisíveis. No plano prático, é razoável que o tribunal arbitral utilize IA para organizar acervos volumosos, categorizar documentos, apoiar buscas e estruturar a agenda. Em procedimentos com centenas ou milhares de documentos, esses recursos podem ser decisivos para manter prazos e foco. O ponto crítico não está no "se", mas no "como".
5.3. Primeiro, a confidencialidade é pedra angular. Enviar peças ou provas a ambientes públicos, ou a provedores sem cláusulas robustas de segurança e segregação de dados, viola expectativas contratuais e pode contaminar a validade do procedimento. Segundo, a igualdade de armas e o contraditório exigem que critérios de seleção e priorização de documentos, quando impactantes, sejam minimamente transparentes, com oportunidade para que as partes se manifestem, proponham termos de busca, contestem exclusões e apresentem contraprovas. Terceiro, a independência e a autoria decisória reclamam que toda síntese ou recomendação automatizada, principalmente em se tratando das manifestações das partes, seja validada por leitura anterior direta e completa do árbitro, especialmente quanto a argumentos potencialmente determinantes.
5.4. É prudente, ademais, que o tribunal adote protocolos com as partes, desde o início, regulando usos permitidos e limites da tecnologia. Ordens processuais que disciplinem formatos de produção e organização de arquivos, metodologias de busca, revisão e seleção de documentos, métricas de qualidade e logs de auditoria reduzem assimetrias e litigiosidade incidental. E, quando uma das partes pratica "document dump" (i.e, a produção massiva e desorganizada de documentos), a gestão ativa do caso pelos árbitros, inclusive com consequências processuais proporcionais, é instrumento legítimo para preservar a efetividade do devido processo.
5.5. Em suma, a exemplo do juiz togado, e ainda com mais rigor em virtude do componente contratual da jurisdição arbitral, espera-se dos árbitros que ajam com total transparência no que pertine ao uso de IA, esclarecendo às partes não apenas as ferramentas tecnológicas eventualmente utilizadas, mas também - e principalmente - a redundância de validação humana aplicada. Essa transparência serve a um fim maior: proteger a autoria humana da razão decisória, uma vez que IA pode até ser colaboradora silenciosa, mas jamais autora oculta.
VI. Conclusão: centralizar o debate no dever, não na ferramenta
6.1. A discussão sobre IA no direito brasileiro muitas vezes começa e termina em listas de boas práticas tecnológicas. Elas são necessárias, mas não suficientes. O primeiro princípio é normativo, não técnico: o advogado deve ao cliente lealdade, diligência, independência e confidencialidade; o julgador deve ao jurisdicionado uma decisão motivada, fundada nos autos, com enfrentamento dos argumentos relevantes e proferida por autoridade competente e livre. Esses deveres não se comprimem para caber no molde das ferramentas; as ferramentas é que devem ser escolhidas e limitadas para servir a tais deveres. A metáfora do "canto da sereia" não condena a tecnologia; alerta contra a abdicação do ofício.
6.2. O caminho responsável passa por governança, preservação do controle humano e desenho processual que favoreça o contraditório e a auditabilidade. Em advocacia, isso significa rechaçar a delegação de estratégia e decisão a sistemas; no exercício da jurisdição, recusar motivos inverificáveis e atalhos probabilísticos como substitutos da justificação jurídica. Na arbitragem, acrescenta-se a disciplina do uso de tecnologia por meio de protocolos com as partes e a gestão ativa de acervos, inclusive com consequências para abusos documentais.
6.3. Em suma, a IA é bem-vinda como instrumento que amplia capacidades, desde que se preservem direitos fundamentais e a legitimidade das decisões no sistema de justiça brasileiro. Ouça-se e aprecie-se o canto da sereia - sem se perder de vista o leme, as cartas e a bússola da profissão.
Gilberto Giusti
Sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados. Copresidente do Comitê Judiciário do CESA - Centro de Estudos das Sociedades de Advogados. Presidente da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB.


